As teses abaixo apresentadas “me parecem ser princípios teológicos que eu gostaria de ter sabido pôr em prática em meu ‘ministério de teologia’ e de transmitir às futuras gerações de teólogos”.
A opinião é do teólogo jesuíta José Ignacio González Faus, em seu blog Miradas Cristianas, 10-11-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Querido Josep Antoni: Tu te lembrarás que, na última vez que nos vimos, ao sair de uma missa em que havíamos concelebrado, me perguntaste a queima-roupa se eu poderia escrever algo como minha biografia teológica ou um resumo da minha trajetória no campo da teologia. Não sei se pela preguiça imediata que esse tipo de propostas provoca, acho que te ignorei, e até te disse que não acreditava nas autobiografias porque temo que só são escritas, e só podem ser escritas, para a justificação do autor. Penso que, se São Paulo escrevesse hoje aos romanos ou aos gálatas que continuamos sendo, completaria sua tese de antigamente e diria que “o homem não se justifica por suas autobiografias, mas sim pela fé”…
E pensei que até aqui havíamos chegado. Mas veja só, ultimamente, tive que reler algumas coisas minhas e, sem comê-las nem bebê-las, me desenharam algumas teses que talvez marquem algo daquela trajetória que tu me pedias e, principalmente, me parecem ser princípios teológicos que eu gostaria de ter sabido pôr em prática em meu “ministério de teologia” e de transmitir às futuras gerações de teólogos. Vou te expô-los com uma ordem que, em parte, é cronológica. E, além de se os cumpri ou não, oxalá sirvam para iluminar um pouco os caminhos da teologia futura.
1. Escrevi minha tese doutoral sobre São Irineu. Dele, aprendi que toda teologia deve ser soteriológica: a teologia só é uma reflexão sobre a salvação cristã, por mais que possa utilizar palavras abstrusas como consubstancialidade ou subsistência. Pois Deus não se revelou para entretenimento ou curiosidade de intelectuais, mas sim para a salvação de todo o gênero humano. Pode ser que, então, não me formulasse de modo tão nítido, mas deve ter ficado gravado em meu inconsciente, principalmente pelo contraste com a teologia que eu havia aprendido neste querido Sant Cugat do qual hoje eu te escrevo. E suspeito que algo se manifestou na interpretação que fiz dos dogmas cristológicos em “La Humanidad Nueva”.
2. O horizonte salvador leva assim, inevitavelmente, à pessoa humana. E por aí a contribuição de Irineu me foi concretizada e condensada no Rahner que eu tanto lia naqueles tempos. Toda boa teologia deve ser antropologia: não redutivamente (só antropologia), mas sim no sentido de qualquer teologia que não implique em uma dimensão antropológica é “música celestial”, na nossa linguagem, ou é um mero “címbalo que retine”, na expressão de São Paulo. Porque, de Deus, não podemos saber o que é, mas só que revelou seu amor a nós.
Encontrei isso formulado mais tarde em um parágrafo de Simone Weil que citei várias vezes: “Não é pela forma em que um homem fala de Deus, mas sim pela forma em que fala das coisas terrenas como se pode discernir melhor se sua alma permaneceu no fogo do amor de Deus”. E lembro que a primeira vez que me convidaram para dar um curso de teologia no México, pediram-me um curso de antropologia. E o grande amigo íntimo e malogrado que foi Javier Jiménez Limón, que era quem me convidava (e quem se encarregava dos estudantes jesuítas daquela província mexicana), me disse: “Gostaria que você desse um curso sobre a antropologia que brota da sua cristologia (que, naquele período, estava há só dois anos no mercado).
3. Nesse marco, encontrou perfeito espaço a inquietação que eu possuía desde tempos atrás: não é verdadeira antropologia aquela que prescinde do que estão em situação de infra-humanidade (as vítimas, os excluídos, os pobres da terra) e, por isso, toda teologia deve “falar de Deus a partir do sofrimento do inocente” (como diria mais tarde Gustavo Gutiérrez), colocando em jogo o que se chamou de o privilégio hermenêutico dos pobres. Se sua reflexão não proceder assim, não será mais do que aquilo que Gutiérrez censura como “teologia dos amigos de Jó“.
Essa interpelação havia se aninhado em mim quando, sendo estudante de filosofia, íamos aos domingos aos barracos dos imigrantes de Sabadell. Ela se aprofundou no trabalho de capelão de imigrantes com o qual ganhei a vida na Alemanha, enquanto escrevia minha tese doutoral. E depois se viu corroborada com a teologia da libertação. O humanismo de tipo renascentista que, quando falava do homem, só considerava os bens situados e os que já dão a vida como óbvia, tem sem dúvida mil valores, mas está radicalmente doente.
Acredito que isso me levou depois a me deparar com o ponto frágil de toda a nossa Modernidade e do nosso progresso que correram para a frente deixando as sarjetas da história cheias de vítimas. Penso hoje que, se minha cristologia (“La Humanidad Nueva”) teve algum valor ou originalidade, que, embora arraste a sua nona edição, apareceu em 1975, estava principalmente no capítulo “Jesus e os marginalizados” (praticamente ausente em todas as cristologias da época) e no tratamento do tema do anonadamento de Deus (kénosis), ausente também na teologia católica de então e tratado de outro modo na protestante. E penso também – e disto estou convencido – que toda boa teologia deverá ter, no futuro, como mediação primária, as ciências sociais, sem excluir por isso as outras mediações hermenêuticas e semânticas da filosofia, psicologia etc.
4. Hoje vejo normal também que, em todo esse marco, e ajudado pelo autor de cabeceira daqueles anos “da tese”, abriram um amplo espaço as intuições de D. Bonhoeffer sobre a distinção entre cristianismo e religião, a pergunta sobre como Cristo pode ser senhor dos não religiosos e a necessidade de viver a fé “diante Deus, sem Deus”.
Acredito que essas intuições foram minhas companhias fundamentais na hora de pensar a presença do cristianismo fora da “Cristandade” (isto é: em um mundo plural, configurado por estados não confessionais e onde todas as disciplinas humanas exigem sua plena autonomia frente ao pensar teológico). Presença do cristianismo como uma voz mais que não apela a mais autoridade do que a verdade do que diz e que não pretende impor, nem condenar, nem negar a palavra, mas só propôr e oferecer a sua. Diria quase que essa convicção (que me levou a confrontos com a Igreja “oficial”, tão aferrada ainda a vícios da Cristandade) se tornou mais profunda em mim, conforme ia crescendo também a convicção de que o cristianismo tem muito, muitíssimo a dizer ao mundo de hoje que o despreza.
5. Não sei como se me foi gerando outra convicção que me parece ter sido também eixo de boa parte do meu “ministério de teologia” e que depois encontrei superconfirmada em quem pode ser outro dos meus mestres: refiro-me a J. H. Newman, recentemente beatificado e nomeado cardeal por Leão XIII para reparar tantos maus tratos recebidos na Igreja Católica precisamente depois da sua conversão. Costumei formulá-lo falando da história da Igreja como lugar teológico.
A história da Igreja levou Newman a passar do anglicanismo ao catolicismo apesar da antipatia que sentia então pela Igreja Católica. E, principalmente, ela lhe ajudou depois a compreender e a enfrentar muitos problemas da Igreja da sua época, não menores dos que a nossa Igreja tem hoje e diante dos quais proliferavam reações muito mais fundamentalistas do que cristãs. Acredito que negar esse caráter teológico à história da Igreja equivale a não acreditar no Espírito Santo.
E lembro que essa convicção se tornou tão séria e tão urgente em mim que, embora nunca tenha deixado de rezar o Breviário, decidi um dia já distante substitui o Ofício das Leituras por um tempo de leitura da história da Igreja. Eram só uns 20 minutos. Mas 20 minutos dia após dia e ano após ano acabam dando para muito. Assim, pude me encharcar de milhares de páginas de Histórias da Igreja multivolumosas (Rops, Lortz,Fliche-Martin, Pastor, Cristiandad…). Acredito que alguns dos meus livros (sobre os pobres, sobre a nomeação de bispos e desde o ministério ao magistério eclesial) tentaram ser não livros históricos, mas sim reflexões teológicas que tomam a história da Igreja como um locus theologicus privilegiado.
6. Um último traço. Há pouco foi publicada em Bilbao uma tese doutoral sobre meu método teológico intitulada “Cauces de la misericordia” [Caminhos da misericórdia]. O título é uma expressão minha que me parece muito apta para esse trabalho. Mas me surpreendeu que o autor da tese vê toda a fonte da minha teologia nos Exercícios de Santo Inácio. Surpreendeu-me porque, de fato, não escrevi sobre os Exercícios até depois de ter publicado a Cristologia, a apresentação de Bonhoeffer e alguns textos sobre a teologia da libertação. Hoje, não saberia dizer se a espiritualidade inaciana me fez focar esses temas de acordo com os cinco princípios anteriores ou se foram eles que me deram um modo determinado de viver os exercícios inacianos.
Mas isso pouco importa: acredito que o autor dessa tese pode ter toda a razão pelo menos em um ponto: a perplexidade e o afã de lucidez diante da infinita capacidade de autoengano que os humanos têm. Isso sim me parece algo muito típico da espiritualidade inaciana, que em mim coincidiu, além disso, com uma época de leitura de Freud (enquanto nos anos anteriores eu havia lido muito mais Marx e, nos posteriores, Nietzsche). Posso formular agora com uma expressão muito querida de Jon Sobrino: não se pode ter boa teologia sem uma decisão radical de “honradez com o real”.
Escolho essa expressão porque a palavra honradez ajuda a marcar que esse autoengano não é inocente, mas somos, de algum modo, responsáveis por ele: vamos nos autoenganando para podermos nos justificar. E esse é o verdadeiro sentido do pecado, não a mera debilidade diante daquilo cuja desonestidade reconhecemos, mas diante do fato de sermos frágeis. Quando agora releio alguma coisa minha do passado e acabo não gostando, começo me perguntando que outros interesses não reconhecidos puderam me guiar quando a escrevi (ou poderiam me mover agora).
* * *
Gostaria que saíssem setes passos ou sete traços, mas só saíram seis. E deve ser razoável, posto que sete é o número perfeito, e minha teologia é muito imperfeita. Assim, pois, vamos ficar com esses seis, e deixe-me formulá-los agora mais como conselhos ou horizontes para teólogos futuros do que como hipotética autobiografia pessoal.
Resumindo, pois: Ireneu, Rahner, Bonhoeffer, os teólogos da libertação, Newmane os exercícios inacianos me parecem ser os ingredientes do meu “coquetel” ou os pais do meu método teológico. E, por culpa deles:
- o interesse soteriológico;
- o interesse antropológico;
- o interesse pelos pobres (com a mediação das ciências sociais);
- o interesse secular;
- o interesse pela história da Igreja;
- e o medo a minha capacidade de autoengano.
Com esses companheiros e essas bengalas, mas também com essas ilusões, fomos tentando ir “caminhando para Deus”, se me permites a breguice de terminar com o verso de uma canção falangista (“Montañas Nevadas”), que quando eu era criança ia, às vezes, cantarolando pelas ruas de Valência, sem saber exatamente o que cantava.
Um abraço, e espero que estas linhas sirvam para ceder diante do teu ataque passado, visto que não foi à mão armada, mas sim com mão eucarística.
José Ignacio González Faus
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