A Histórica Perseguição aos Ciganos no Mundo

Política de contra ciganos é “nova versão da antiga perseguição,” diz especialista

O governo francês, presidido pelo conservador Nicolas Sarkozy, acelerou nos últimos meses uma política nacional de expulsão de ciganos na França, em uma iniciativa que provocou tensão dentro da União Europeia. Para o especialista Marcos Toyansk Guimarais, consultado pelo UOL Notícias, trata-se de “uma nova versão da antiga perseguição”, que apenas reforça o estigma contra essa etnia.

“A política francesa tem dimensões raciais e recorre às deportações e ao uso da violência fazendo ressurgir na memória os momentos mais sombrios da história europeia”, argumenta Guimarais, pesquisador de Geografia Humana com estudos sobre identidade, diáspora e assimilação de judeus e ciganos.

Este ano, cerca de oito mil ciganos já foram expulsos da França, dos quais quase dois mil deixaram o país desde o final de julho. No ano passado, o número total ficou em cerca de 10 mil.

A tensão sobre o tema aumentou na última semana com o vazamento de uma circular do ministério do Interior sobre desmantelamento de acampamentos ilegais na qual se pede “prioridade” para acampamentos ciganos.

Criticando a política francesa, a Comissária Europeia de Justiça, Viviane Reding, afirmou que “nenhum estado membro pode esperar um tratamento especial quando o que está em questão são os direitos humanos”.

A França respondeu que não se deve falar nesse tom com governos soberanos e, desde então, Paris enfrenta uma situação tensa dentro do bloco europeu.

Veja abaixo a entrevista completa com Marcos Toyansk Guimarais.

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UOL Notícias: Quem são os ciganos?

Marcos Toyansk Guimarais: Os ciganos são um grupo étnico heterogêneo, originário provavelmente do subcontinente indiano e com aproximadamente 12 milhões de pessoas dispersas pelo mundo. Apesar de diversos, os grupos ciganos mantêm aspectos culturais similares, relações de parentesco e falam dialetos derivados de uma mesma raiz linguística, o romani, originário do sânscrito. O romani tem mais de sessenta dialetos, com destaque para o vlax romani, que é falado por aproximadamente metade dos ciganos.

UOL Notícias: Esta não é a primeira vez que grupos ciganos são expulsos ou reprimidos por um governo ou por forças paragovernamentais. Quais os principais momentos na história que isso aconteceu?

Guimarais: Há uma longa tradição de hostilidade contra os ciganos na Europa. Deportações, extermínio e discriminação acompanham a trajetória dos ciganos na Europa. O anticiganismo institucionalizado começou já no século 14, e perdura na Europa e em outras regiões do mundo até os nossos dias. A primeira grande manifestação foi a longa escravidão de ciganos na Valáquia e na Moldávia, que só deixou de vigorar em 1864. Durante a Inquisição ibérica, os ciganos eram, ao lado de judeus, mouros, negros e indígenas, considerados incapazes por tradição, sendo tratados como párias e inferiores.

Os ciganos também foram vítimas dos nazistas. Considerados associais e criminosos genéticos pelos nazistas, os ciganos foram excluídos da sociedade logo após a ascensão de Hitler, em 1933. Ciganos e judeus foram os dois únicos grupos étnicos a serem designados para aniquilação com base na “raça” pela ideologia nacional socialista. Estima-se que cerca de 500 mil ciganos tenham sido assassinados, e muitos milhares de outros foram esterilizados e torturados pelos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial, no episódio conhecido como “Porraimos” (a devoração, em romani).

UOL Notícias: Por que os ciganos são alvos freqüentes desse tipo de violência?

Guimarais: Dentre as causas do anticiganismo, podemos citar a aparência física de muitos ciganos distinta da maioria dos europeus, diferenças culturais, a ideia de ciganos como intrusos estrangeiros e, a mais importante, o uso dessa minoria como bode expiatório.

UOL Notícias: É possível comparar entre esses casos e o que acontece hoje na França?

Guimarais: A participação francesa na deportação, aprisionamento e assassinato de ciganos durante a Segunda Guerra faz com que muitos comparem a situação atual com a França de Vichy. Na década de 40 as autoridades francesas enviaram os ciganos franceses para campos de concentração na França, mantendo-os presos até 1946, aproximadamente dois anos após a libertação da França dos nazistas. Muitos foram deportados pelos franceses para campos de extermínio como Dachau e Buchenwald. Sarkozy, por sua vez, está deportando para a Romênia e Bulgária e não está eliminando fisicamente a população romani. Porém, o documento do ministério do Interior francês mostrou que os ciganos estão sendo alvejados coletivamente, por motivos étnicos, deixando claro que se trata de uma medida racista. É uma nova versão da antiga perseguição, reforçando o estigma dos ciganos e privando-os de igualdade e liberdade.

UOL Notícias: O embaixador francês na ONU em Genebra, Jean-Baptiste Mattei, defendeu seu governo afirmando que “não há um ‘problema cigano’, mas cidadãos europeus mais desfavorecidos que outros, que têm dificuldades de inserção e que merecem atenção particular”. Que avaliação o senhor faz da iniciativa francesa?

Guimarais: A iniciativa francesa é vergonhosa. A França deveria pressionar outros países da União Europeia, como Romênia, República Tcheca e Itália, para que interrompam as medidas de discriminação contra os ciganos, assumindo a liderança na promoção e defesa da justiça e dos direitos humanos. Em vez disso, a política francesa tem dimensões raciais e recorre às deportações e ao uso da violência fazendo ressurgir na memória os momentos mais sombrios da história europeia.

UOL Notícias: Representantes da União Europeia criticam a iniciativa, indicando que ela esvazia os preceitos de união e queda de barreiras que justificam a existência do bloco. A ONU e o papa também se manifestaram. No seu entendimento, os comentários das organizações multilaterais são benvindos ou se trata de uma questão interna da França?

Guimarais: A questão não pode ser tratada como um problema interno da França. Primeiro porque os ciganos são uma população transnacional, dispersa por quase toda a Europa, e perseguida por vários governos e grupos. Há notícias de expulsões em diversos países europeus e de perseguição perpetrada por partidos políticos e grupos neonazistas, como a Guarda Húngara (destinada a aterrorizar ciganos e judeus) e o partido Jobbik da Hungria. Em segundo lugar, a política francesa é destinada à comunidade cigana, a quem Sarkozy – utilizando antigos estereótipos – ligou ao crime, e não a todos os cidadãos da UE que estejam ilegais. Em vez de verificar quem estava ilegal, o governo francês preferiu atacar toda a comunidade. Por fim, o principal alvo da direita francesa são os ciganos da Romênia e da Bulgária, países que recebem recursos da UE e não destinam à comunidade cigana.

É preciso compreender que os ciganos estão entre os povos mais perseguidos do mundo, sofrendo discriminação no emprego, na educação, nos serviços de saúde e sujeitos à violência racista. A expectativa de vida de um cigano na União Europeia, por exemplo, não atinge os 50 anos e a porcentagem de ciganos europeus abaixo da linha da pobreza, de 86%, é bem maior que de palestinos em Gaza, pouco mais de 50%. A União Europeia deve repreender duramente a França, além de realizar esforços verdadeiros na emancipação dos ciganos em toda a Europa.

http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/internacional/2010/09/19/politica-de-sarkozy-contra-ciganos-e-nova-versao-da-antiga-perseguicao-diz-especialista.jhtm

19/09/2010 – 07h00

Thiago Chaves-Scarelli
Do UOL Notícias
Em São Paulo

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