A hipnose corintiana
XICO SÁ
Pós-Copa, é bom ver como o futebol dos clubes devolve o homem a seu devido lugar…
“como São Paulo precisa do Corinthians em campo.”
AMIGO TORCEDOR, amigo secador, ainda na terça, os feirantes aqui da
Pompeia já anunciavam nos seus pregões: o futebol de verdade voltou, o
Timão voltou… Tricolores e o bananeiro santista reagiam também com
seus berros clubísticos.
A velha testosterona-roots estava de volta, sepultando quaisquer
vestígios da Copa do Mundo. O futebol de time devolve o homem ao seu
devido lugar, ao seu faroeste particularíssimo.
Mas o pentecostes da feira era só um esboço diante do retrato
passional em preto e branco que veria anteontem no Baixo Augusta.
No meio do espetáculo que é a juventude roqueira, um cavaleiro
solitário, rosto só vincos como um Samuel Beckett dos pobres, ajeitou
os poucos cabelos, pediu uma cerveja, grudou o nariz na TV que parecia
uma caixa de fósforo, de tão pequena, e dali por diante não conseguia
enxergar nem mesmo a Karine com suas pernas de oncinha.
Foi neste momento solene que o cronista que ronda a cidade pensou mais
uma vez: como SP precisa do Corinthians em campo. O tio ficou
hipnotizado por 90 minutos diante da volta do seu time.
E não se tratava de um torcedor barulhento. É um daqueles
fundamentalistas silenciosos. Sabe aquele cara que celebra ou morre
por dentro sem alterar as feições?
No máximo, ele mexia um pouco com a perna esquerda, como se ajudasse a
bola a correr mais depressa para o gol. Coisa de quem manja da arte da
sinuca.
Um sábio. Essa história do centenário sem Libertadores, vê-se pelos
seus gestos, não significa nada. Não trabalha com obsessões nem morte
a crédito. Só um pouco de dinheiro vivo.
O cavaleiro solitário me confessaria depois da partida: “Essa molecada
não sabe o que é o Corinthians. Ser Corinthians não significa ganhar.
Basta existir. Pronto”.”
No boteco do Bahia, temperatura de uns 12C e sensação térmica de 40C
-graças à beleza das moças que provoca o ilusório aquecimento das
nossas pobres almas-, só o Beckett se ligava no jogo. Alguns rapazes
até miravam a TV de olho no placar e teciam infelizes comentários.
O nosso Beckett me diria, safo: “Se você me pergunta, apressadamente,
qual foi o resultado, juro que não sei. O que vale é testemunhar o
movimento alvinegro em campo, é um ato religioso a que assisto como
quem vê um culto ou uma missa de ressaca. Sabendo da importância da
palavra, mas não entendendo direito o que se fala”.
Folha de S. Paulo, sexta-feira, 16 de julho de 2010