![]() |
|||
|
|||
“A missão é uma experiência de contato”, com a finalidade de contar a “história de Jesus”, resume Bartomeu Melià, à IHU On-Line. Há 40 anos, o jesuíta convive com os guarani e dedica-se ao estudo dessa cultura milenar. A partir desta experiência missioneira, ele é categórico ao avaliar as semelhanças e diferenças entre a cosmologia indígena e a religião cristã: “A religião católica ainda está muito dominada pela hierarquia e pelo poder de uns sobre os outros. A diferença própria dos carismas se faz notar, sobretudo, no exercício do poder doutrinal e administrativo, o que leva a grandes desigualdades entre os que têm a mesma fé e a mesma esperança.” Para ele, a religião guarani “é mais igualitária (…) homens e mulheres, podem receber a inspiração divina, e de fato a grande maioria deles a recebe”.
Melià é o conferencista da noite do dia 26-10-2010, do XII Simpósio Internacional IHU – A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade. Às 20h, ele abordará o tema A cosmologia indígena e a religião cristã: encontros e desencontros. Melià é pesquisador do Centro de Estudos Paraguaios Antonio Guasch e do Instituto de Estudos Humanísticos e Filosóficos. Sempre se dedicou ao estudo da língua guarani e à cultura paraguaia. Doutor em Ciências Religiosas pela Universidade de Estrasburgo, conviveu com os indígenas Guarani, Kaigangue e Enawené-nawé, no Paraguai e no Brasil. É membro da Comissão Nacional de Bilinguismo, da Academia Paraguaia da Língua Espanhola e da Academia Paraguaia de História. Entre suas publicações, citamosEl don, la venganza y otras formas de economía (Assunção: Cepag, 2004). Confira a entrevista. IHU On-Line – Como descrever a experiência missioneira no Paraguai, especialmente no que se refere à religião entre os supostos feiticeiros guaranis e os sacerdotes jesuítas? Bartomeu Melià – A missão é uma experiência de contato. Nesse caso, é o missionário que vai ao encontro do outro, com a finalidade de fazer com que esse outro conheça uma nova história da qual ainda não ouviu nada: a história de Jesus. Isso que parece tão simples supõe muitas condições e contextos. É preciso comunicar-se, e essa comunicação tem que se relativamente duradoura. Os primeiros jesuítas do Paraguai, em 1588, começaram com breves e superficiais missões itinerantes. O resultado foi um fracasso. Só em 1610 – estamos celebrando o IV centenário –, os jesuítas começaram a missão por redução. O padre Antonio Ruiz de Montoya expressou claramente: “Chamamos reduções os povos de índios que, vivendo à sua antiga usança (…), separados, (…), a diligência dos Padres os reduziu a populações grandes e à vida política e humana”. Os Guarani são, até hoje, especialmente religiosos, e não é de se estranhar a grande quantidade de conflitos que houve entre os chamados guarani e os sacerdotes jesuítas. Uma verdadeira guerra de messias, uns mantendo a religião tradicional, outros propondo uma nova linguagem e prática religiosa. A morte do hoje santo mártir Roque González de Santa Cruz se deve a um choque entre duas religiões e dois modos de ser. IHU On-Line – Que aspectos favoreceram o processo de conversão dos guarani ao cristianismo? O temor da escravidão e da morte foram fundamentais? Bartomeu Melià – Na realidade, as missões jesuíticas do Paraguai começam no pleno processo colonial, quando o sistema da encomenda, que consistia em entregar um determinado número de índios a um colono espanhol, para que lhe servissem por vários meses por ano, em troca de proteção, “civilização” e cristianização, já estava produzindo estragos no modo de viver dos Guarani, em seus costumes e em sua saúde. A encomenda, na realidade, era um “cativeiro dissimulado”. Desde o início do século XVII, os bandeirantes de São Paulo também iam penetrando na província do Paraguai, levando os índios como cativos para vendê-los nos engenhos de açúcar do Rio de Janeiro. Muitos já morriam pelo caminho. Os Guarani conheceram e apreciaram essa segurança, que se tornou mais efetiva com o passar os anos. A vida nos povos das Missões chegou a constituir um novo modo de ser que os Guarani sentiram como próprio e diferente dos colonos espanhóis. Na realidade, as missões, povos ou reduções guarani jesuíticas foram uma colônia espanhola sem colonos. Para Voltaire, “le triomphe de l’humanité”. IHU On-Line – Quais são as diferenças entre os índios pré-cristãos e os pós-cristãos? Bartomeu Melià – Os jesuítas consideraram que três formas da vida e da cultura guaranis deviam ser proscritas para os cristãos: a nudez, a poligamia e a antropofagia. De fato, os Guarani abandonaram-nas tão rapidamente que se pode supor que não as consideravam tão essenciais. Foi mantida a língua guarani, o sistema econômico da reciprocidade sem mercado nem moeda dentro dos povos e a agricultura tradicional, que foi incentivada. Foi novidade a urbanização, com edifícios monumentais como as igrejas, os colégios onde estavam os padres e as oficinas e escritórios, a criação das vacarias, o exército com armas de fogo. A religião tradicional com seus cantos e danças, conduzida e animada pelos xamãs, que eram chamados de feiticeiros pelos padres, foi substituída pela liturgia cristã, centrada na missa à qual se acudia mais de uma vez por semana, celebrada solenemente com cantos e música em templos rica e artisticamente guarnecidos com pinturas e imagens barrocas, próprias da época. A grande praça do povo, nos domingos e festas, era cenário de diversas representações dramáticas, desde autos sacramentais até óperas, assim como diversos jogos e simulacros de lutas. Quando, na Europa, ainda não era conhecido, já se jogava entre os Guarani com bolas de borracha e com o pé. Isto é, foot-ball, como relatam com detalhes, mas sem dar as regras do jogo, os padres José Cardiel e Josep Manuel Peramàs. IHU On-Line – Que encontros e desencontros pode-se perceber no universo simbólico entre a religião guarani indígena e a religião cristã? Bartomeu Melià – A religião católica ainda está muito dominada pela hierarquia e pelo poder de uns sobre os outros. A diferença própria dos carismas se faz notar, sobretudo, no exercício do poder doutrinal e administrativo, o que leva a grandes desigualdades entre os que têm a mesma fé e a mesma esperança. As classes sociais são, na Igreja, tão marcadas quanto na sociedade civil. A religião guarani é mais igualitária. Todos e cada um dos Guarani, homens e mulheres, podem receber a inspiração divina, e de fato a grande maioria deles a recebe. Em suas cerimônias rituais, todos participam por igual, mesmo que sejam dirigidos por xamãs que, ao longo da vida, se tornam credores de reconhecimento e de respeito pela sua vida ao serviço dos demais e por suas qualidades espirituais. O padre Montoya dizia que os Guarani se distinguiam por serem “finos ateístas”, o que não quer dizer ateus, mas sim que prescindiam de imagens e de objetos excessivos, o que os torna mais espirituais e dependentes unicamente da palavra inspirada que supõe uma notável vida ascética e desprendida das coisas materiais. Os pa’i e as ha’i – chamados também de ñande ru e ñande sy, nossos pais e nossas mães –, não só cantam e dirigem a dança, mas também costumam ser médicos, educadores e assessores da comunidade. Nesse sentido, cumprem funções sociais e espirituais mais claras do que os sacerdotes católicos em nossa sociedade. IHU On-Line – O senhor conviveu com as comunidades indígenas desde 1969. O que destacaria dessa convivência? Bartomeu Melià – Minha experiência começa em 1969, quando entrei em um lugar doCaaguasú, de cujo nome sempre me lembro. Mbariguí é até hoje um lugar onde as famílias guarani mbyá estão morando em plena selva. Já haviam tido seu 12 de Outubro [data da independência do Paraguai], seus primeiros contatos com a sociedade branca no início do século XX, quando estavam nas orlas do Monday, mas depois daquele contato inicial, do qual lhes havia ficado o uso da roupa e de alguns utensílios de ferro, haviam voltado para a vida do monte, para a sua liberdade antiga, ao seu tekó ymaguaré, dominado pelas longas horas de canto e de dança no opý, a casa de reza. Do seu antigo primeiro contato, conservavam o batismo cristão e a mudança de nome, ou, melhor dito, a duplicação de seu nome tradicional com outro emprestado do santoral cristão. A cada dia percorríamos o monte em busca de mel e de palmito e passávamos revista às armadilhas, onde comumente algum animal havia caído: um pequeno porco do mato ou um veado. De passagem, se podia encontrar algum lagarto ou se tirava um tatu da sua cova. O índio Mbyá com quem eu caminhava ia tocando a flauta. Nos dias de inverno, dormíamos com os pés muito perto do fogo, tomávamos mate muito cedo à espera de que a neblina vivificante da madrugada se dissipasse, dissolvida pelo sol que entrava radiante pela porta da choça. Era um momento de encanto único. É a vida que surge de novo. Um dia, ao sair do tekoa, como chamam o lugar e o ambiente em que vivem, um trator da colônia dos Mennonitas de Sommerfeld estava abrindo uma picada. Era um novo caminho, que anunciava o desmatamento da selva e sua conversão em campos de soja. A terra e os territórios já não seriam mais os mesmos. IHU On-Line – Quais são as novidades de suas pesquisas sobre a língua guarani do século XVIII? Bartomeu Melià – De certo modo, está de moda agora, entre os linguistas, o registro de corpus que dão testemunho real do uso da língua em um momento dado, pelo menos tal como aparece nos documentos. No Paraguai, estamos às vésperas de celebrar oBicentenário da Independência de 1811 e queríamos saber qual era o guarani que se usava naqueles anos. Reuni uma série de uns 100 manuscritos, quase todos inéditos ainda. Transliterei-os à ortografia atualizada e os estou traduzindo. Em 2011, devem ser publicados em edição fac-símile, com sua tradução e notas correspondentes. É nisso que estamos. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/index.phpoption=com_entrevistas&Itemid=29&task=entrevista&id=37603 Foto Crianças Guaranis: http://www.chamame.com.br/conceito-de-chamame |