Dia dos Pais, Luiz Carlos Ramos

Na Bíblia, como na vida real, encon­tra­mos vários tipos de pais. Alguns nos dei­xam enter­ne­ci­dos, outros, enfu­re­ci­dos. Há os que são amo­ro­sos, res­pon­sá­veis, hones­tos, ínte­gros, dig­nos… E há os cruéis, incon­se­quen­tes, desprezíveis…

Por oca­sião do Dia dos Pais, dediquemo-nos a refle­tir sobre alguns exem­plos, esco­lhi­dos de entre as pági­nas sagra­das, pro­cu­rando apren­der que aspec­tos da pater­ni­dade pode­mos cul­ti­var, e de quais deve­mos nos precaver.

Pro­va­vel­mente, um dos pri­mei­ros exem­plos que nos vem à mente, é aquele que ficou conhe­cido como o pai da fé, Abrão ou Abraão. Pai que deve­ria ser bên­ção para todas as famí­lias da terra, não sabia muito bem como sê-lo na sua pró­pria casa. Ten­tou, a prin­cí­pio, dar uma mão­zi­nha para a fé, pegar um ata­lho. Tra­tou de come­çar sua des­cen­dên­cia tendo um filho com a escrava Hagar. Este se cha­mou Ismael (Deus ouviu), e após uma intriga envol­vendo ciúme, revan­che e vin­gança, Abraão aca­bou por abandoná-lo para mor­rer no deserto. Que angús­tias não sofreu esse senhor? Que dores pio­res que as de parto não terá sen­tido até que apren­desse a lançar-se, com fé, nas pro­mes­sas de Deus, e gerar um filho que rece­be­ria o nome de Sor­riso (Isa­que)! É de fato admi­rá­vel que esse beduíno da terra de Ur tenha sido con­de­co­rado pela pos­te­ri­dade com o título de Pai da Fé…

Sem som­bra de dúvida, o pai mais tolo e estú­pido de todas as Escri­tu­ras é um tal Jefté. Esse se meteu numas bri­gas (por aí só já dá pra ter noção da figura). No meio de uma luta, fez um acordo paté­tico com Javé: “Se, com efeito, me entre­ga­res os filhos de Amom nas minhas mãos, quem pri­meiro da porta da minha casa me sair ao encon­tro, vol­tando eu vito­ri­oso dos filhos de Amom, esse será do SENHOR, e eu o ofe­re­ce­rei em holo­causto” (Jz 11.30 – 31). O dito cujo con­se­guiu ven­cer os tais amo­ni­tas. Dá pra adi­vi­nhar o que acon­te­ceu? “Vindo, pois, Jefté a Mispa, a sua casa, saiu-lhe a filha ao seu encon­tro, com adu­fes e com dan­ças; e era ela filha única; não tinha ele outro filho nem filha” (v. 34). Des­graça com­pleta… filha única sacri­fi­cada. Sem­pre me per­gun­tei: Por que a Bíblia pre­ser­vou tama­nho dis­pa­rate… e con­cluo que o fez pra que nunca, jamais, pai algum torne a come­ter tama­nha insensatez.

Outro impor­tante pai da Bíblia ficou conhe­cido como sendo o homem segundo o cora­ção de Deus (cf. At 13.22). Davi, esse era o seu nome, gerou um filho fruto de adul­té­rio seguido de assas­si­nato do marido da amante. Quis o des­tino que essa cri­ança ado­e­cesse irre­me­di­a­vel­mente ainda peque­nina. O amor do pai Davi pelo filho, não obs­tante, era tama­nho, que ele cho­rou, jejuou, e se peni­ten­ciou dolo­rida e des­con­sol­da­da­mente. Uma vez infor­mado da morte do filho, Davi nunca mais seria o mesmo.

Nos evan­ge­lhos, um pai espe­cial é o de Jesus. José não era pai de Jesus em sen­tido estrito. Sua noiva engra­vi­dara, antes do casa­mento (e não foi do noivo). Mui­tos, no seu caso, teriam aban­do­nado mulher e filho. José, no entanto, pre­fe­riu enfren­tar as más lín­guas e os pre­con­cei­tos soci­ais. Casou-se com Maria, ado­tou o menino, ensinou-lhe sua pro­fis­são. Jesus, o nosso Senhor e Sal­va­dor, teve a graça de ter um pai ado­tivo que o aco­lheu, edu­cou e amou.

Além de pais reais, de carne e osso, há tam­bém figu­ras pater­nas ima­gi­ná­rias que se imor­ta­li­za­ram no Novo Tes­ta­mento. Nenhum deles se com­para ao pai do filho pró­digo. Livros e livros se escre­ve­ram sobre ele. Amo­roso, gra­ci­oso, tole­rante, amigo, aco­lhe­dor, per­do­a­dor, sem­pre de olho na estrada, espe­rando a volta do filho per­dido; sem­pre dis­posto a dei­xar a festa de lado para con­so­lar e acon­se­lhar o outro irmão tão ran­co­roso. Dizem que esse é o pai mais pare­cido com mãe de toda a lite­ra­tura universal.

Há tam­bém um pai tétrico, funesto, lutí­fero, astroso, assom­broso, ater­ra­dor, sinis­tro… Este ficou conhe­cido como o Pai da Men­tira. E ao que se pode ver, ele tem mui­tos filhos espar­ra­ma­dos pela face da aterra. Está lá no evan­ge­lho de João (8.44): “Vós sois do diabo, que é vosso pai, e que­reis satisfazer-lhe os dese­jos. Ele foi homi­cida desde o prin­cí­pio e jamais se fir­mou na ver­dade, por­que nele não há ver­dade. Quando ele pro­fere men­tira, fala do que lhe é pró­prio, por­que é men­ti­roso e pai da men­tira.” Todo aquele, toda aquela, em quem não há ver­dade, torna-se filho do diabo, o mais cruel dos pais.

Feliz­mente, a Bíblia nos apre­senta outro Pai, este, sim, per­fei­tís­simo. Quem melhor no-lO apre­senta é Jesus, na ora­ção que até hoje cha­ma­mos de “Pai Nosso”. A ora­ção começa com a expres­são “Pai nosso que estás nos céus”. O fato de Jesus se diri­gir a Deus como Pai já é de certa forma bas­tante revo­lu­ci­o­ná­ria — ao menos pela ousa­dia em empre­gar esse termo de inti­mi­dade para um Deus que amiúde pro­vo­cava temor e assombro.

Cha­mar Deus de Pai, mesmo em nos­sos dias, é teme­rá­rio, por­que pode ser que nos venha à mente a ima­gem do nosso pai ter­reno, com as suas falhas, com os seus defei­tos, com suas limi­ta­ções. Tal­vez por essa razão Jesus agre­gue outras duas infor­ma­ções com­ple­men­ta­res a essa desig­na­ção: esse Pai é nosso, e está nos céus. É um pai pleno de ter­nura. Trata-se de um pai dife­rente dos demais: muito pare­cido com o da pará­bola do Filho Pró­digo, que é, a rigor, mais mãe do que pai.

E esse pai é nosso. Tanto Karl Barth quanto João Wes­ley afir­mam que o pro­nome, nosso, é deter­mi­nante: que essa ora­ção só pode ser pro­nun­ci­ada se nela hou­ver um Pai e se hou­ver um Nosso. O nosso apa­rece mui­tas vezes na Ora­ção do Senhor — Wes­ley tem a paci­ên­cia de con­tar, e nos informa que o refe­ren­cial “nós” ou “nos” apa­rece sete vezes em ape­nas três ver­sí­cu­los. A ora­ção é, por­tanto, enfa­ti­ca­mente comu­ni­tá­ria. Uma ora­ção que pensa a cole­ti­vi­dade. O Pai não é só meu, mas é nosso. Por­tanto, não chego diante de Deus somente com os meus pró­prios sen­ti­men­tos, somente com a minha fé indi­vi­dual e pri­vada, mas oro con­jun­ta­mente com toda a comu­ni­dade de fé. Segundo Karl Barth, toda huma­ni­dade está pre­sente na Ora­ção do Pai Nosso. Ainda que os ateus (órfãos?), ou que se dizem ateus, supo­nham viver sem Deus, na con­cep­ção cristã não é pos­sí­vel haver um Deus sem o ser humano. Por­tanto, até mesmo aque­les que não creem, aque­les que não têm Deus, estão repre­sen­ta­dos na Ora­ção do Pai Nosso.

O Dia dos Pais, como dito no iní­cio desta refle­xão, é oca­sião pri­vi­le­gi­ada para refle­tir­mos sobre a pater­ni­dade segundo o ideal de Deus.

Nós, pais, pode­mos, ainda hoje, ser pais de fé, e gerar filhos-sorriso; pode­mos ser pais pací­fi­cos e paci­fi­ca­do­res, que dan­çam e brin­cam com suas filhas, em lugar de per­der­mos tempo com guer­ras insa­nas e bri­gas tolas; pode­mos ser pais segundo o cora­ção de Deus, ama­du­re­cendo sem­pre, não obs­tante os reve­zes da vida; pode­mos ser pais que, em plena cum­pli­ci­dade com a mulher que ama­mos, ado­tem até as cri­an­ças gera­das nas con­di­ções mais sus­pei­tas e inu­si­ta­das; pode­mos ser mater­nos pais amo­ro­sos, pron­tos a rece­ber de volta o filho per­dido, pron­tos a acon­se­lhar e a con­so­lar o filho aba­tido; pode­mos ser pais da ver­dade, gerando filhos e filhas que amam a ver­dade, que pra­ti­cam a ver­dade, que pro­mo­vem a verdade…

Enfim, pode­mos alme­jar o ideal do Pai per­fei­tís­simo, aquEle que com­pensa toda a limi­ta­ção dos pais ter­re­nos, aquEle que está nos céus, que é Pai de todos, e que é tam­bém o Pai dos pais.

Ore­mos:

Senhor,
rendemos-te gra­ças pela vida dos nos­sos pais,
por­que nos pos­si­bi­li­ta­ram nas­cer para a vida na terra;
rendemos-te gra­ças tam­bém pela vida dos nos­sos pais na fé
por­que nos pos­si­bi­li­ta­ram nas­cer para a vida eterna.

Neste Dia dos Pais,
aben­çoa aos que estão pró­xi­mos
dá for­ças aos que estão dis­tan­tes,
e con­forta aquele cujo pai está ausente.

Aben­çoa igual­mente a nós, filhos e filhas, para
que nos­sos getos hon­rem a sua memó­ria,
que nos­sos pas­sos sigam-lhe o exem­plo,
que nos­sas pala­vras trans­mi­tam a sua sabedoria.

E se por­ven­tura esse amor paterno nos fal­tar,
dá-nos a cons­ci­ên­cia de que temos um Pai celes­tial,
que nos ama, que nos ajuda, que nos compreende.

E tu, que és Pai oni­po­tente, oni­pre­sente e onis­ci­ente,
com­pen­ses as limi­ta­ções dos pais ter­re­nos
e com­plete o seu amor.

Ben­dito sejas,
Pai bon­doso,
Pai dos pobres,
Pai de todos,
Pai nosso que estás nos céus…

Luiz Car­los Ramos
(Escrito espe­ci­al­mente para a Revista Gai­vota : Dia dos Pais, 2011)

http://www.luizcarlosramos.net/?p=4404

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