Junto aos Rios da Babilônia – O exí­lio do cân­tico litúr­gico autóctone

ResumoIns­pi­ra­dos por um Credo Social, nas déca­das de 1970 – 80, os meto­dis­tas bra­si­lei­ros sonha­ram com uma Igreja de Dons e Minis­té­rios. Esse sonho afe­tou todas as ins­tân­cias da vida comu­ni­tá­ria, inclu­sive a litur­gia. Nesse aspecto, merece aten­ção a hino­lo­gia que mar­cou o período. O reper­tó­rio hinó­dico de então pas­sou a ser ela­bo­rado levando-se em conta aspec­tos tais como qua­li­dade poético-teológica das letras, que deve­riam estar encar­na­das na rea­li­dade bra­si­leira, bem como com a qua­li­dade rítmico-harmônica que deve­ria ser com­pa­tí­vel com a exce­lên­cia da tra­di­ção cultural-musical bra­si­leira. Para aten­der a essa demanda, foram pro­du­zi­das mui­tas com­po­si­ções ori­gi­nais. Ao lado de tan­tos outros, de dife­ren­tes con­fis­sões reli­gi­o­sas, mui­tos talen­tos meto­dis­tas se nota­bi­li­za­ram por sua veia poético-estética musi­cal, dei­xando um rico legado litúrgico-hinológico para a Igreja na Amé­rica Latina. O pro­jeto de uma Igreja de Dons e Minis­té­rios pro­cu­rava con­tem­plar as dis­tin­tas expres­sões de espi­ri­tu­a­li­dade, pre­sen­tes nas igre­jas locais: a espi­ri­tu­a­li­dade tra­di­ci­o­nal ou clás­sica, a espi­ri­tu­a­li­dade reno­vada, ou caris­má­tica, e a espi­ri­tu­a­li­dade pro­gres­sista, ou liber­ta­dora. Para­lelo a esse movi­mento, havia outro, cuja ins­pi­ra­ção era impor­tada do Norte, e que viria sufo­car o movi­mento pela hinó­dia autóc­tone e aca­ba­ria por se con­fi­gu­rar no gos­pel contemporâneo.

Ensaia-se uma nova canção

Para­lelo ao movi­mento que aca­ba­ria por desem­bo­car no gos­pel tupi­ni­quim, sem­pre houve um grupo pro­du­zindo e uti­li­zando, em suas com­po­si­ções litúrgico-musicais, ele­men­tos cul­tu­rais autóc­to­nes, ou, pelo menos, mais iden­ti­fi­ca­dos com a cul­tura bra­si­leira. A pro­du­ção hínica cul­tu­ral­mente enrai­zada se veri­fica, prin­ci­pal­mente, entre os seto­res pro­gres­sis­tas e ecu­mê­ni­cos da Igreja. Disso são tes­te­mu­nhas alguns can­ci­o­nei­ros, que cole­tam essa pro­du­ção dos anos 70 – 80: A Nova can­ção (1975),Novo canto da terra (1987), A Can­ção do Senhor em Terra Bra­si­leira (1982), Jesus Cristo Vida do mundo(1986), Can­tar e Espe­rança (1988), entre outros.

Tais edi­ções tinham uma dupla pre­o­cu­pa­ção: por um lado, (1) com a qua­li­dade poético-teológica das letras que deve­riam estar encar­na­das na rea­li­dade bra­si­leira evi­tando os jar­gões for­ja­dos pelo sota­que mis­si­o­ná­rio; e, por outro, (2) com a qua­li­dade rítmico-harmônica que deve­ria ser com­pa­tí­vel com a exce­lên­cia da tra­di­ção cultural-musical bra­si­leira.[1]

Tais com­po­si­ções apre­sen­ta­ram algu­mas “limi­ta­ções” que difi­cul­ta­ram uma maior con­quista de espaço entre os seto­res caris­má­ti­cos. Seus expo­en­tes não pos­suíam a mesma agres­si­vi­dade e com­pe­tên­cia no campo do mar­ke­ting e das regras do mer­cado; suas com­po­si­ções são con­si­de­ra­das sofis­ti­ca­das demais para os ins­tru­men­tis­tas acos­tu­ma­dos ao “com­passo ‘dois-por-quatro’ da orques­tra­ção ecle­sial ofi­cial”[2] – de fato, con­ve­nha­mos, os rit­mos bra­si­lei­ros não são de fácil exe­cu­ção –; “o con­teúdo teo­ló­gico [des­ses cân­ti­cos] era dis­so­nante”[3] daquele intro­je­tado pela gera­ção “satis­fa­ção é ter a Cristo”; a nova ênfase – vol­tada para soli­da­ri­e­dade humana, o encon­tro com Cristo no sofri­mento e na ale­gria do pró­ximo, na cons­tru­ção em muti­rão de um “mundo mais justo, fra­terno e igualitário” – cheirava demais a um comu­nismo satâ­nico, como ensi­nara o Tio Sam.

Por estas e outras razões a juven­tude dos anos 1960 – 70 encon­trou (nem tanto por opção, mas, mais pro­va­vel­mente, por falta dela) aquilo que lhe foi ofe­re­cido: os “cori­nhos”, pre­cur­so­res do mais moder­noso gos­pel.[4]

Mas a ques­tão cul­tu­ral não foi pre­o­cu­pa­ção exclu­siva dos ecu­mê­ni­cos e pro­gres­sis­tas. Mesmo den­tro dos seto­res mais pie­tis­tas e evan­ge­li­cais, come­çou a sur­gir con­si­de­rá­vel pro­du­ção hínica com rit­mos e ins­tru­men­tos bra­si­lei­ros. Como aponta Éber F. S. Lima, em 1991, e, quase meia década antes, Artur Men­des (1986), “tal­vez o divi­sor das águas tenha sido o disco ‘De vento em popa’, de Ven­ce­do­res por Cristo, lan­çado no final dos anos 70”[5].Outro tra­ba­lho da mesma época, e com a mesma tônica, foi oLong Play (LP) “Pai Nosso de Ver­dade”, gra­vado por Wôlo[6].Além des­ses, outros “gru­pos como MILAD, Água Viva e Logos são exem­plos de con­tex­tu­a­li­dade rít­mica e meló­dica”[7].

Entre­tanto, tal rup­tura com a hinó­dia impor­tada não foi muito além do emprego de rit­mos bra­si­lei­ros, da pro­fis­si­o­na­li­za­ção téc­nica do pro­cesso de gra­va­ção e da uti­li­za­ção de uma lin­gua­gem mais secu­la­ri­zada, nas novas com­po­si­ções. A teo­lo­gia ine­rente con­ti­nu­ava a mesma: um misto de armi­ni­a­nismo, puri­ta­nismo, pie­tismo, fun­da­men­ta­lismo, caris­ma­tismo indi­vi­du­a­lista, além de serem “anti-católicos” e “aves­sas ao pro­jeto de mudança”[8]. As exce­ções con­fir­mam a regra.

A par­tir dos anos 90, os “cori­nhos” deram lugar ao Gos­pel, mas esta é uma outra longa his­tó­ria que merece ser tra­tada sepa­ra­da­mente e escapa aos nos­sos pro­pó­si­tos, agora.[9]

 

A música litúr­gica numa Igreja de dons e ministérios

Den­tre os poe­tas e poe­ti­sas, com­po­si­to­res e com­po­si­to­ras, que mar­ca­ram o período que com­pre­ende as déca­das de 1970 – 80 — que pode ser con­si­de­rado como o mais fér­til da hinó­dia de fato bra­si­leira —, encontram-se vários meto­dis­tas: Simei Mon­teiro, Ernesto Bar­ros Car­doso, Laan Men­des de Bar­ros, Sér­gio Mar­cus Pinto Lopes, Tér­cio Jun­ker, Zeni Soa­res, entre mui­tos outros meto­dis­tas e não metodistas.

Den­tre os não meto­dis­tas, des­taco, em espe­cial: a mis­si­o­ná­ria pres­bi­te­ri­ana Norah Byers que, con­quanto esta­du­ni­dense, pas­sou a assi­nar Luiza Cruz, por conta de seu com­pro­misso com a bra­si­li­dade — são seus alguns dos pri­mei­ros hinos com­pos­tos empre­gando rit­mos bra­si­lei­ros, ainda na década de 1950; o sacer­dote epis­co­pal angli­cano Jaci Maras­chin, que se nota­bi­li­zou como um dos expo­en­tes (com­po­si­tor, edi­tor e teó­rico) da reno­va­ção litúr­gica latino-americana; bem como o com­po­si­tor angli­cano Xico Esvael cujas músi­cas são muito difun­di­das nos seg­men­tos ecu­mê­ni­cos. Ao lado des­tes, um grande número de poe­tas e poe­ti­sas, com­po­si­to­res e com­po­si­to­ras, pro­du­zi­ram e con­ti­nuam a con­tri­buir musi­cal­mente para a cele­bra­ção da vida e da mis­são da Igreja.

Não se podem omi­tir, ainda, impor­tan­tes pro­du­ções cole­ti­vas, resul­tado do tra­ba­lho em equipe, em ati­vi­da­des e even­tos pro­mo­vi­dos com o fim de divul­gar e pro­mo­ver esse tipo de música com­pro­me­tida com a cul­tura bra­si­leira. O prin­ci­pal exem­plo que pode ser citado como resul­tado desse tipo de ini­ci­a­tiva é o cân­tico Momento Novo, conhe­cido e can­tado, hoje, no mundo inteiro.

Pro­mo­viam essa prá­tica cole­tiva ins­ti­tui­ções como a Facul­dade de Teo­lo­gia da Igreja Meto­dista (FaTeo), o Ins­ti­tuto Angli­cano de Estu­dos Teo­ló­gi­cos, de São Paulo (Iaet), a Escola Supe­rior de Teo­lo­gia da Igreja de Con­fis­são Lute­rana no Bra­sil (EST).

Nesse período constituíram-se outras agre­mi­a­ções mais ou menos for­mais, tais como o ecu­mê­nico Umbral: Usina de Música Bra­si­leira para a Litur­gia (que pro­du­ziu o can­ci­o­neiro Novo Canto da Terra); o Sspo­art: Sub­se­cre­ta­ria de Pro­mo­ção Artís­tica da Secre­ta­ria de Edu­ca­ção Cristã da Igreja Meto­dista; o Pro­musa: Pro­jeto de Música Sacra (1ª. Região da Igreja Meto­dista); Femusa: Fes­ti­val Gaú­cho de Música Popu­lar Cristã (2ª. Região da Igreja Metodista).

Como resul­tado dessa pro­du­ção, tam­bém nos anos 80, a Imprensa Meto­dista lan­çou o selo “Liber­dade Edi­ções Musi­cais” que lan­çou vários Long Plays (LPs) e fitas cas­sete, afi­na­dos com esse movi­mento de reno­va­ção litúrgico-musical, den­tre eles: “Revi­vendo” (1983), do grupo meto­dista Viva a Vida em con­junto com o grupo angli­cano Gente de Casa; “Mudança” (1985), gra­vado pelo Coral Canto da Terra, da Facul­dade de Teo­lo­gia da Igreja Meto­dista; “O Espe­rado” (1985), pelo coral da Uni­ver­si­dade Meto­dista de Pira­ci­caba (Uni­mep); “Ques­tão de Fé” (1987), pelo grupo Viva a Vida.[10]

Movi­mento seme­lhante, e fra­ter­nal­mente rela­ci­o­nado, dava-se entre os pres­bi­te­ri­a­nos inde­pen­den­tes, com o Grupo Café (Can­ções para um Fes­ti­val Evan­gé­lico), que gra­vou o LP “Muti­rões”; e entre os lute­ra­nos, com o Coral do Morro, que gra­vou, entre outros, “Arro­zais flo­res­ce­rão” e “Novo Canto da Terra”, tam­bém pelo selo Liber­dade.

Na prá­tica das igre­jas locais, uma das expres­sões mais carac­te­rís­ti­cas do período no qual a Igreja Meto­dista optou pelo modelo de Dons e Minis­té­rios à luz do Plano para a Vida e a Mis­são da Igreja, foram os can­ci­o­nei­ros pro­du­zi­dos pela Edi­tora Agen­tes da Mis­são, da 5ª. Região, nos anos 80 e 90.

Orga­ni­zado por Lucia Helena C. Oli­veira Lopes, foram pro­du­zi­dos alguns can­ci­o­nei­ros que pro­cu­ra­vam reu­nir as can­ções pre­fe­ri­das daquele período. Numa pri­meira ten­ta­tiva (1985), foram reu­ni­dos 42 cân­ti­cos. Em 1992 e 1995, foram publi­ca­das duas edi­ções do can­ci­o­neiro Can­ções da Mis­são. A inten­ção desse tipo de cole­tâ­nea não era subs­ti­tuir os “anti­gos e belos hinos” da Igreja, mas agre­gar, como “arga­massa que une os dife­ren­tes, como marca de um nas­cente com­pro­misso, como tes­te­mu­nho do que cre­mos, sinal de nossa reno­va­ção da espi­ri­tu­a­li­dade, bali­zas de nossa cami­nhada”[11].

Nessa época, o impor­tante era con­tem­plar as dis­tin­tas expres­sões de espi­ri­tu­a­li­dade, nota­da­mente pre­sen­tes nas igre­jas locais: a espi­ri­tu­a­li­dade tra­di­ci­o­nal ou clás­sica, a espi­ri­tu­a­li­dade reno­vada, ou caris­má­tica, e a espi­ri­tu­a­li­dade pro­gres­sista, ou liber­ta­dora. O bonito é notar, nos can­ci­o­nei­ros da época, a con­vi­vên­cia pací­fica, lado a lado, de hinos his­tó­ri­cos, can­ções avi­va­lis­tas, e cân­ti­cos de com­pro­misso com a trans­for­ma­ção da sociedade.

Infe­liz­mente, um dos seg­men­tos aca­bou por mono­po­li­zar os demais e, hoje, experimenta-se uma mono­cul­tura musi­cal gos­pe­leira, não só na Igreja Meto­dista, mas na mai­o­ria das igre­jas protestantes.

A música “polifô­nica” dos anos 70 – 80 sucum­biu ao gos­pel de uma nota só de hoje. Se para o bem ou para o mal, o futuro dirá.

 


[1] Cf. MARASCHIN, Jaci Cor­reia, ed. O novo canto da terra.São Paulo:Editora doIns­ti­tu­to­An­gli­cano deEs­tu­dos­Te­o­ló­gi­cos (Iaet), 1987. p. 5 e 6.

[2] ALVES, Car­los Alberto Rodri­gues. Igreja Comu­ni­dade litúr­gica. Refle­xões no Cami­nho, n. 3.Campinas:CentroEvangélicoBrasileiro deEs­tu­dos­Pas­to­rais (Cebep), 1992. p. 13.

[3]Id., ibid., p. 3.

[4] Para uma melhor com­pre­en­são dos “cori­nhos”, ver RAMOS, Luiz Car­los.  Os cori­nhos: uma­a­bor­da­gem­pas­to­ral da hino­lo­gia pre­fe­rida dos­pro­tes­tan­tes­ca­ris­má­ti­cos­bra­si­lei­ros. 1996.Dissertação (Mes­tra­do­em­Ci­ên­cias daRe­li­gião). 83 f. +anexos.São Ber­nardo doCampo:UniversidadeMetodista deSão Paulo, 1996. 83 p.

[5] MENDES, Arthur. Música evan­gé­lica naci­o­nal: uma nova aurora vem sur­gindo. Jor­nal Con­texto(Cebep), v 3,Agosto de 1986. p. 11.

[6]Id., ibid.

[7] LIMA, Éber Fer­reira Sli­veira Lima. Refle­xões sobre a ‘cori­nho­lo­gia’ bra­si­leira atual. Bole­tim Teo­ló­gico.PortoAlegre:FraternidadeTeológica, n. 5 (14),março de 1991. p. 56,nota 9.

[8]  Como assi­na­lou Velas­ques Filho, Pró­coro em texto inti­tu­lado “Deus como emo­ção: ori­gens his­tó­ri­cas e teo­ló­gi­cas do pro­tes­tan­tismo evan­ge­li­cal” in MENDONÇA, Antô­nio Gou­vêa & VELASQUES FILHO, Pró­coro. Intro­du­ção ao Pro­tes­tan­tismo no Bra­sil.São Paulo:Edições Loyola/Ciências daRe­li­gião, 1990. p. 109.

[9] Sobre a música gos­pel na Igreja evan­gé­lica bra­si­leira, ver CUNHA, Magali do Nas­ci­mento. A explo­são gos­pel:umo­lhar das­ci­ên­cias huma­nas­so­bre oce­ná­ri­o­e­van­gé­lico no Brasil.Rio deJa­neiro: Mauad eIns­ti­tuto Mys­te­rium, 2007. 231 p.

[10]Expres­so­a­qui­mi­nha­gra­ti­dão ao Prof. José Car­los de Souza, daFa­cul­dade deTe­o­lo­gia daIgrejaMetodista,peloacessoqueme per­mi­tiu­ter aoseu­a­cervo discográfico,bemcomo pelas vali­o­sa­sin­for­ma­ções partilhadas.

[11] LOPES, Lúcia Helena C. Oli­veira. Can­ções da Mis­são. 2. ed. Piracicaba:Agentes daMis­são, 1995. p. 9.

Junto aos rios de Babilônia…

 

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