Violência, Mídia e Religião

Não por força, nem por vio lên cia, mas pelo meu Espí rito, diz o SENHOR dos Exér ci tos.
(Profeta Zaca rias 4.6)

A tensão dialética entre violência e não-violência na experiência fé/religião é antiga. O verso em epígrafe é uma expressão fla­grante disso: ao mesmo tempo em que apela para o Espírito, como con tra ponto da força e da violên cia, a frase é assinada pelo Senhor dos Exér ci tos. A con tra dição é fla grante, pois não há nada mais violento do que o exército.

Religião/fé e violência

Cruz e espada demonstram serem boas e his­tóricas companheiras. Foi assim durante as cruzadas, foi assim durante a inquisição, foi assim durante a colonização dos “novos” continentes. Mas esse não parece ser mérito exclusivo do cristianismo. O mesmo sen ti mento, com variações culturais, o mesmo espírito bélico, parece seduzir indivíduos de todos os credos em todas as épocas. Todos se “alistam” nos exércitos sagrados para “combater o bom combate”, para travar a “guerra santa”, para “batalhar contra os inimigos de deus”.

Em nome de Deus, da sua fé e da sua reli gião, os Bôe res ins ti tuí ram o Apartheid na África do Sul: um sis tema social que divide a soci e dade em cida dãos de pri meira e de segunda linhas. Em nome da mesma fé, Ingle ses espo li a ram a Índia e tan tas outras colô nias. Tam bém ampa ra dos pelas mes mas cru zes e coroas, por tu gue ses, espa nhóis e ingle ses pro mo ve ram o geno cí dio de quase 100 milhões pes soas, habi tan tes ori gi nais do con ti nente americano.

Os mes mos colo ni za do res, em nome da mesma fé, per pe tu a ram durante sécu los a abo mi ná vel prá tica da escra vi dão de homens e mulhe res negras, arran ca das à força da sua terra afri cana. Para não falar da Inqui si ção, da tor tura e da pena de morte, devi da mente sacra men tada pelos homens da fé.

Religião/fé e não-violência

Por outro lado, para lela a essa his tó ria, desde os tem pos bíbli cos, a pre ga ção e a prá tica da não-violência, ainda que timi da mente, se fazem notar. Pro fe tas e poe tas hebreus, como vozes soli tá rias e erran tes, defen diam o direito e a jus tiça ape lando para o bom-senso pací fico, con tra o beli ge rante senso-comum. Como se sabe, obti ve ram pouco êxito.

Haverá maior exem plo de resis tên cia pací fica e não-violenta do que o do pró prio Jesus de Nazaré? Este, rei te ra das vezes con teve os ímpe tos béli cos dos seus segui do res, e numa ati tude de máximo altruísmo pací fico entrega sua pró pria vida “como ove lha muda diante dos seus tosquiadores”.

Os que segui ram o exem plo de Cristo rece be ram a alcu nha de “mártires” — que, a prin cí pio, sig ni fi cava sim ples mente “tes te mu nha”, mas que logo pas sou a ser sinô nimo daquele ou daquela que morre por sua fé. A mai o ria entre gando a sua vida sem ofe re cer resis tên cia, orando por seus ini mi gos, perdoando-lhes a ignorância.

Exem plo mais recente encon tra mos na linda his tó ria do már tir dos direi tos civis esta du ni den ses, Rev. Mar tin Luther King Jr. Sua prá tica de resis tên cia não-violenta, mas enfá tica e per su a siva, rever teu, em mea dos do século 20, os rumos da segre ga ção racial no país, e ins pi rou o mesmo sen ti mento em todo o mundo.

Mas a resis tên cia não-violenta não é exclu si va mente cristã (nem mesmo deve ter sido por ele inven­tada). O mais belo exem plo disso foi dado por Mahatma Gandhi. Ambos, Luther King Jr. e Gandhi paga­ram com sua pró pria vida por sua opção de fé e civi li dade. Mas o fruto de sua prá tica não pode ser igno rado nem mesmo pelos mais céti cos, nem des con si de rado pelos mais obs ti na dos e con tra di tó rios defen so res do uso da força para fins pacíficos.

Religião/fé, vio lên cia e mídia

O proi bido, a feal dade, a mons tru o si dade, o fra casso, a morte, a lou cura, a ausên cia, etc., mis te ri o sa­mente exer cem tanto fas cí nio sobre as pes soas quanto o jogo e o sexo.

Na mídia, a vio lên cia torna-se igual mente entre te ni mento. Esta ampliou con si de ra vel mente a oferta das des gra ças, das catás tro fes, das tra gé dias, dos peri gos, das ame a ças, para ali men tar a fome de “san gue”, para satis fa zer o pra zer do medo, para rea li zar as fan ta sias mór bi das e todas as for mas de per ver sões, enfim, para ali men tar o inferno inte rior que cada um tem guar dado nas regiões mais som­brias de suas per so na li da des. Pois, como afir mou certa vez o pes qui sa dor e crí tico da mídia Joan Fer­res, “se o lixo seduz é por que remete incons ci en te mente o espec ta dor às dimen sões mais obs cu ras de si mesmo […] por que atua como espe lho[!] incons ci ente das zonas mais tur vas do pró prio psiquismo”.

A cri a ção de meca nis mos viti má rios, que não é exclu sivo do espe tá culo, lhe vem muito bem a calhar, como o faz com a reli gião. Por esses meca nis mos, os alvos, ou obje tos, da vio lên cia são apre sen ta dos como sendo a razão dos males da soci e dade. Assim res pon sa bi li za dos, é pos sí vel con cor dar com a sua des trui ção. Ocorre, então, a trans for ma ção de uma pes soa, grupo, ou figura, em um mons tro que pre cisa ser exter mi nado. Nesse ponto, eleito o bode expi a tó rio, as pes soas podem saciar sua fome/sede de san gue sem se sen ti rem cul pa das por isso. Não se faz neces sá ria jus ti fi ca tiva melhor para o ata que aos ini mi gos da fé.

Para a indús tria espe ta cu lar, a grande cons ta ta ção é a de que “a cru el dade vende”. O pro duto disso, como cons ta tam os estu di o sos da mídia, é que as des gra ças huma nas se con ver te ram numa das prin­ci pais moe das de troca no mer cado tele vi sivo, no qual uma das prin ci pais tran sa ções con siste na comer ci a li za ção da dor. Nas meto ní mias espe ta cu la res, com que faci li dade as per so na gens espe ta cu­la res des fe rem gol pes, socos e pon ta pés, dis pa ram tiros, des troem car ros, explo dem casas, tor tu ram e são tor tu ra dos e, no final, saem rea li za dos e satis fei tos ficando assim jus ti fi cado o uso da violência.

Como o que é bom para a mídia, parece ser bom para certo seg mento reli gi oso, pelo menos para a parte mais ambi ci osa deste, vê-se o mesmo tipo de incre mento trágico-violento no dis curso e na prá­tica reli gi osa contemporânea.

Con clu são

Quando gente de igreja se queixa da vio lên cia, prin ci pal mente quando se vêem víti mas da vio lên cia urbana, não se dão conta de que nós mes mos, his to ri ca mente, somos “fiéis” e incan sá veis pro mo to res desse espí rito de vio lên cia. Basta, para isso, ler cri ti ca mente a nossa lite ra tura reli gi osa, ou aten tar para as letras dos nos sos hinos beli ge ran tes, ou os ser mões agres si vos dos líde res religiosos.

É esse caldo cul tu ral que banha a nossa fé. É esse subs trato cul tu ral que per pe tua uma fé de força e de vio lên cia. Tendo cons ci ên cia disso, não pode mos em nome da fé, com ba ter a vio lên cia, posto que com ba ter, por si só, já seria um ato de vio lên cia. Há que se bus car outras for mas de resistência.

Os exem plos de resis tên cia pací fica, de prá tica da não-violência, e de uma con duta pelo Espí rito, estão aí a nos cer car como nuvem de testemunhas/mártires. Seria um ver da deiro mila gre a mídia rom­per com seu com pro misso com o senso comum, sedento de vio lên cia, e ade rir ao bom senso da não-violência, ansi oso por paz.

Luiz Car los Ramos
Abril/2009

Violência, mídia e religião

 

Leave a Reply

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.