O que é o riso? Quais são seus significados? Como ele foi encarado ao longo da história? Esses são alguns dos questionamentos debatidos na IHU On-Line desta semana por Mario Fleig, Elias Thomé Saliba, Maria Generosa Ferreira Souto, Vera Machline, Henrique Rodrigues, Verena Alberti, José Rivair de Macedo, Marília Brandão Lemos de Morais e Abrão Slavutsky.
O riso e o hiato da condição humana
Dotado de força afirmativa, mas também subversiva, o riso demonstra a “eterna defasagem entre o que somos e o que deveríamos ser”, pondera o filósofo e psicanalista Mario Fleig. A partir da obra de Freud, o pesquisador analisa o significado do chiste e sua relação com uma verdade insuportável ao sujeito
Por: Márcia Junges
“Conciso, breve e criativo, o chiste não se confunde com a piada, ainda que ambos sejam produtores de prazer. A linguagem chistosa deixa irromper a verdade de forma indireta, com o máximo de sentido para um mínimo de suporte, ou seja, com o mínimo de palavras obtém um máximo de graça, deixando escapar algo inconciliável e insuportável. A verdade que aflora por meio do chiste é da ordem do real insuportável que acossa o sujeito”. A explicação é do filósofo e psicanalista Mario Fleig, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, analisando o conceito de chiste, proposto por Sigmund Freud. De acordo com o professor da Unisinos, um chiste que necessita de explicação perde sua graça. A condição necessária para um chiste provocar graça é o riso do Outro. “O riso do outro, como efeito do chiste, vem como o selo de autenticação de que ali houve um chiste. Se ele não ocorrer, se não se produz o laço social no rir juntos, mas vergonha por ter sido pego em flagrante, seria apenas um lapso”. O riso seria um tipo de alívio, “dispêndio psíquico decorrente da liberação da energia alocada na tensão”.
Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, em São Paulo, e em Psicologia pela Unisinos, Mario Fleig é mestre e doutor em Filosofia. Atualmente é professor titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em metafísica. Como psicanalista, é membro da Association Lacanienne Internationale e da Escola de Estudos Psicanalíticos. Com Jean-Pierre Lebrun organizou O mal-estar na subjetivação (Porto Alegre: CMC Editora, 2010) e O desejo perverso (Porto Alegre: CMC Editora, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que é um chiste? E qual é a sua relação com o inconsciente, como proposto por Freud?
Mario Fleig – O chiste faz parte de um conjunto diverso de fenômenos próprios do ser humano que produzem a graça e o riso. Freud se dedica a seu estudo, e o denomina pelo termo alemão Witz. Trata-se de um enunciado surpreendente e desconcertante que opera por meio dos recursos da linguagem, cuja técnica foi demonstrada por Freud, e provoca uma satisfação particular, tendo assim um importante papel na vida psíquica. E Freud estabelece a relação que o chiste tem com o inconsciente, como veremos logo a seguir.
Sugiro que consideremos o chiste a partir de um de seus efeitos: o riso. Mesmo que este não esgote o chiste, visto que os mistérios que o envolvem atravessam a história da humanidade, sabemos que o selo de autenticidade de um chiste irrompe no riso. Um chiste que precise ser explicado já não tem nada mais de chistoso, perdeu a graça. Por isso o que estamos elucidando aqui sobre o chiste não tem graça nenhuma, não nos faz rir e muito menos apresenta um lance criativo, como é peculiar ao chiste. Que a graça seja própria do ser humano já fora afirmado por Aristóteles em As partes dos animais ao escrever que “O homem é o único animal que ri”, atribuindo assim ao riso valor ímpar e apresentando a fisiologia do riso, que tem como elemento principal o diafragma. Outros autores retomarão esta linha de estudo, descrevendo as afecções corporais do riso, como o calor, o rubor, o estremecimento e até algumas minúcias das transformações da expressão facial. A busca por estudos acerca do risível acaba por nos remeter ao livro perdido de Aristóteles, em que algo da comédia estaria escrito. Posteriormente, Quintiliano , sob a influência da filosofia de Cícero , afirmara que “na verdade, todo o sal de uma palavra está na apresentação das coisas de uma maneira contrária à lógica e à verdade: conseguimos isso unicamente seja fingindo sobre nossas próprias opiniões ou sobre as dos outros, seja enunciando uma impossibilidade”.
Mistério e diversidade
Enfim, o riso não deixa de esconder seu mistério e sua diversidade: pode se apresentar agressivo, sarcástico, escarnecedor, amigável, etc., sob a forma da ironia, do humor, do burlesco, do grotesco, do cômico, do chistoso, etc. O riso é multiforme, ambivalente, ambíguo. Pode-se rir para não chorar. Pode expressar tanto a alegria pura quanto o triunfo maldoso, o orgulho ou a simpatia, assim como pode ser um riso aparentemente imotivado, expressando dramas subjetivos particulares, como se pode encontrar na psicose. O riso pode ser apaziguador, fascinante e até mesmo inquietante e assustador. Parece que o riso, por sua força afirmativa e ao mesmo tempo subversiva, por sua irrupção discreta ou escancarada, flutua sempre numa certa indeterminação e equivocidade. Ele indica o permanente hiato de que padece o ser humano, na encruzilhada do físico e do psíquico, do individual e do social, do divino e do diabólico: os animais não riem, assim como também os deuses. Parece que a fonte do riso se encontra na eterna defasagem entre o que somos e o que deveríamos ser, e não é por acaso que na tradição grega a tragédia desemboque na comédia. Por que rir é o melhor remédio?
A verdade de forma indireta
Então, se um dos efeitos do chiste é o riso, em que consiste o chiste? Vimos que Freud se debruçou com atenção sobre o enigma do riso por uma de sua formas: o chiste, Witz, com o qual se defrontou desde o início de seu trabalho clínico, nos casos de tratamento das histéricas. Ele postula que, se uma representação inconsciente for recalcada, ela poderá retornar de uma forma irreconhecível, para escapar da censura. As formas de retorno do recalcado são diversas, constituindo o que Lacan reuniu com a denominação de “formações do inconsciente”. São os sonhos, os lapsos, os sintomas, os chistes, etc. Estas formações, que encontram um terreno fértil no duplo sentido de uma palavra, a polissemia da linguagem, podem constituir a via que permite essas transformações, ou seja, contornar a censura. Foi assim, por exemplo, para aquela jovem que sofria de uma dor penetrante na fronte, dor que a remetia inconscientemente a uma lembrança remota de sua avó desconfiada, que a olhava com um olhar “penetrante”. Nesse caso, o inconsciente joga com o duplo sentido que a palavra “penetrante” adquire. De igual modo, é de forma similar que as coisas se dão no chiste ou dito espirituoso. Em razão disso, podemos afirmar, com Lacan, que as três grandes obras inaugurais de Freud, a Interpretação dos sonhos (1900), A psicopatologia da vida cotidiana (1901) e O chiste e suas relações com o inconsciente (1905), publicadas na aurora do século XX, são consagradas aos mecanismos de linguagem do inconsciente, inaugurando uma nova teoria do inconsciente, e complementada com seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905).
Não vamos aqui tentar percorrer a riqueza e a graça que perpassa a obra de Freud sobre os chistes, que na sua maioria somente podem ser apreciados em sua língua original, mas apenas indicar que ela se divide em três partes. A primeira, analítica, trata da técnica e das tendências do chiste; a segunda parte, sintética, elucida o mecanismo psíquico e linguístico gerador do prazer espirituoso, seus motivos e seu processo social; e finalmente a terceira parte, teórica, examina a relação do chiste com o sonho e o inconsciente e o distingue do cômico e do humor.
Conciso, breve e criativo, o chiste não se confunde com a piada, ainda que ambos sejam produtores de prazer. A linguagem chistosa deixa irromper a verdade de forma indireta, com o máximo de sentido para um mínimo de suporte, ou seja, com o mínimo de palavras obtém um máximo de graça, deixando escapar algo inconciliável e insuportável. A verdade que aflora por meio do chiste é da ordem do real insuportável que acossa o sujeito. A brevidade do chiste é o indicativo do sucesso criativo de seu principal mecanismo linguístico, a condensação, por meio da qual dois campos de significados em conflito se fundem, causando estupefação e surpresa. O termo utilizado por Freud para o significante enigmático, que deixa o sujeito siderado, é Verblüflung, estupefação, desconcerto, espanto, assombro, perplexidade. Ao mesmo tempo, diferente do que ocorre no ato falho ou no sintoma, que são metáforas fracassadas, no chiste ocorre um ato criativo, visível frequentemente na formação de um neologismo.
O riso do Outro como autenticação
Vejamos um singelo exemplo, referido por uma colega: Um menino, em sério conflito com seu irmão, no momento da oração, assim conclui o “Pai nosso”: “… livrai-nos do mala mém.” O cruzamento de duas cadeias de pensamento, uma manifesta e a outra latente, se faz pela condensação de “mal” + “mala” resultante do deslocamento do intervalo para a letra seguinte. Essa condensação permite então a irrupção da frase recalcada, reveladora dos pensamentos de agressividade endereçados ao irmão. Lembremos que a condição necessária para que esta frase seja um chiste é que ela produza o efeito do riso, e por isso ela precisa convocar o outro. O riso do outro, como efeito do chiste, vem como o selo de autenticação de que ali houve um chiste. Se ele não ocorrer, se não se produz o laço social no rir juntos, mas vergonha por ter sido pego em flagrante, seria apenas um lapso.
No chiste, aquilo que até então estava emudecido pode, enfim, tomar a palavra, visto que ao fazer rir o sujeito desarma o Outro, que até ali mantinha uma censura intransponível. E isso produz uma satisfação naquele que faz e/ou naquele que ouve um chiste. Como se explica esse prazer? O jogo de palavras e sua sonoridade poderiam nos remeter a um grande prazer sentido da infância e agora revisitado. Contudo, mais do que isso, Freud destaca que o êxito do chiste se encontra na particularidade da elaboração da frase que é então mais facilmente aceita pela censura, mesmo quando se trata de pensamentos rejeitados pela consciência. Assim, produz-se uma suspensão do recalcamento em curso e a liberação da energia utilizada para isso. É na liberação desta energia economizada que dá o prazer, definido por Freud como diminuição da tensão.
O chiste requer, então, um terceiro, cuja verdade é atestada pelo riso, ao passo que o cômico necessita apenas de dois polos, o eu e o objeto. Assim, uma gozação pode se fazer sobre uma determinada pessoa, que se encontra numa situação peculiar. Por exemplo, uma senhora vistosamente vestida que pisa em uma casca de banana e se estatela no passeio público pode ser algo muito cômico. Se isso acontecesse com uma trôpega senhora muito idosa certamente produzir um sentimento de pesar nos transeuntes. Deste modo, Freud insiste que a verdade, inicialmente inadmissível, que irrompe no dito espirituoso só vale como chiste quando enunciada para um terceiro, que ao rir irá atestá-la. Destaca-se assim a assunção subjetiva da função subversiva da fala, que já havia sido descoberta pelos gregos, como se pode ler na Retórica de Aristóteles, que encontra seu aval no terceiro, denominado por Lacan de Outro, que está para além do semelhante. O Outro, lugar da Lei, tanto é aquele que autentica a verdade da fala espirituosa que burla a censura assim como aquele que é subvertido, visto que passível de falha. Resulta, enfim, em uma subversão da posição do sujeito, pois o dito espirituoso rompe a sideração resultando da condição de gozo de estar à mercê do Outro, e dá à luz ao desiderium, ou seja, à de-sideração, quer dizer, ao desejo. Lacan localiza nesta operação a instância da letra no inconsciente, elemento material mínimo que, por propiciar a escrita de uma borda, faz cessar o gozo mortífero que assombrava este sujeito. Vemos, assim, que outras formações do inconsciente, como os lapsos de memória, os atos falhos e os sintomas, ainda que sejam retornos do recalcado inconsciente, não apresentam a dimensão criativa do chiste com seu poder subversivo.
IHU On-Line – Há uma necessidade psicológica em fazermos chistes? Por quê?
Mario Fleig – Por que rimos ou por que precisamos rir? Se o riso é o melhor remédio, como afirma a sabedoria popular, podemos supor que sua necessidade brota do mal que nos assola. Freud segue esta linha de raciocínio, que também encontramos em Kant . Este afirma em seu estudo A arte do gênio: “O riso é um afecção decorrente da súbita transformação de uma expectativa tensa em nada” (KANT, I. Os pensadores: Kant II. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 266). O riso parece consistir em um tipo de alívio, um dispêndio psíquico decorrente da liberação da energia alocada na tensão.
IHU On-Line – O que difere um chiste de uma piada?
Mario Fleig – Certamente que nem toda piada corresponde a um chiste. Para precisar a diferença entre ambos, vale inicialmente a diferença que Freud estabelece entre o chiste e o cômico. Se o chiste é sempre causa do riso, por meio de uma elaboração frasal produzida de propósito, o cômico é da ordem de um efeito resultante de um achado em situação. Uma situação é cômica, um dito é espirituoso. Assim, podemos ter piadas que podem ter graça ou não, visto que graça pode estar no desempenho do narrador, que então consideramos um bom contador de piada. Dentre os vários gêneros de piadas, temos, por exemplo, o uso de estereótipos, em que são confrontados dois pontos de vista. Basta o contador de piada introduzir o tema, dizendo: “Vocês sabem aquela do papagaio?”, e o clima já está formado. O mesmo ocorre se a narrativa incide sobre campos socialmente controversos e suficientemente conhecidos dos ouvintes, em que o texto parece querer dizer uma coisa, mas diz outra. Geralmente, a controvérsia gira em torno da sexualidade, das instituições (escola, religião, família, governo), das desgraças. Há pouco, em um quadro humorístico de Chico Anysio, o personagem, que parecia estar falando das cartas do baralho, se referia à liberação da “copa”, para que então outros ficassem com o “ouro”, assim como um coringa que se achava um rei, etc. Para que esta piada se produza, é preciso ter acompanhado as notícias relativas à liberação de verbas para obras públicas da Copa do Mundo no Brasil, assim como o papel desempenhado pelo ex-presidente Lula na política atual.
IHU On-Line – O objetivo de um chiste é o riso?
Mario Fleig – Como vimos antes, no caso do chiste, o riso é um efeito. O riso é o atestado de que ali se produziu um dito espirituoso. O cômico e a piada têm como objetivo fazer rir, ao passo que o chiste é uma elaboração produzida de propósito para suspender o recalcamento e, assim, liberar-se do mal-estar gerado pelo assombramento de estar à mercê do Outro, na forma de um gozo mortífero. Por isso, entendemos que o chiste é uma formação do inconsciente. Ou seja, ele ocorre de propósito no sentido que visa algo que ultrapassa a intenção consciente do sujeito. Neste sentido, Freud afirma que o chiste é uma formação do inconsciente, ao passo que outras formas de produzir riso operam com elementos pré-consciente e consciente.
IHU On-Line – No que consistia o estudo do riso empreendido por Aristóteles? Algum outro filósofo analisou esse tema?
Mario Fleig – Pouco sabemos sobre este suposto livro que faria parte da Poética de Aristóteles, além de suposições medievais de que teria existido e que, então, teria sido perdido. Ou ele nunca chegou a ser escrito, ou foi queimado no incêndio que destruiu a Biblioteca de Alexandria. Sua existência é uma suposição bem plausível, visto que a comédia é o que logicamente se seguiria à análise da tragédia, no estudo sobre a retórica do teatro.
O estudo sobre o riso é imenso e eu não poderia dar conta aqui da história do interesse sobre o tema na filosofia, na sociologia, nas artes, etc. Posso sugerir, entre outras, a obra magistral de Mikhail Bakhtin , A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e na Renascença, que retoma a história do riso do século do XIV ao século XVI.
IHU On-Line – Em O nome da rosa, a trama se baseia em livros que tiveram suas páginas envenenadas para que seus leitores morressem após folheá-las. Uma dessas obras era o segundo tomo de A poética, de Aristóteles. O argumento do Venerável Jorge, monge beneditino que havia embebido as páginas do livro com veneno, era que o riso matava o temor e, por conseguinte, a fé. Como podemos compreender essa afirmação? O que ela guarda de verdade, embora tenha sido feita dentro de uma obra de ficção?
Mario Fleig – O nome da rosa, do escritor italiano Umberto Eco , traduz de forma literária a importância do aristotelismo para o pensamento cristão medieval. Trata-se de uma trama policial, como reverberações múltiplas da literatura ocidental, da filosofia e da ciência, que se desdobra em torno de um livro misterioso, um tratado de Aristóteles sobre como o riso pode auxiliar na busca pela verdade, que acaba por levar vários monges à morte em uma abadia medieval.
O Venerável Jorge de Burgos, monge responsável pela biblioteca do mosteiro para o qual se encaminha William de Baskerville, afirma que a obra deveria ser destruída justamente por ter sido escrita por Aristóteles. A influência do pensador grego era tamanha que, ao endossar o riso e o escárnio como fontes válidas para se chegar ao conhecimento da verdade, Aristóteles poderia desencadear o caos na sociedade, uma vez que, ao rirem do mundo, os homens espantariam o temor ao demônio e perceberiam como Deus era desnecessário, produzindo-se um colapso geral. Assim, o verdadeiro perigo viria deste livro, pois ele é que poderia contaminar os doutos, e não do riso das pessoas simples e medíocres. O riso poderia afastar o indivíduo de Deus, ao passo que o livro de Aristóteles afastaria os doutos do caminho da razão e da verdadeira sabedoria, e aí se encontrariam o verdadeiro perigo. Vejamos esta argumentação nas próprias palavras do Venerável Jorge de Burgos:
“O riso libera o aldeão do medo do diabo, porque na festa dos tolos também o diabo aparece pobre e tolo, portanto controlável. Mas este livro poderia ensinar que libertar-se do medo do diabo é sabedoria. Quando ri, enquanto o vinho borbulha em sua garganta, o aldeão sente-se patrão, porque inverteu as relações de senhoria: mas este livro poderia ensinar aos doutos os artifícios argutos, e desde então ilustres, com que legitimar a inversão. Então, seria transformado em operação do intelecto aquilo que no gesto irrefletido do aldeão é ainda e afortunadamente operação do ventre. Que o riso é próprio do homem é sinal do nosso limite de pecadores. Mas deste livro quantas mentes corrompidas como a tua tirariam o silogismo extremo, pelo qual o riso é a finalidade do homem! O riso distrai, por alguns instantes, o aldeão do medo. Mas a lei é imposta pelo próprio medo, cujo nome verdadeiro é temor a Deus. E deste livro poderia partir a fagulha luciferina que atearia no mundo inteiro um novo incêndio: e o riso seria designado como arte nova, desconhecida até de Prometeu, para anular o medo. Para o aldeão que ri, naquele momento, não lhe importa morrer: mas depois, acabada sua licença, e a liturgia impõe-lhe de novo, de acordo com o desígnio divino, o medo da morte. E deste livro poderia nascer a nova e destrutiva aspiração a destruir a morte por meio da libertação do medo. E o que queremos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais benéfico e afetuoso dos dons divinos”.
Como oposição à pretensão de ter a verdade absoluta e à certeza de ser a “mão de Deus”, o frade Baskerville pondera que “talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a única verdade é aprendermos a nos libertar da paixão insana pela verdade.”
IHU On-Line – Por que o riso foi considerado, por vezes, demoníaco, uma vez que é prerrogativa exclusivamente humana?
Mario Fleig – Sabemos que um importante suporte das religiões é o temor dos deuses, sendo que a estratégia de cindir a divindade em duas, uma boa e protetora e a outra maléfica, permite que a primeira seja fortalecida pelo incrementado temor na segunda. Uma das hipóteses para o aumento do temor ao demônio, que se constata no período medieval e perdura até nossos dias, seria decorrente do incessante enfraquecimento do temor a Deus. Assim, quanto mais se teme ao inimigo, maior deve ser o poder daquele que nos protege. Essa hipótese poderia ser verificada pelo exame do lugar que o demônio ocupa nas assim denominadas igrejas neopentecostais no Brasil. Ora, no período medieval surgem formas novas de contestação, porta de entrada para o demônio, colocando em perigo o poder da divindade: o demônio do meio-dia, ou seja, a preguiça como expressão da melancolia, a nascente ciência moderna e sua racionalidade, e o antigo riso. Todas elas são consideradas como manifestação do demoníaco a ser combatido. São os novos poderes do demônio, que requerem uma divindade forte e firme. Assim, o antigo poder catártico e subversivo da tragédia e da comédia gregas, que preconizava o benefício libertário das lágrimas e do riso, era inaceitável para a ortodoxia medieval, que via nela a obra do demônio. Além disso, apesar de ser reconhecido como próprio do homem, o riso em geral era censurado à luz do argumento de que Jesus, modelo supremo do humano, não teria rido em sua vida terrena. Enfim, o riso e o humor, por seu poder subversivo, tenderiam a profanar e a zombar do sagrado, e nisso consistir seu poder demoníaco a ser combatido.
IHU On-Line – Em que aspectos é possível estabelecer uma relação entre o riso e o trágico?
Mario Fleig – O trágico e o cômico fazem parte das múltiplas respostas do homem confrontado com o paradoxo de sua existência. Seria o riso a melhor resposta para esse paradoxo? O humor não seria o valor supremo que permite aceitar sem compreender, agir sem desconfiar, assumir tudo sem levar nada a sério?
Sabemos que as tragédias gregas costumavam constituir uma trilogia: a primeira apresentava o conflito, como Édipo Rei , na trilogia de Sófocles ; a segunda tratava do desdobramento dos efeitos do conflito, como Antígona ; e a terceira apresentava uma solução do conflito, como Édipo em Colono . A comédia, ou seja, a dimensão do riso, viria como a solução da tragédia.
A tragédia surge na Grécia a partir do culto ao deus Dionísio , dentro da trama de narrativas denominadas de mito que delimitam o que chamamos de trágico. Assim, o trágico não se restringe ao âmbito das tragédias do teatro, mas é algo que define a especificidade da condição humana, à medida que é nele que se realiza o que há de mais estranho no estranho, como se enuncia no primeiro coro da Antígona de Sófocles: “Muitas são as coisas estranhas, nada, porém, há de mais estranho (to deinataton) do que o homem” (v. 332).
O riso da comédia e do cômico não se confunde com o mesmo efeito produzido pelo chiste e pelo humor, e funciona como um automatismo psíquico pré-consciente. O humor apresenta um riso entre parênteses, recatado, ao passo que o chiste resulta de um processo inconsciente que, com a autorização do sujeito, confessa a verdade que ser para ficar calada.
Contradição existencial
O humor, mesmo que possa se prender ao inconsciente, consiste para Freud em uma contribuição do supereu para o cômico. O ponto de intersecção destas diferentes modalidades de riso se encontra se encontra no centro do culto ao deus Dionísio, o falo. Este falo simbólico que opera sua função somente se velado faz surgir a verdade do sujeito na revelação específica do cômico, visto que ele presentifica o desejo inconfessado no instante em que se dá a queda do falo. Assim, poderíamos ler o exemplo que referi acima, da senhora chique que escorrega em uma casca de banana e se estatela no passeio público, acompanhada pelo olhar de gozação dos transeuntes. Do que é mesmo que eles riem?
Retornamos sempre ao mesmo ponto, ou seja, como lidamos com esse estranho em nós mesmos? Voltando ao trágico, este pode se apresentar em relatos aparentemente banais da vida cotidiana, como o jovem se queixava a respeito de suas dificuldades em progredir na vida, tanto no trabalho quanto no estudo, e muito mais ainda em sua vida amorosa. Logo se lembra de pensamentos fugidios que o atormentam, dos quais consegue situar um: tem um pensamento terrível de que seu pai iria morrer se ele não fizesse determinadas coisas. Não se sente à vontade para falar destas coisas, pois as considerava idiotas. Finalmente as revela: para que seu pai não viesse a morrer por sua causa, deveria contar até quatro e depois descontar até zero ou dar três passos para frente, três para o lado e depois recuar os três passos e assim por diante. Parece-nos que sua narrativa apresenta a dimensão trágica de sua vida, presente no paradoxo entre avançar um tanto e recuar na mesma proporção, de modo a jamais sair do lugar. Estava paralisado por uma contradição existencial. O que poderia acontecer para que pudesse transpor tal impasse, ou seja, deixar cair o gozo deletério de seu sintoma? Semelhante ao percurso literário e social que a inventividade dos gregos construiu, da transformação do trágico em uma trilogia e a irrupção do riso na comédia, o percurso em um tratamento psicanalítico leva o sujeito a poder se apropriar de sua tragédia e, até mesmo, chegar a rir da banalidade de seu destino, renunciando então a gozar do ódio.
IHU On-Line – Podemos dizer que o chiste, o humor e o riso são formas de lidar com o mal-estar? Por quê?
Mario Fleig – Freud escreveu um pequeno artigo denominado O humor (1927), reiterando que a fonte de prazer deste provém da economia de um dispêndio afetivo que uma situação de mal-estar produz, ou seja, que o humor é gerador de um ganho de prazer para si ou para o espectador, de modo semelhante ao que se passa no chiste e no cômico. Contudo, ele apresenta uma novidade, ao afirmar que “o humor não só tem algo de libertador, sendo análogo nisso ao chiste e ao cômico, mas também tem algo de sublime e patético, traços que não encontramos nesses dois outros modos de obter prazer mediante uma atividade intelectual. Evidentemente, o sublime reside no triunfo do narcisismo, da vitoriosa confirmação da invulnerabilidade do eu. O eu recusa-se a se deixar abater e sucumbir ao sofrimento ocasionado pela realidade externa; recusa-se a admitir que os traumas do mundo externo o possam afetar, e ainda mostra que são para ele apenas oportunidades de obter prazer.”
O exemplo cabal do senso de humor irrompe na frase do condenado à forca que na segunda-feira, ao ser levado para o patíbulo, declara para seu carrasco: “Começamos bem a semana!” Não é uma frase de queixa e resignação, mas de oposição, que indica, além do triunfo do eu, a afirmação de um prazer apesar das circunstâncias desfavoráveis. Como meio de defesa contra a dor, o humor, assim como o chiste e o cômico, “ocupa um lugar dentro da grande série dos métodos que a vida anímica do ser humano construiu com o intuito de escapar da compulsão ao sofrimento, série que se inicia com a neurose e culmina no delírio, e na qual se incluem a embriaguez, o abandono de si, o êxtase”, afirma Freud.
Enfim, a sabedoria popular nos diz que “rimos para não chorar” ou que “rir é o melhor remédio”. Que verdade encontramos nestes provérbios? Se seguirmos as formulações de Freud, entendemos que nos encontramos com as diferentes elaborações e transformações da pulsão de morte, que, em vez de seguir a via direta da destruição, faz um contorno do estranho e impossível e cria algo diferente. No riso, ainda que seja de escárnio e repúdio, há um instante de suspensão do desejo de pura destruição de si e do outro. Instante que pode circunscrever outra coisa.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3959&secao=367
As raízes do riso e a ética emocional brasileira
Experiência humana diversificada, o riso popular permitiu o surgimento do humor como arma política contra a repressão, criando produções ambíguas, não inocentes e espécie de “espelho da sociedade, embora distorcido”, frisa o historiador Elias Thomé Saliba
Por: Márcia Junges
De acordo com o historiador Elias Thomé Saliba, o riso brasileiro nasceu “para compensar um déficit emocional em relação aos sentidos da história brasileira; ela misturou-se à vida cotidiana, daí a sua constante remissão à ética individual. Entre a dimensão formal e pública e o universo tácito da convivência personalista construiu-se uma fragmentada representação cômica do país, dando ao brasileiro, naqueles efêmeros momentos de riso, a sensação de pertencimento que a esfera política lhe subtraíra”. Assim, as raízes do riso em nosso país estão ligadas a essa “ética emocional”. A criação da linguagem humorística por aqui deve ser compreendida a partir da “abertura proporcionada pela imprensa moderna, juntamente com uma crise de valores culturais, no plano mundial – e, no caso brasileiro, as expectativas geradas pelo advento da República”. Saliba acentua que “a produção humorística é um espelho no qual as sociedades podem mirar-se – mesmo quando as piadas sejam vistas como ‘ruins’ ou de ‘mau gosto’”.
E completa: “Tudo indica que pelo humor, o brasileiro apropriava-se, por momentos, do espaço público, que lhe era negado pelo poder republicano nas suas mais variadas e perversas formas de exclusão social”. Espécie de arma política contra o poder repressivo, o riso entre os brasileiros adentra até os territórios santos: Thereza de Lisieux aqui é chamada de Santa Terezinha. “Usamos de diminutivos para quebrar hierarquias e tornar tudo próximo, porque temos horror das distâncias sociais, que são enormes. Não conseguimos ver o mundo sem emoção, distinguir o público do privado. Vem das nossas raízes ibéricas. O brasileiro não resiste muito à seriedade”. As declarações foram feitas por e-mail à IHU On-Line.
Elias Thomé Saliba é professor titular de Teoria da História na USP, historiador especializado em História Cultural, com foco na história do humor e das formas cômicas. Entre suas publicações mais importantes estão os livros Raízes do riso (3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008) e As Utopias Românticas (2. ed. São Paulo: Estação Liberdade,2004); organizou as coletâneas, História e Música no Brasil (São Paulo: Alameda, 2010) e História e Cinema; dimensões históricas do audiovisual (São Paulo: Alameda, 2008); escreveu ainda os capítulos “A dimensão cômica da vida privada na República”, que integra o vol. 3 da História da Vida Privada no Brasil (12. ed., Cia. das Letras, 2010) e “Histórias, memórias, tramas e dramas da identidade paulistana”, que integra o vol. 3 da História da Cidade de São Paulo (São Paulo: Paz e Terra, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as raízes do riso na representação humorística do dilema brasileiro? O que é esse dilema?
Elias Thomé Saliba – Foi exatamente esta a questão que me formulei durante todo o tempo da pesquisa, que durou mais de cinco anos e originou o livro Raízes do riso. No livro procuro mostrar que o humor não produz identidade, pelo contrário, ele questiona, pela sátira, as falsas identidades, que sempre estiveram comprometidas com o poder. Aliás, esta é a grande questão do livro: por que representar o país, os brasileiros, a sociedade e a história na forma efêmera e passageira de uma piada?
Uma resposta já se mostrava no quadro geral da história do país: porque que a história brasileira não cria e não criou nenhuma identidade autêntica e duradoura, ela apenas ajudou a segregar, a isolar a maior parte da população – não criou espaços públicos – tudo isto se acentuou na Belle Époque brasileira, após a Abolição e a República, que prometeram muito e, na realidade, realizaram pouco ou quase nada.
Em muitos casos, o riso brasileiro nasceu assim, como que para compensar um déficit emocional em relação aos sentidos da história brasileira; ela misturou-se à vida cotidiana, daí a sua constante remissão à ética individual. Entre a dimensão formal e pública e o universo tácito da convivência personalista construiu-se uma fragmentada representação cômica do país, dando ao brasileiro, naqueles efêmeros momentos de riso, a sensação de pertencimento que a esfera política lhe subtraíra. O livro todo é sobre isto e seu título foi colocado de propósito.
Com uma inspiração oblíqua no clássico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda , Raízes do riso sugere, numa interpretação mais libertária da obra desse autor, que as raízes históricas devem ser bem conhecidas para serem melhor extirpadas, já que a representação humorística do mundo, implícita na cultura brasileira, é uma invenção histórica e, tal como a vida, ela pode ser modificada, reinventada, transformada.
Mas, não é um retorno puro e simples ao “homem cordial” que está em Raízes do Brasil. Nunca é demais lembrar que Sérgio Buarque de Hollanda sempre ressaltou que ele utilizava a metáfora do cordial no seu verdadeiro sentido, ou seja, relacionado ao coração – a sede dos sentimentos, e não apenas dos bons sentimentos –, ora as raízes do riso brasileiro estão relacionadas a esta ética emocional.
IHU On-Line – Quais são as maiores diferenças entre o humor da Belle Époque brasileira àquela dos primeiros tempos do rádio?
Elias Thomé Saliba – As coisas não devem ser colocadas apenas sob a forma de diferença. Há vários anos realizando pesquisas na área de História do Brasil no começo da República, chamou-nos a atenção a quantidade da produção cômica brasileira, muito superior a de outros países neste período conhecido como Belle Époque (cobrindo as duas décadas finais do século XIX até o fim da I Guerra Mundial, em 1918). Daí meu esforço por tentar entender como nasceu a linguagem humorística brasileira. A Belle Époque foi a época que viu nascer o jornalismo moderno. Foi neste período que, no Brasil, surgiram as revistas semanais ilustradas, que continham seções fixas de humor e de caricaturas e, ainda, de publicidade. Este último aspecto também foi importante porque a grande maioria dos humoristas brasileiros criou anúncios publicitários. Em termos mundiais, a Belle Époque foi uma espécie de resumo do que seria o século XX, com todas as benesses da Revolução Tecnológica mas também com todas as tristes perversidades, anunciadas pela guerra de 1914.
A abertura proporcionada pela imprensa moderna, juntamente com uma crise de valores culturais, no plano mundial, e, no caso brasileiro, as expectativas geradas pelo advento da República é que possibilitaram a criação de uma peculiar linguagem humorística brasileira. Esta linguagem múltipla, variada, concisa e eclética – porque misturava música, anúncios publicitários, dança e marchinhas de carnaval, cantadas no teatro de revista – transfere-se, com poucas adaptações, para o rádio, nas décadas de 1930/1940. O humorista brasileiro típico era alguém que já tinha um pé na cultura verbal mais culta e um outro pé numa cultura mais popular – daí sua capacidade de produzir um linguagem humorística compreensível a todos.
IHU On-Line – Sob quais aspectos o humor é expressivo da época em que é produzido?
Elias Thomé Saliba – O humorista faz um retrato instantâneo e efêmero da história das sociedades, mas nem por isso, menos verdadeiro. A anedota colocada na abertura do livro – um inglês, um francês e um alemão descrevendo um camelo (a qual eu acrescentei também um brasileiro) – mostra que quase toda piada (não apenas as chamadas “piadas étnicas”) exige uma espécie de cultura silenciosa para o seu completo entendimento. A produção humorística é um espelho no qual as sociedades podem mirar-se, mesmo quando as piadas sejam vistas como “ruins” ou de “mau gosto”.
Outra das teses centrais do livro é que quando o rádio brasileiro, nos seus primeiros tempos, precisa de uma linguagem rápida, concisa, feita daquelas palavras “portáteis à memória” na expressão de Bastos Tigre (humorista do começo do século XX, criador de lemas famosos, como “Se é Bayer é bom”) – ele vai encontrá-la na produção humorística. Agora, não se pense que é uma linguagem “culta”. Pelo contrário, é uma linguagem que surge da mistura das duas culturas: uma mais culta e a outra mais “popular”. É por isto que chamei a linguagem humorística brasileira quase da mesma forma que Mário de Andrade chamou a autêntica música brasileira: o “ruim gostoso”.
Mas, afinal, por que tanta produção humorística? O livro sugere a existência, no Brasil, de uma espécie de cultura tácita, silenciosa – embora hipócrita – de ampla aceitação daquela música ritmada e daquele humorismo impertinente, talvez porque tais elementos já faziam parte da vida cotidiana de cada um. Ninguém admitia publicamente gostar do samba ritmado, herdado do “maxixe desavergonhado”, das piadas de caipiras ou das anedotas obscenas. Mas dificilmente resistia à sedução de tamborilar com os dedos, chacoalhar os pés ou ouvir e difundir, ao pé do ouvido, “a última piada”. Parece que a sociedade delegava aos humoristas, os “palhaços por um dia” ou “engraçados arrependidos”, a representação, em relances rápidos e efêmeros, desses desejos sutilmente recalcados ou encobertos. Tudo indica que, pelo humor, o brasileiro apropriava-se, por momentos, do espaço público, que lhe era negado pelo poder republicano nas suas mais variadas e perversas formas de exclusão social.
IHU On-Line – Uma inovação do humor em nossos dias é o programa jornalístico CQC. Como compreender que se pode informar através do humor?
Elias Thomé Saliba – Aquilo não é um programa jornalístico, é um programa humorístico. Agora, se o público entende que é um programa jornalístico – isto diz muito sobre o público que o assiste. Ou seja, continua sendo um público que só consegue lidar com a informação no tom da galhofa – estamos, de novo, em pleno país da piada pronta.
IHU On-Line – Há um humor tipicamente brasileiro, uma linguagem dessa natureza que nos diferencia dos demais países?
Elias Thomé Saliba – Eu acho que é difícil definir uma vocação típica do humor, não só brasileiro, mas de qualquer outra cultura, porque o humor é uma modalidade de experiência tão diversa, tão multifacetada, que é difícil teorizar sobre ele. Mas eu arrisco: eu acho que o humor brasileiro típico é paródico. Mas não paródia no sentido original, de “canto paralelo”. A vida do brasileiro é tão cheia de incongruências que, para fazer humor, ele faz uma paródia da vida real. Eu me lembro aqui, por exemplo, da frase do Paulo Emílio Salles Gomes analisando o Mazzaropi e a chanchada: ele dizia que nossa capacidade paródica resulta “daquela nossa incapacidade criativa de copiar…” Eu acho que isso tem a ver com a nossa história brasileira, porque, se a realidade já é engraçada, basta que façamos uma paródia do real. Eu vou citar um exemplo de que eu gosto muito e que está narrado em detalhes no meu livro: em 1912, quando se abriu a Avenida Central no Rio de Janeiro, durante a grande reforma urbana que a cidade sofreu, o único prédio que ruiu por erro de cálculo foi o do Clube de Engenharia. Ao viajante alemão, que contaram a mesma história, ele perguntou: “Mas isto é uma piada?” Resposta: “Não é uma piada. É um fato. Aconteceu realmente”. E aí vem o dilema: se a realidade já é engraçada, não há contraste para produzir o senso de humor…
Experiência humana diversificada
O humor, em geral, é um dos mais elevados instrumentos de comunicação. Rir aproxima as pessoas, provoca suas emoções e mobilizam suas mentes – além, é claro, de aliviar a tensão. Isto é universal. Basta ver alguns ditados folclóricos que são comuns a todos os povos, tanto ocidentais como orientais, e que existem, com pequenas alterações, em todas as línguas – como “O mais perdido dos dias foi o dia em que não se riu”, ou “Quem não sabe sorrir, não deve abrir uma loja.”
Como produção cultural, o humor exerceu um papel importante em várias sociedades e em várias épocas. Tanto na Antiguidade quanto no período medieval, o humor era mais difuso por não existir ainda uma separação entre as esferas pública e privada. A comédia originalmente era um evento no qual todos participavam e todos riam em conjunto. Quando a modernidade cria propriamente uma esfera pública – o que ocorre, na história ocidental, entre os séculos XVII e XVIII – é que o humor se fortalece como uma das mais disseminadas e universais formas de comunicação, já que todos os comportamentos humanos ganham repercussão coletiva (pública), suscitando reações emocionais (que incluem, é bom que se digam, tanto o choro quanto o riso).
Mas o riso é uma experiência humana tão diversificada que não necessariamente ele resulta sempre do “bom humor”. Portanto, como ele é uma experiência extremamente rica e variada, ele se liga a muitos aspectos da vida humana. É impossível enumerar todos. Por exemplo, o humor seduz? Sim, primeiro porque ele tende a produzir intimidade e proximidade. Neste sentido, rir é como almoçar ou jantar juntos – em certos casos, favorece até a aproximação sexual.
Lembrar, portanto, que o humor – sobretudo o humor que nasceu com o século XX – possui uma fortíssima vocação para a ambiguidade: se uma piada agrada e gratifica alguns, ela acaba por ferir outros. Não há remédio. Se fui eu quem escorreguei na casca de banana, eu não vou rir… Se o escorregão for de alguém que tem poder (político, pessoal ou qualquer outro), ele não só não vai rir, como vai proibir os outros de rirem.
IHU On-Line – Em que medida rir é uma transgressão política? Nesse sentido, como podemos compreender o papel das charges e, recentemente, daquelas feitas saudando a morte de Bin Laden?
Elias Thomé Saliba – A esfera política sempre foi motivo de chacota porque as pessoas que participam da vida pública são iguais a todas as outras no plano individual. Esta diferença suscita ambiguidades que constituem o motor do riso e da piada. Hoje, a esfera política é mais sujeita à chacota e ao riso cínico talvez porque os grandes projetos políticos de transformação social mostraram-se utópicos e falharam. Numa época de crise de utopias, as sociedades regridem emocionalmente à sátira, à derrisão e ao humor. As pessoas riem das desgraças alheias, mas também das próprias desgraças. A produção humorística é ambígua. É o “doa a quem doer”. Não é inocente, é um espelho da sociedade, embora distorcido.
No caso brasileiro tudo isso é muito mais forte porque o que caracteriza a história brasileira é a eterna confusão entre as esferas pública e privada e nossa vocação – que, gradativamente, temos esperança de superar – para tratar tudo emocionalmente, reduzindo as distâncias sociais. Chamamos esta vocação de síndrome de Santa Terezinha. A santa francesa Thereza de Lisieux , transforma-se aqui em Terezinha – ou seja, até os santos partilham de nossa vida privada, tornando-se mais próximos de nós. Usamos de diminutivos para quebrar hierarquias e tornar tudo próximo, porque temos horror das distâncias sociais, que são enormes. Não conseguimos ver o mundo sem emoção, distinguir o público do privado. Queremos transformar o público numa coisa nossa, pessoal. Vem das nossas raízes ibéricas. O brasileiro não resiste muito à seriedade. Quanto Ayrton Senna morreu, em menos de 24 horas já circulavam anedotas.
Por outro lado, o humor, por mais agressivo que seja, incentiva a sociabilidade, sublima a agressão, administra o cinismo e, em alguns casos, estiliza a violência, dissolvendo-a no riso. “Fiquem tranquilos: nenhum humorista atira para matar”, diz Millôr Fernandes .
Um efeito libertador
Mas o riso também é a arma social dos impotentes. No decorrer da história, o próprio riso popular permitiu que se criasse, cada vez mais, uma cultura da divergência, ativa e oculta, mostrando como o humor se tornou uma arma política importante contra os regimes repressivos. Se não se pode mudar a história real, muda o sentido dela. O riso, a piada é essencialmente alteração de sentido, reversão de significado.
No caso brasileiro, humor e riso compensam também a falta de identidade. Uma sociedade mal costurada, que sempre praticou a exclusão. Brasileiros só se sentem brasileiros em momentos emocionais, rápidos e circunstanciais – quando toca o Hino Nacional, tem jogo da Seleção. O humor funciona como o Carnaval e o futebol para o brasileiro ter este momento de identidade.
Para os indivíduos, a disposição de rir das tolices da humanidade sempre foi considerada pela medicina como um meio de preservar a saúde (aliviar o excesso de bílis ou de adrenalina que, em excesso, produz a melancolia e as doenças). Talvez isto funcione para a sociedade brasileira também. É o rir para não chorar. Porque as pessoas que riem das piadas guardam resíduos de emoções que lhes vão permitir rir das maldades, dos preconceitos e das falcatruas reais. Quando as pessoas não riem é pior, pois os ressentimentos são recalcados, o que talvez explique porque o humor, sob quaisquer de suas formas – pela graça ou pela inteligência –, tenha um efeito libertador.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3965&secao=367
A fisiologia do riso e a “moderação” da alegria
Objeto de interesse por pensadores ao longo da história, o riso recebeu inúmeros rótulos, como verdadeiro e falso, ressalta Vera Cecília Machline. Gargalhadas desenfreadas eram desaconselhadas, uma vez que também a alegria precisava ser “moderada”
Por: Márcia Junges
Desde remotas épocas o riso atraiu a curiosidade dos pensadores. No século XVI, por exemplo, havia a distinção entre o riso “verdadeiro” e “falso”. Para o médico de Montepllier Laurent Joubert, o riso “genuíno” era aquele causado sobre coisas ridículas. Por outro lado, o riso considerado “bastardo” teria como origem causas “mórbidas”, “como ruptura do diafragma, um baço enfermo ou algum desequilíbrio humoral; se não, resulta do consumo excessivo de vinho ou açafrão, ou ainda da ingestão de duas plantas lendárias: gelotophyllis e herba sardonia, a primeira literalmente ‘folhas de riso’”. A explicação é da pesquisadora Vera Cecília Machline, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Ela explica que precisou rever a hipótese inicial de sua pesquisa de doutorado, intituladaFrançois Rabelais e a fisiologia do riso do século XVI: a terapêutica médico-satírica de Gargântua e Pantagruel. Isso porque uma de suas conclusões foi a aversão de vários pensadores quinhentistas a gargalhadas desenfreadas. “Primeiramente, o riso exagerado era contrário aos preceitos médicos vigentes na época, que recomendavam moderação inclusive na alegria. Em segundo lugar, rir desbragadamente afigurava-se característico de camponeses rudes e do zé-povinho e, como tal, impróprio para integrantes da nobreza e da burguesia então nascente”. Outros temas analisados por Vera Machline são o uso de uma terapêutica do riso em hospitais, e o conceito de gelotofobia, ou seja, o medo de ser ridicularizado.
Vera Machline é graduada em Letras pela Faculdade Ibero-Americana de Letras e Ciências Humanas, mestre e doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, onde também cursou pós-doutorado. Atualmente, leciona no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência, nessa mesma instituição.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que o riso se destaca na história do pensamento?
Vera Machline – O riso é um assunto fascinante porque, embora já se tenha cogitado muito sobre sua natureza, ainda sabemos pouco a respeito. Ademais, rimos pelos mais diversos motivos: não só diante de uma história engraçada ou uma situação incongruente, mas também por conta de ansiedade ou alívio, surpresa ou frustração, raiva ou afeição, timidez ou desejo de esconder pensamentos pessoais – sem falar de cócegas e da ingestão de determinadas substâncias tóxicas.
Aliás, conforme apurei durante meus estudos de doutoramento, tratados sobre a arte da oratória de Cícero (106-43 a.E.C.) e Quintiliano (c. 25-c. 96) revelam que os antigos romanos já sabiam serem múltiplas as causas do riso. Adicionalmente, em virtude da preocupação dos latinos com o decoro a ser observado no uso do riso na retórica, os romanos tinham mais de uma dúzia de termos para distinguir diferentes tipos de gracejos, como, por exemplo, facetiae, sal, urbanitas, iocus, hilaritas, ludo e acutum.
IHU On-Line – Quais são as diferenças entre sátira, comédia e humor?
Vera Machline – No meu entender, a vertente satírica cultivada pelos antigos romanos ainda é um corretivo social; ou seja, um instrumento para censurar atitudes e comportamentos indesejáveis. A rigor um gênero teatral, comédia hoje se aplica até nas surpresas que a vida nos traz. Já humor, que no século XVIII designava o gracejo típico dos ingleses, aos poucos ampliou sua gama denotativa, ao ponto de agora significar qualquer estímulo cognitivo capaz de despertar divertimento ou graça. Em outras palavras, à semelhança de um prodigioso guarda-chuva, humor atualmente abarca toda sorte de modalidades sério-cômicas, jocosas e derrisórias atinentes aos mais variados gêneros retóricos, dramáticos, literários, gráficos e até musicais.
IHU On-Line – Quais as principais conclusões de sua tese de doutorado “François Rabelais e a fisiologia do riso do século XVI: a terapêutica médico-satírica de Gargântua e Pantagruel”?
Vera Machline – Para começar, essa tese – defendida em 1996 junto do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, da PUC-SP – versa sobre as divertidas crônicas, hoje reunidas sob o título Gargântua e Pantagruel, que imortalizaram o médico humanista François Rabelais (c. 1494-1533). Mais precisamente, enfoca a intenção advogada por Rabelais de “dar por escrito um pouco de alívio” a “aflitos e enfermos”, assim como a pessoas passando por aborrecimentos ligeiros, como alguém da nobreza que perdeu uma caça. Outrossim, sustenta a possibilidade de Rabelais também pretender revigorar com suas brincadeiras satíricas a sociedade de seu tempo.
Cumpre esclarecer ainda que, como resultado da orientação escolhida, em vez de ser um estudo literário, essa tese se pautou nas diretrizes metodológicas mais recentes da História da Ciência. Isto, entre outras consequências, me levou a buscar entender como o riso era considerado na época de Rabelais e a levantar fontes quinhentistas tratando do riso, uma vez que as crônicas de Rabelais adiantam muito pouco sobre o assunto.
Ao fim, cheguei a diversas conclusões, algumas inesperadas. Dentre outras, destaca-se o fato de que o riso atraiu a curiosidade de vários pensadores renascentistas. Um motivo foi o postulado “o riso é o próprio do homem”. Citado em Gargântua e Pantagruel, esse axioma deriva da Isagoge de Porfírio (c. 234-c. 305) às categorias lógicas de Aristóteles (384-322 a.E.C.). Outro fator parece ter sido a então recente “redescoberta” da Poética aristotélica, que traz no Capítulo V uma definição do risível. Mas, por ser reticente e por dizer respeito à Comédia Antiga ateniense, sua compreensão provou-se difícil. Mesmo assim, instigou vários tradutores da Poética a tentarem reconstruir a teoria aristotélica do móvel do riso. Como seria de se esperar, as propostas dificilmente coincidiram, haja vista que, na versão de Eudoro de Souza , a Poética aristotélica define o risível como “apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de] dor.”
Ao ler escritos do século XVI sobre o riso, surpreendeu-me a distinção de alguns autores entre riso “verdadeiro” e “falso”. Por exemplo, segundo o médico de Montpellier Laurent Joubert (1529-1582), riso “genuíno” é aquele que provém da apreensão de alguma coisa ridícula. Já o riso “bastardo” advém de sortidas causas, em sua maioria mórbidas, como ruptura do diafragma, um baço enfermo ou algum desequilíbrio humoral; se não, resulta do consumo excessivo de vinho ou açafrão, ou ainda da ingestão de duas plantas lendárias: gelotophyllis e herba sardonia. Literalmente “folhas de riso”, a primeira seria um termo de origem grega para o gênero Cannabis, enquanto que a segunda parece dizer respeito à espécie Ranunculus sceleratus Linnaeus.
Riso terapêutico
Falando de antigas lendas em voga no Renascimento, foi uma delas que me permitiu confirmar as intenções satíricas de Rabelais em Gargântua e Pantagruel. Trata-se da fabulosa história que associa grande sabedoria ao riso sistemático – mesmo diante infortúnios – do pré-socrático Demócrito de Abdera (c. 460-c. 370 a.E.C.), hoje melhor lembrado por ter dado continuidade ao atomismo de seu mestre Leucipo (fl. c. 430), doutrina essa que posteriormente retomada por Epicuro (341-270 a.E.C.). A história em questão é narrada num conjunto de 12 cartas anônimas, escritas entre os séculos I a.E.C. e II E.C., sugerindo que o riso de Demócrito era terapêutico por apontar falhas e encaminhar as pessoas em direção à virtude.
Uma conclusão que me obrigou a rever minha hipótese inicial foi a aversão de diversos pensadores quinhentistas a gargalhadas desenfreadas. Com efeito, diferentemente do sustentado por Mikhail Bakhtin (1895-1975) em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O Contexto de François Rabelais, o riso acumulava mais de uma ressalva entre os intelectuais do século XVI. Primeiramente, o riso exagerado era contrário aos preceitos médicos vigentes na época, que recomendavam moderação inclusive na alegria. Em segundo lugar, rir desbragadamente afigurava-se característico de camponeses rudes e do zé-povinho e, como tal, impróprio para integrantes da nobreza e da burguesia então nascente. Como explica Joubert em seu Traité du ris, quando o riso “é dissoluto ou de longa duração, a garganta se abre ao máximo, enquanto os lábios são repuxados para trás em extremo […] E, por isso, tornam-se feios, impróprios e lascivos.” Ainda segundo Jourbert, posto o riso excessivo provocar o surgimento de rugas na face e em volta dos olhos, “as jovens são advertidas de evitar rir totalmente e avisadas de que podem envelhecer mais cedo.”
IHU On-Line – Em comparação a hoje, quais são as principais diferenças em relação à forma como o riso era considerado no século de Rabelais e Joubert?
Vera Machline – Atualmente, define-se o riso como uma expressão psicomotora de alegria, prazer ou outros sentimentos nem sempre afins, que se manifesta mediante a contração de músculos faciais, peitorais e abdominais, além de expirações curtas mais ou menos ruidosas e um ligeiro aumento dos batimentos cardíacos.
Para se compreender como o riso era considerado no Quinhentos, é necessário mencionar aqui o abecê de medicina teórica, datando do século XI ou XII, conhecido como Isagoge Joannitti. Esta “Iniciação” ou “Interpretação de Joannitius” foi responsável pela longeva doutrina higiênica, isto é, preventiva – ainda em vigor na primeira metade do século XIX – dos seis conjuntos de agentes “não naturais” que, apesar de exógenos, influíam na saúde. São eles: ares e lugares, movimento e repouso, comida e bebida, sono e vigília, evacuação e repleção, e as “paixões da alma”. As últimas, também chamadas “afetos da mente” e hoje denominadas emoções, eram reputadas reações passivas a acontecimentos externos, capazes de afetar o organismo. Alegria e prazer, por exemplo, dilatariam o coração e aqueceriam o corpo. Inversamente, tristeza ocasionaria – tal como ainda se diz – “coração apertado” e “frio na barriga”.
À luz dos preceitos da Isagoge Joannitti, portanto, o riso assomava uma modalidade de “não natural”. Mais precisamente, era considerado um movimento suscitado por duas ou mais emoções contrárias ou parecidas. Para Laurent Joubert, o riso genuíno seria um misto de tristeza e alegria, resultante da apreensão de algo “feio e impróprio, mas desmerecendo compaixão.” Já no entender do médico Girolamo Fracastoro (c. 1478-1553), o riso verdadeiro proviria de alegria e admiração ou surpresa. E, segundo o médico Girolamo Mercuriale (1530-1606), rir era um “exercício vocorrespiratório”.
IHU On-Line – Como se explica o valor terapêutico do riso na medicina atual?
Vera Machline – Desde as últimas duas décadas do século passado, a visita de palhaços a internados em hospitais vem se tornando uma prática cada vez mais recorrente, não só no exterior como também aqui no Brasil. A explicação para isso, na mídia especializada, não raramente se resume ao chavão “Rir é o melhor remédio”. Nada mais simplista – e equivocado! É verdade que o riso assoma um exercício aeróbico moderado, dado ativar a respiração e a circulação sanguínea, além de liberar endomorfinas. Ocorre que tais palhaços (sejam eles atores profissionais ou voluntários amadores) estão longe de pretenderem levar às gargalhadas pessoas hospitalizadas. No máximo, almejam brincar com elas e distraí-las, ainda que por uns poucos instantes, da dolorida rotina hospitalar. Ademais, como visto acima, nem toda risada é salutar. Com efeito, inaugurados em fins da década de 1960 pelo psiquiatra norte-americano William F. Fry, os estudos acerca dos benefícios do riso geralmente dizem respeito à modalidade suscitada por alegria, júbilo ou contentamento.
Diante dos dados históricos aqui mencionados (e outros mais omitidos por limitações espaciais), não deixa de ser interessante que o riso, particularmente aquele atrelado à alegria, voltou a ser valorizado com o advento (ou melhor, a reinvenção) da medicina psicossomática. Por outro lado, até a alegria, da linha de frente de um arsenal terapêutico muito antigo, passou a mero acessório paramédico, a cargo de grupos de humanização.
IHU On-Line – O humor e o riso têm um caráter rebelde?
Vera Machline – Nem sempre. Comungo com outros especialistas o fato de o humor e o riso também poderem ser usados para reforçar estereótipos, como a “loura burra”. Não faltam exemplos de lugares-comuns repisando preconceitos nos meios de comunicação…
IHU On-Line – O que vem a ser gelotofobia?
Vera Machline – Malgrado suas raízes gregas, gelotofobia é uma palavra recente que designa o medo de sermos ridicularizados – cumpre acrescentar – independentemente de o riso ser amigável ou beirando o vitupério. Meu envolvimento com o assunto deu-se em 2009, quando aceitei participar de uma pesquisa internacional, liderada pelos doutores René T. Proyer e Willibald Ruch, visando reunir dados como sexo, idade, estado civil e grau de gelotofobia. Com a ajuda de minha ex-orientanda Yara Kassab, foi feito um levantamento junto de mais de 200 moradores da cidade de São Paulo. Ao terminarmos de tabular os dados numa panilha Excel, constatei que quem tem menos propensão à gelotofobia são os mais vividos, ou seja, pessoas da assim chamada terceira idade. Concluindo, o riso é como uma “faca de dois gumes”: pode ser subversivo ou conservador, e benéfico ou prejudicial à saúde. Da mesma forma, quando cordial, aproxima as pessoas; mas se escarnecedor, prontamente divide-as em vítimas e algozes.
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