E o meu professor repetia: almoçar os protestantes e jantar os católicos. Os pentecostais… e estava certo em tantas coisas!
O crescimento dos pentecostais já era esperado nos anos 80 e confirmado no começo do século XXI[2], mas a diversidade e a fragmentariedade em muitos pólos de poder já insinua um desdobramento caótico que compromete até mesmo a nomenclatura “pentecostal”. Neo-pentecostais. Pós-pentecostais. Deutero-Pentecostais. São invenções e ajustes de um fenômeno que já deixou de coincidir com sua própria história.
A ordem de almoço e jantar: também confere! O impacto sobre os modos eclesiológicos do protestantismo é evidente assim como a disseminação de um senso comum ”evangélico” na cultura de massas. Na relação com os católicos, o pentecostalismo é referência positiva e negativa de linguagem litúrgica e comportamental que acaba igualando o almoço com o jantar numa indistinção que não permite saber “quem” requentou “quem”.
Mas talvez seja na linguagem simbólica que o professor tenha apontado de modo mais exato o que seria o cenário da religião no Brasil no início do século XXI e as implicações disso para o ecumenismo como vetor de crítica e reflexão e motivação de prática e intervenção sócio-eclesial. Nesta reflexão organizo de modo introdutório minhas leituras sobre o campo religioso brasileiro e exercito algumas possibilidades de compreensão do ecumenismo brasileiro no século XXI.
Comer: almoço e janta.
Meu professor faz sociologia com esse toque de premonição. Comi-o.
E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil… Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Matias. Comi-o.[3]
Soluções Formais: cardápio ou receita?
As análises sobre as relações entre religiões no Brasil têm buscado modelos interpretativos ao longo dos últimos 40 anos que acabam se confundindo com as formas mesmo de conceber o fenômeno religioso. A linguagem sobre “trocas, interpenetrações e comunicações, ora em situações de diferenciação, competição e enfrentamento”[4]sugerem cenários possíveis das relações humanas como se as religiões fossem “seres” em que mistura e distinção criassem as dificuldades para as “soluções formais”.
Entre as soluções formais seria importante lembrar a contribuição de Arthur Ramos que propõe superar a perspectiva de adaptação entre diferenças crenças substituindo pelo conceito de sincretismo entendido como um processo harmonioso de aculturação material e espiritual dos distintos grupos culturais mas, mantendo-se a hierarquia
“Uma terceira razão (pela qual não poderíamos falar em pureza cultural africana no Novo Mundo) reside na aculturação (acculturation), que é, como sabemos, o facto de duas ou mais culturas se pôrem em contacto, tendendo a mais adiantada a suplantar a mais atrazada. Foi esse fenômeno que já estudámos, com o nome de sincretismo, no Brasil, com relação às religiões e a algumas formas do folklore negro”.[5]
Por essa e outras, o termo sincretismo se tornou problemático. Muito usado para se referir diversos aspectos da cultura, dos modos de vida e da religião, os elementos conservadores presentes nos usos anteriores acabou por contaminar a linguagem da crítica e a interditar esta solução formal escorada num termo grego que parecia designar o que era evidente. Não era: nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.[6]
“a fines de la década del 70, la crítica al funcionalismo y al culturalismo pasó a interpretar el concepto de sincretismo como un obstáculo para la percepción de las experiencias de dominación y de la situación de explotación colonial. A partir de allí, el concepto fue abandonado por ser considerado como un arma de los opresores, como parte de una ideología dominante. Se asumía, así, que el sincretismo era un proceso que alcanzaba apenas a los dominados o a la cultura de los dominados”.[7]
O profesor Pierre Sanchis voltou a utilizar o termo sincretismo alargando-o para um“fenômeno universal” retirando assim o caráter “nacional-explicador” do termo, uma “brasilodiéia”. Mas o caráter universal do fenômeno ficaria explicado pelo caráter universaldo catolicismo romano que seria uma religião com predisposição para porosidades e cruzamentos[8].
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.[9]
Uma das possibilidades seria a de entender a hegemonia histórica e cultural da igreja católica romana e buscar formas de relação que explicassem os processos de adaptação, submissão e reinvenção das religiões outras, em especial as matrizes indígenas e africanas. Seguindo de modo criativo a intuição de Sanchis, Afonso Soares propõe que o cristianismo é uma versão universalista da revelação, o que significa dizer que o caráter sincrético não é um acessório, mas parte mesmo do cristianismo em “essência” – como se essência houvesse.
O up-grade levado a termo por um grupo de judeus do séc. I EC inaugurou a ênfase na difusão católica da mensagem cristã e teve de pagar o preço de sub-produtos não desejados mas inevitáveis. Um deles foi a necessidade de acomodações da mensagem original às realidades locais para onde foi transplantada.[10]
Afonso Soares problematiza esta compreensão, reconhecendo nas outras matrizes religiosas também o potencial de “universalizar” e reconhecendo acertadamente a necessidade de considerar as relações assiméticas de poder; o autor sugere, então, o modelo da dupla pertença:
Por conseguinte – eis minha hipótese – fenômenos como os da dupla pertença religiosa, que hoje, se não estiverem mais disseminados, ao menos são mais explícitos, não são propriamente perversões do cristianismo. São, ao contrário, uma crítica, mais ou menos velada, ao cristianismo real (modelo “vale-de-lágrimas”, por exemplo) em que as pessoas vivem… Algo como uma recíproca inreligionação, para dizê-lo com a categoria proposta por Torres Queiruga.[11]
Nesta percepção, haveria uma matriz básica – a católica romana – em que outras matrizes religiosas decalcariam sua “alteridade” mantendo-se sob a disciplina do roteiro principal e administrando variações possíveis e deslocando práticas e conteúdos sem uma ruptura definitiva. As “interpenetrações” aqui são impensáveis e indesejáveis. O dispositivo de poder se mantém no catolicismo romano e as variações seriam toleradas desde que não modificassem a forma original. Como se original houvesse.
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.[12]
Outros autores vão testar as possibilidades do termo hibridismo como Emiliano Unzer Macedo[13]:
Uma nova perspectiva seria necessária para considerar as influências recíprocas entre duas ou mais crenças quando em contato duradouro. Culturas quando em contato tendem a se influenciar mutuamente, não seguindo apenas uma relação dominador-dominado.
A possibilidade de mútuas influências quando suspensas as relações de poder fragilizam a análise de um fenômeno tão complexo. O contato “duradouro” é que é problemático! As estruturas de poder configuram historicamente as crenças em relação e até mesmo as formas de reciprocidade devem ser entendidas no campo interno de negociações dificílimas.
Um certo modelo weberiano de conversão foi muito utilizado especialmente por pesquisadores de formação protestante que mantinham a análise no labirinto de sua formação acadêmica e religiosa revelando de modo mais sincero o impacto da compreensão do fenômeno religioso sobre os instrumentos de análise do fenômeno mesmo. Nesta perspectiva a contribuição do protestantismo histórico, ou “de conversão” teria introduzido na cultura o princípio da individuação que queria promover também a modernização dos elementos conservadores do catolicismo romano. Este esforço era pan-denominacional e se voltava para o conjunto da cultura brasileira buscando ao mesmo tempo relativizar o poderio romano e criar o espaço do indíviduo.
Sobrelevando as diferenças teológicas, as igrejas passaram a desenvolver programas evangelísticos visando ao próprio crescimento a partir de uma mensagem religiosa unificada em torno da conversão individual e mudança de vida… Substituía-se o sermão tradicional, ou a usual homilia, pela “conferência” religiosa. Um caráter mais secular envolvia as reuniões de culto. Para essas conferências as igrejas envolviam os grandes pregadores da época, mais pelos dotes oratórios do que por suas tradições denominacionais.[14]
Se por um lado a mediação da conversão gerou um “quietismo” social[15]por outro lado o mecanismo de resolução individual e modernizadora encontrou um campo propício de absorção exigindo, entretanto, a ruptura com o caráter elitista do protestantismo liberal. Assim, o modelo da “conversão” explicava alterações e deslocamentos no campo simbólico brasileiro. O pentecostalismo assumiria o discurso e as modernidades de “conversão” quebrando/relativizando o modelo patrimonialista-oligárquico católico e criando as condições para o sentimento empresarial do self-made-man, ou melhor dizendo “o abençoado”, o espírito capitalista.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.[16]
O modelo weberiano de entender e explicar as idas e vindas entre as religiões acabou gerando uma aproximação com certa análise quase-marxista que pretendeu/pretende reduzir a diversidade religiosa à metáfora do mercado: crença feito mercadoria, os fiéis reduzidos a consumidores, a superação da fé-de-uso pela fé-de-troca.
Seguindo com Weber, Peter Berger propõe:
A situação pluralista é uma situação de mercado. Nela as instituições religiosas convertem-se em agências comerciais e as tradições religiosas, em mercadorias para o consumidor. De todo modo, grande parte da atividade religiosa, nessa situação, é dominada pela lógica da economia de mercado.[17]
Mas assim como o fenômeno mesmo do mercado e a volatilidade do consumo, a metáfora econômica se mostrou insuficiente e estreita tanto para lidar com as resignificações do valor de imagem do capitalismo globalizado como as resignificações do valor de imagem do campo religioso. Uma análise mais acurada teria de visibilizar a “mão invísivel” do “mercado” que não é livre e cria mecanismos de reprodução de modo a regular a normatividade da mais-valia; de igual modo – e diferente! – a metáfora do mercado nas análises recentes têm deixado de fora o aspecto regulador das economias religiosas.
Chamar a atenção para o grau de regulação das economias religiosas mostra que elas não se definem exclusivamente em termos de monopólio ou de mercado, mas que existe na realidade um contínuo de possibilidades – que implica distintos graus de regulação e a ação de diferentes variáveis que afetam a liberdade com que os indivíduos podem realizar suas opções religiosas e, sobretudo, os custos sociais que devem enfrentar por causa delas.[18]
A crítica da crítica do mercado aponta para a caducidade da espacialidade, isto é, não é o lugar da troca – de onde pra onde – mas sim o fluxo, o movimento de trânsito que interessaria ser investigado. Influenciado pelos pós-tudo e contra as territorialidades – o que os quase-marxistas chamariam de “fetiche” consumista da análise mesmo – parte do esforço interpretativo se expressa então no assim chamado “trânsito religioso”:
Trabalha-se com a hipótese de que as pessoas não mudam de religião de maneira aleatória. A movimentação ocorre em direções precisas, dependendo das instituições envolvidas. Algumas são preferencialmente “doadoras”, enquanto outras são mais “receptoras”; algumas trocam adeptos entre si, enquanto em outras são as crenças que circulam mais. Nossa proposta é formular um fluxograma exploratório do trânsito religioso…[19]
Abandonada a espacialidade religiosa, o esforço interpretativo se volta para o fiel em trânsito e procura aí, na trajetória do indivíduo e seu repertório religioso as motivações e os significados acessados pelo ”transeunte”. Individualizado na busca de significados religiosos imediatos e sem qualquer pretensão de fidelidade às agências religiosas, o “fiel” se desprende da identidade e passa a consumir/ser consumido pelos ícones religiosos. Feito multidão, já não há” povo”, nem “classe”: é o fiel-em-si e não o fiel-para-si. A diferença está na busca pelos bens religiosos/materiais – saúde, emprego, felicidade, segurança, etc – que deixam de ser acessados como “direitos comuns” e passam a ser acessados como “direitos do consumidor” .
Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?[20]
A sugestão do “transeunte” religioso retira todas as possibilidades do fiel ser ele mesmo um produtor de religião… despossuído da espacialidade religiosa, desnecessário na fabricação do religioso, o transeunte passa pelas vitrines da fé, compara e consome… mas não faz nem participa da produção dos atos de afeto e conhecimento, não gera comunidade.
O comum está para além do público e do privado. O comum parte da noção de que muitos dos mais importantes bens de que usufruímos na vida são comuns e só podem ser produzidos em comunidade, a exemplo da comunicação, da produção da subjetividade, da linguagem, dos gestos, idéias, conhecimentos, imagens, afetos, relações sociais e formas de vida. Grande parte do trabalho imaterial contemporâneo consiste na produção de atos de afeto e atos de conhecimento, a produção da subjetividade.[21]
O caráter privatista da religião e do estudo da religião entre nós ainda é reflexo de um justificado temor das elites acadêmicas em relação aos “estudos de padroado”, reflexo das importações intelectuais de teologias romanas ou reformadas e suas pretensões proselitistas que confundiam/confundem o papel da crença/crítica.
O interesse em estudar religião está muito ligado a alguma experiência religiosa anterior, seja positiva ou negativa, fator que traz de imediato à tona a questão da independência metodológica do pesquisador, isto é da neutralidade científica, ao menos até onde isso possível.[22]
E aí, religião e futebol não se discutem – diz o senso comum dos intelectuais preguiçosos e indiferentes aos atos de afeto e conhecimento. A proximidade futebol/religião e os perigos para a integridade da crítica podem ser explicados assim:
Há, portanto, três níveis: no primeiro, há uma distinção nítida entre praticantes e observadores, jogadores e torcedores; no segundo há uma superposição entre comentaristas internos e externos, participantes e observadores; no terceiro, há uma distinção nítida entre estas primeiras duas camadas e o ramo do significado histórico, social, econômico e comparativo do futebol ou da religião.[23]
O importante aqui é reconhecer os níveis e camadas! os internos e externos! e operar com a distinção nítida para acessar o ramo do significado. Assim, bem entendido, o jogador em trânsito pelo campo, pelo clube e pelo campeonato não é capaz de compreender o futebol que joga… o comentarista, talvez! mas este também é parte do espetáculo o que o desautoriza… a torcida: nem pensar! A crítica, despossuída da paixão, observa seguindo os cânones extraordinários de sua disciplina esta paixão tão ordinária[24].
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.[25]
Nas palavras de Bourdieu a razão argumentativa tem como tarefa não deixar nada na sombra e por isso mesmo deve ser capaz de iluminar a si mesma: “La sociologie a pour particularité d’avoir pour objet des champs de luttes: non seulement le champ des luttes de classes mais le champ des luttes scientifiques lui-même”.[26] No caso dos estudos sobre religião no Brasil o zelo positivista e a preguiça intelectual deixam sombras generosas e grosseiras tanto sobre o campo da luta de classes como o campo da luta científica lui-même.
No caso da hermenêutica do trânsito religioso, a teoria explica a aparência “transitória” da religião porque desiste de qualquer pretensão de compreensão de totalidade ou de metabolismo social. A teoria, convencida da “precarização” do todo social e do “desmonte” das formas reguladas de trabalho/religião, faz da flexibilidade e flexibilização parte essencial do fenômeno religioso e terceiriza as agências religiosas. Sem a pretensão de explicar o “todo” e o “tudo” – porque isso seria religião e haveria o risco de fossilização e extinção[27] – a hermenêutica do trânsito naturaliza e normatiza as formas precárias de produção dos atos de afeto e conhecimento da experiência religiosa e suas pertenças e funções na estrutura social.
Nem “classe”, nem “povo”, nem “sujeito”; nem “classe trabalhadora”, nem “movimento popular”, nem “luta de classes” – estas categorias também sob o risco de fossilização e extinção. Focalizando no trânsito do “novo fiel” e sua precária/flexível relação com as“pequenas igrejas/grandes negócios” a tarefa explicativa deixa de ver o intenso processo de dessubjetivação de classe que têm como motivação a dissolução dos “coletivos de crença” e sua capacidade de “memória pública da luta de classes”.[28]
Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?[29]
Entre o determinismo e o mistério as soluções formais sobre religião e as relações entre as religiões vêm avançando de modo sistemático e consolidando tendências que ainda reclamam pela autonomia em relação à teologia/filosofia. No plural ou no singular a/as ciência/as da/s religião/ões ainda se escora/m nos travessões do discurso, preocupada em se afirmar e instituir seu campo de estudo e… tendo gosto em tecer elogios à total inutilidade de suas investigações:
Algum de nós pode dizer de sua própria obra que é totalmente inútil para os propósitos da nova ordem global, em que a exploração de classe é gritante, mas a linguagem para descrevê-la está em ruínas? Por certo, ficaríamos horrorizados se decisões sobre contratações e promoções acadêmicas fossem tomadas com base na medida em que nosso trabalho contribui para a luta de classes. A verdade perturbadora, porém, é que essas decisões são tomadas com vistas a assegurar que nosso trabalho em nada contribua para a luta de classes. E isso, meus amigos, é problemático.[30]
Os chamados estudos pós-modernos e as narrativas hegemônicas de um mundo globalizado pela univocidade do capital afirmam um crescente processo de desterritorialização como compressão total de espaço tempo, erradicação de pertenças e fronteiras. Seria o fim da história e o fim do território. O planeta como território de ninguém e sem fronteiras fica à mercê das grandes coorporações e de interesses de Estados na disputa pelo acesso e controle de recursos naturais e do controle da produção dos atos de afeto e conhecimento. O mito da desterritorialização é assim uma estratégia de controle territorial.
O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?[31]
Marcado por esta perspectiva os estudos de religião no Brasil se esmeram na superficialidade profunda que transforma o mundo da crença em discurso com o enfraquecimento da história falsificando a relação entre categorias espaciais e temporais, propondo o trânsito como um hiperespaço em que o fiel desaparece como produtor dosatos de afeto e conhecimento e vai ser afirmado como consumidor em sua “paixão niveladora” pela troca das mercadorias religiosas e zombando dos mecanismos obsessivos de classificação das religiões tradicionais.[32]
As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.[33]
Neste sentido seria mais interessante aceitar a provocação e proposta de Massimo Canevacci e renunciar à busca da nítida distinção das soluções formais assumindo a “dialética suja”:
“Uma dialética sincrética suja, misturada, fragmentada. (…) A hibridação das culturas favorece a proliferação de possíveis dialéticas-patchwork, onde os tecidos policromos (retalhos reciclados), com os quais representa o evento cultural, coexistem sem superações. (…) O híbrido – da forma como coexistiam o humano e o animal, a razão e o instinto, o passado arcaico e o presente, e como tal destinado desaparecer sob os golpes da razão totalmente humana – atingiu enfim a alta categoria do pensamento ocidental.(…) O híbrido já não é um resíduo marcado pela síntese, mas sim o anúncio de multiformes sincretismos. É por vírus que na radical alteridade descobre o anúncio de futuros possíveis e misturados.”
Entretanto, mesmo nessa perspectiva pan-hiper-pós tudo e misturado, a idéia detecidos policromos que coexistiriam sem superações não explica e não situa o fenômeno religioso e suas difíceis relações de poder e o intenso fluxo e trânsitos que nem sabem de vírus da alteridade nem de futuros possíveis. Neste sentido, a seguir, gostaria de desenvolver a sugestão de meu professor e testar uma possibilidade que já faz parte do repertório de nós mesmos: retalhos reciclados. Assumo a metáfora do “almoço/jantar” e recupero a imagem antropofágica como mediação interpretativa para as relações de relações religiosas. Os deuses me ajudem. As deusas também e alguma ciência.
Religião e Comida – para além das soluções formais
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.[34]
Coma-me! a fé marcada pelas materialidades e sensualidades de comer e beber. Por estarem intimamente relacionadas com a capacidade de sobrevivência e de reprodução da vida material, a comida e a bebida sempre estiveram e continuam estando, muito próximas dos rituais e práticas religiosas.
Comer e beber são atos básicos de troca com o mundo, relações de pertença do corpo pessoal e social no corpo do mundo: oikumene. Comer e beber são representações fundamentais de pertença a uma cultura, exercício de eleição de elementos e de permanência de temperos e arranjos de distintos elementos. A comida revela uma maneira de estar no mundo, de estabelecer trocas com o território habitado, organizar o trabalho. Comer é fazer cultura como permanência, capacidade de adaptação e criatividade.
Na refeição – qualquer refeição – as pessoas participam ritualmente do acesso a todo um processo de produção e reprodução ao mesmo tempo das condições da vida material como também da vida simbólica. Muitas das festas sagradas, em diversas religiões, se reportam ou tem como referência o tempo da colheita, o momento em que o trabalho produtivo vai ser ritualizado performatizando a distribuição do alimento e seu consumo. No ritual, na comida e na bebida de festa, o grupo social se apropria da colheita como produto e como símbolo. Trabalho e festa.
“…compartilhar a comida é uma transação que envolve uma série de obrigações mútuas e dá origem a um complexo interconectado de mutualidade e reciprocidade. Além disso, a habilidade da comida de simbolizar essas relações, bem como definir as fronteiras entre os grupos, surge como uma de suas propriedades única. (…) O ato de comer é um comportamento que reflete sentimentos e relações, serve como mediação para o status social e o poder, e exprime os limites de identidade do grupo.”[35]
As festas sagradas exigem comidas especiais, não só porque expressam uma qualidade maior e uma quantidade superior a que se precisa para atender às necessidades do grupo envolvido, mas porque dialogam de modo básico com as tradições específicas de cada grupo social. As preferências por este ou aquele cardápio não revelam somente aquilo que é do gosto comum mas, se comunicam com as origens e as representações, as trocas simbólicas e materiais com o sagrado. Se um grupo social pode comer tal carne que é impensável para outro grupo; se tal fruto degusta-se numa salada ou como doce, revela uma maneira de estar no mundo, e de estabelecer trocas com o meio-ambiente e a cultura, tanto como permanência como capacidade de adaptação e criatividade.
Os cardápios são, assim, referências a padrões que compõem a vida social e roteiros que reúnem trabalho produtivo, mecanismos de distribuição e consumo, arte e ciência. Muitos dos estudos antropológicos privilegiam os costumes ao redor das refeições como um lugar fundamental de conhecimento não só da vida regular como também das simbologias e representações de um determinado grupo.
Mas não são somente as comidas especiais de dias de festa que reúnem o contexto material e a experiência do sagrado. Cada refeição, cotidianamente, reproduz o ritual original. No espaço doméstico, longe dos templos e tempos marcados pelo calendário das festas, os grupos primários repetem e modificam os rituais alimentares. Situações de doença, estados de vida específicos – gravidez, amamentação, restabelecimento da saúde etc. – comemorações particulares refazem todo o simbolismo da comida no âmbito familiar e comunitário.
O amor cotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade… O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. [36]
Por tudo isso a fome é um elemento trágico não somente e especialmente porque de modo definitivo golpeia a capacidade de sobrevivência dos indivíduos e do grupo social, mas também porque rompe com a capacidade simbólica de reprodução e de representação do acesso aos fatores vitais de vida e de pertença ao corpo do mundo. A fome denuncia a incapacidade e a impotência do grupo social em resolver suas questões mais fundamentais.Eis o meu Corpo! Coma-me!
Assim não é estranho que o ato de comer faça parte do mundo das trocas materiais e simbólicas da religião. Mas na metáfora do meu professor a religião é ao mesmo tempo a fome e a boca. Mais que isto, as religiões se comem, se alimentam umas das outras. Roberto DaMatta chama a atenção para o que ele considera um “nós brasileiros”: uma refinada distinção entre alimento e comida. Alimento seria da ordem do dever; comida – comunhão e comensalidade – é da (des)ordem do prazer.
Para nós brasileiros, nem tudo que alimenta é sempre bom ou socialmente aceitável. Do mesmo modo, nem tudo que é alimento é comida. Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva; comida é tudo que se come com prazer, de acordo com as regras mais sagradas de comunhão e comensalidade. Em outras palavras, o alimento é como uma grande moldura; mas a comida é o quadro, aquilo que foi valorizado e escolhido dentre os alimentos; (…) A comida vale tanto para indicar uma operação universal – ato de alimentar-se – quanto para definir e marcar identidades pessoais e grupais, estilos regionais e nacionais de ser, fazer, estar e viver.[37]
Mesmo correndo o risco de inventar um “nós brasileiros” que não resistiria a um simples teste de exclusividade – que o diga o inhame de Bronislaw Malinowski na vida trobriandesa – DaMatta explicita a comida como ato de escolha e valoração garantidor de identidades, estilos e modos de vida. Antes dele em 1933, Gilberto Freyre publicou Casa-Grande & Senzala, fazendo o registro dos hábitos alimentares e oferecendo receitas que poderiam explicar o “&”: o açúcar sinal de opulência canibalizava o trabalho escravo no quitute. Comi-o.
Doce de manga. Descasca-se a manga e corta-se em talhadas. Faz-se um mel ralo (calda) põem-se dentro as talhas, que se levam ao fogo para fazer o doce. Quando o mel se mostra em ponto de fio brande o doce está pronto.[38]
O que dizem os/as antropólogos/as é que esta distinção entre alimento & comida não se funda numa racionalidade ou num saber científico que, no caso da comida, deve conviver de forma tensionada com as escolhas e valores, modos e prazeres que são acionados pela experiência de comer: permissões, proibições e jejuns[39]
Decifra-me ou devoro-te!
Se aceitamos a proposta do professor, é o pentecostalismo que “come” – almoço e janta… mas pela voracidade da mastigação o terreiro devora aos bocadinhos qualquer racionalidade cristã sem guardanapo, algum palito. E aqui, para continuar com a sugestão do professor e superando seu alcance descritivo busco um modelo interpretativo que recoloque as relações de gula e regurgitação como vetor importante nas relações de relações entre as religiões no Brasil.
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes.[40]
A hipótese antropofágica
Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupy, or not tupy that is the question.[41]
As descrições de antropofagia[42] estão presentes em alguns dos primeiros relatos dos viajantes às terras que hoje chamamos Brasil, como no caso dos Tupis nos relatos de Amerigo Vespucci no século XVI. As descrições das práticas antropofágicas dos tupis se consolidaram como um projeto moderno emoldurado pelo termo “Novo Mundo” e globalizado na tradução simultânea para várias línguas, acompanhado de xilogravuras e um aparato conceitual que distinguia isto de aquilo – os “índios do novo mundo” são antropófagos e “por isso” se distinguem das culturas das índias orientais.
O ritual canibal tinha início com a captura do inimigo, que podia viver longos anos junto aos seus contrários, com uma esposa ritual, atividades cotidianas, troca de experiências e até mesmo procriar. Um dia ocorreria sua execução o que ele sabia, aceitava e era impensável qualquer ato de covardia, já que o sentido do ritual dependia dos valores que a vítima era capaz de ostentar – a coragem, a bravura, a altivez…[43]
A construção de “uma cultura colonial elaborada no interior de um processo, complexo e necessário, de negociações …” coloca a religião num lugar estratégico para a pergunta das metodologias de poder e as narrativas de controle. Para além da representação a antropofagia ritual torna difuso a distinção de sagrado/profano e faz de toda comida um ritual, mas também de todo “comedor” algo “comestível”! e é justamente neste processo duplicado de transubstanciação que o caráter místico/mágico/religioso de um dualismo incapaz de absorver “a crença na ressurreição corpórea” ( Lévi-Strauss[44]) torna o cristianismo inviável, porque não recusado mas comido. Por essas e por outras degustações é que o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade vem datado assim:
Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. (Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)[45]
O Manifesto re-inventa o calendário culinário-religioso: a marcação temporal e espacial do encontro profundo do Bispo Sardinha com os tupinambás. O ano 374 DBS (da Degluticação do Bispo Sardinha) desloca a datação e o logocentrismo do cristianimso e propõe – como ato fundante interpretativo – a grande fome dos tupinambás e a total falta de metafísica do ritual. A antropofagia do Manifesto reconhece as relações de poder desigual da história colonial e inverte e transgride os sinais dos contructos sociais da relação entre natureza & cultura que nos manteriam no labirinto do modelo/cópia. Para além do dualismo entre pensamento lógico e pensamento selvagem, a dialética suja de Oswald de Andrade não faz desaparecer nenhum dos termos de conflito/ em conflito. Europeus devoram – matas, metais, bichos, gentes – e são devorados: está dado conflito. Os comidos têm dentes: e comem. Escolhem. Valoram e deglutem formas, selecionando o que permanece, misturando substâncias e excretando o que não interessa.
“A antropofagia é o reflexo sobre a possibilidade de uma cultura genuína, levando-se em conta as condições de sua produção como tributária da européia… (só se pode) criar pela mistura de todas as contribuições da cultura letrada e da iletrada. É este o sentido da voracidade antropofágica: ela é uma entredevoração”. [46]
Maria Isaura Pereira de Queiroz numa conferência de 1987 explica de forma sintética a teoria da antropofagia de Oswald de Andrade :
O escritor e ensaísta Oswald de Andrade (1890-1954), por sua vez, forjando a teoria da antropofagia, explica como se opera a fusão dos elementos culturais díspares: o Brasil, culturalmente, devora as civilizações que a ele vêm ter, compondo uma nova totalidade diferente das anteriores… Na década de 30, porém, já se encontrava perfeitamente consolidada e considerada como a interpretação válida do que seria a brasilidade. Com o correr do tempo, mais e mais foi se configurando como núcleo central de uma definição do que seria a identidade nacional, que perdura até os dias atuais.[47]
Mesmo relativizando os “dias atuais” da autora e superando as facilidades de uma compreensão folclórica da antropofagia como nome-do-nome de uma mediação de identidade social, a possibilidade de retomar esta mediação está na ambigüidade entre a coisa & a palavra, isto é: antropofágica é a coisa que se conhece & o método de se conhecer. A comida é o prato. Comi-o. Para as gerações da Arte Moderna e o que veio depois o fato de que o resultante cultural era desarmônico e desigual não era um obstáculo, mas um vetor da produção mesmo do conhecimento conhecido.
Consideravam que a reunião de elementos díspares devia mesmo resultar numa configuração desarmônica; todavia, achavam também que esta mesma desarmonia seria sempre fonte de enriquecimentos e de inovações, porque estimulava ou a renovação, ou a expansão do que já existia.[48]
“E aí veio a umbanda” – diz Maria Isaura (Comi-a!): fato de que ao mesmo tempo surgirem teoria e religião girando em torno do mesmo núcleo cultural indica que o que se poderia chamar de civilização brasileira.[49] Esta sugestão da autora se aproxima da visão do meu professor que não somente descreve metaforicamente as relações religiosas quase 100 anos depois da Semana de Arte Moderna, mas sugere a justaposição retro-antropofágica entre teoria e religião. Assim a hipótese antropofágica para a sociologia da religião.
A dificuldade de entendimento da religião entre nós está nessa duplicidade ente a coisa e a palavra, o comido e o em que comer que horripilaria a ciência não mastigável fosse cartesiana positivista, marxista ou uma fenomenologia rasa ou funda; O prato. Também as alternativas de análise e a revisão crítica das categorias de análise que movem os estudos de religião temem confundir os modelos interpretativos com os objetos… como se o prato fosse comestível. E é. Comi-o.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.[50]
Assim, os pentecostais comem e foram comidos: reformados e romanos que se comem. Os pentecostais minorizados na escala de poder religioso resistem e apropriam-se do que lhes convém. Recusam o cristianismo inviável porque imposto; tomam aos bocados o Livro e recusam o método histórico crítico; recusam o ritualismo do latim e destemperam línguas estranhas de temperos outros; Assim se canibaliza o cristianimso fatiado em porções possíveis e metabolizado na cultura do conflito. A religião é entre nós ainda esta relação difícil entre a crença imposta e a crença recebida porque comida subvertendo a relação colonizador/(ativo)/colonizado(passivo). Regurgitação. Soluço. Suspiro.
A religião é o suspiro do ser oprimido, o íntimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo. A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real.[51]
Mais do que um “nós brasileiros” esta capacidade de resistência poderia ser percebida em outras formatações do “nós latino-americanos” como por exemplo na voracidade com que Mariátegui mastiga e engole porções do romantismo europeu, da mística revolucionária dos bolcheviques e a religião indígena e camponesa:
Para Mariátegui, a luta revolucionária – ou melhor dito, empregando o termo de Miguel de Unamuno que tanto o fascinava – a agonia revolucionária configura um re-encantamento do mundo. Mas, ao mesmo tempo em que é “mística” e “religiosa”, esta luta é profana e secular: a dialética mariateguista tenta superar a oposição costumeira entre fé e ateismo, materialismo e idealismo.[52]
Também na literatura é possível identificar antropofágicas aproximações, de modo especial na literatura fantástica latino-americana, com especial destaque para a obra de Manuel Scorza que devora a racionalidade mítica dos indígenas em meio às narrativas da história, tornando viável a ‘aceitação’ ou ‘adoção’ do estrato do mágico-mítico-religioso evitando as fraturas que os narradores da tradição indigenista impunham entre o que consideravam superstições indígenas e acontecimentos reais”. [53]
Em Jorge Amado a relação de devorar/ser devorado exercita a intensidade antropofágica no campo mesmo das religiões de matriz africana inviabilizando certo imobilismo interpretativo que se contentaria com a relação nós & outros das tolerâncias cristã:
Jorge Amado dava pouca importância à pretensão desse ou daquele terreiro de ser mais “puro”, mais legítimo ou mais genuíno que os outros. Tratava a todos como igualmente importantes e misturava todas as nações de candomblé. Santos católicos e orixás se confundem no enredo de seus romances na mais fina tradição do sincretismo.[54]
E as festas: religiosas? A presença das narrativas e imagéticas bíblicas nas festas populares brasileiras também desafiam as lógicas discursivas e controladoras das igrejas tradicionais. Numa apropriação laica, não dogmática mas sim performática, as festas populares dialogam com as tradições bíblicas nos espaços híbridos do sagrado e profano e na ambigüidade do calendário religioso latino-americano. Assim nas festas de junho associadas a São João e os cantos de cururu no centro-oeste brasileiro re-interpretam a vida e morte de João Batista mesclando informações bíblicas com elementos da cultura religiosa local[55]
Os usos e abusos antropofágicos na literatura nos permite “lamber a língua” – na música de Adriana Calcanhoto[56]. O mesmo hoje acontece com hinos e salmos das tradições religiosas que são revistos e reinventados para além da modernidade gospell explicitando a piedade quase-nórdica ao balanço quase-axé. E devoram-se corinhos protestantes em cerimônias católico romanas, e se reinventas as novenas e tríduos nas correntes neo-pentecostais que parcelam a fé em suavas prestações. Ninguém é de ninguém. Mas não é trânsito é conflito. Sem deglutição não há religião! Comeu-me!
Recolocar os estudos de religião no campo do conflito exige muito mais do que iluminar a teoria ela mesma, exige recolocar a esforço interpretativo ele mesmo na voracidade da luta de classes.
Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.[57]
São dois movimentos da dialética que se comem: o primeiro que relaciona religião a si própria: uma heterogeneidade interna, em alguns pontos antagonismos e o outro, seria uma relação, contraditória, da religião com a sociedade como um todo”.[58]
Campo religioso e antropofagia: sincretismo é ecumenismo?
Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.[59]
Recolocando a religião na cumbuca das relações sociais de poder e garantindo a visibilidade do conflito dos processos antropofágicos a tarefa interpretativa ainda deveria cuidar da baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo. Paulo Sergio Rouanet mantém a roda dentada da crítica quando chama a atenção para a diferença entre tupinambás e caetés[60].
A questão é que mesmo a gula antropofágica pode ser padronizada e virar cacoete da crítica sem contato com a materialidade da fome – ritual, que seja! Assim haveria que se manter crítico na crítica:
Os caetés nunca saíram do lugar. Os tupinambás viajaram muito.
A antropofagia dos caetés é provinciana. A antropofagia dos tupinambás é cosmopolita. Os caetés se gabam de terem comido um bispo português. Coisa de nada. Foi uma pequena fome, um canibalismo chauvinista, incapaz de alterar os rumos da história mundial. Os tupinambás têm uma grande fome, que não recua diante da própria cultura tubinambá. Antropofagia autofágica, heterofágica, panfágica: antropofagia da grande taba do mundo. Os caetés são filhos de sua tribo.
Os caetés, não são ecumênicos porque comem de olho num cardápio anterior, isto é, já sabem o que querem quando abrem a boca, não se atrevem a sentir o gosto todo do que comem. Os caetés usam coador. “Os caetés querem ter raízes… A antropofagia que eles praticam virou gastronomia oficial. Só que ela ficou muito esquisita. Ou os alimentos saem tais como entraram, sem nenhuma transformação. A passagem pelo tubo digestivo não altera nada…”
Os tupinambás são ecumênicos. Os tupinambás sabem “ser nativos, mas também sabem ser exilados, e enquanto exilados vêem tudo de fora, julgam tudo de fora, e decidem absorver ou expelir segundo critérios diferentes dos critérios tribais. Os tupinambás querem ter asas”. Os tupinambás são nômades. São nativos que se sabem exilados. Desconfiam deles mesmos. Devoram o outro porque aceitam a realidade conflitiva – a grande fome! mas não querem substituir o outro. Antropofagia autofágica, heterofágica, panfágica: antropofagia da grande taba do mundo.
E esta diferença faz toda diferença.
Perguntei a um homem o que era a identidade brasileira. Ele me respondeu que era a síntese de Deus e da família. Comi-o. Fiz a mesma pergunta a outro homem e ele me disse que era o resultado do casamento de um pajé com uma mãe de santo. Comi-o[61]
Não comemos para formar nossa identidade – diz Rouanet, mas para desfazê-la e refazê-la. Comi-o: não somos ecumênicos para saber que eu não sou o outro, para ter noção da minha identidade. Ser ecumênico é ser nômade. Inacabado. O ecumenismo que nos interessa é tupinambá e não os rituais caetés de igrejas que não se deixam comer. Ser ecumênico é negar, preservar e transcender também a sua própria tribo: o que equivale, em língua de antropófago, a mastigar o alimento, recebê-lo no estômago e transformá-lo.
O ecumenismo caeté é o reforço da autoridade sem passar pelo tubo digestivo. Fingem que comem, fingem que afirmam a pluralidade, mas continuam únicos e insubstituíveis. Fizeram redução do estômago e sociológica: não querem engordar. Participam de rodadas ecumênicas para provar a si mesmos e tornar mais nítida a diferença. “Canibais incompetentes”.
O ecumenismo tupinambá se arrisca, se guia pelo cheiro, se guia pela grande fome dooikos que não se deixa reduzir ao tamanho da taba. Excomungados e lúcidos. Os tupinambás: vêem tudo de fora, julgam tudo de fora, e decidem absorver ou expelir segundo critérios diferentes dos critérios tribais. Ser ecumênico é assim estar “em casa no mundo todo, exilado em toda parte… Porque fome de tupinambá é grande demais. É uma fome transcultural, transtribal. Catiti catiti, imara notiá, notiá imara, ipeju.”
Bispos e pastores: se comem. Os cantores devoram canções bregas travestidos de cantores: se comem… e palitam os dentes com os fiapos de candomblé que fica no ritual. E cospem no prato que comeram. Querem ter raízes: no Estado, na Câmara dos Deputados, no Banco. Eles não sabem: O que interessa na Pomba Gira é que ela é também Maria Padilha, amante de um rei de Castela, D. Pedro o Cruel. Sol, mãe dos viventes: de todos os viventes, e não só de alguns.
Antropofágicos nos uniremos, se tupinambás. Porque no fim das contas o que conta é a alegria: a prova dos noves de qualquer teoria, paixão e fé.
[1] Nancy Cardoso Pereira, teóloga, profa. do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Severino Sombra, Vassouras, Rio de Janeiro
[2] CAMURCA, Marcelo Ayres. Entre sincretismos “guerras santas”: dinâmicas e linhas de força do campo religioso brasileiro. Rev. USP, São Paulo, n. 81, maio 2009 . Disponível em <http:>. acessos em 21 nov. 2010.</http:>
[3] ANDRADE, Oswald, Manifesto Antropofágico, http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropof.html (acesso 12/11/2010)
[4] CAMURÇA, op.cit.,
[5] RAMOS, Arthur, A Aculturação Negra no Brasil, Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1942, p.34.
[6] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[7] MARIZ, Cecília, “De Vuelta al Baile del Sincretismo”: un Diálogo con Pierre Sanchis, in: http://seer.ufrgs.br/CienciasSociaiseReligiao/article/view/2284/988
[8] SANCHIS, P, “Religiões, religião… Alguns problemas do sincretismo no campo religioso brasileiro”, SANCHIS, (org). Fiéis & Cidadãos; Percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001, p. 19
[9] ANDRADE, op.cit.,
[10] SOARES, Afonso Maria Ligório, Algumas anotações acerca da atual conjuntura teológico-religiosa do catolicismo romano, Revista Eletrônica Correlatio n. 10 – Novembro de 2006, p. 26
[11] SOARES, Afonso Maria Ligorio, Revista de Estudos da Religião Nº 3 / 2002 / pp. 45-75, in: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/File/conteudo/artigos_teses/ENSINORELIGIOSO/artigos/sincretismo_afrocatolico.pdf (acesso em 12/11/2010)
[12] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[13] MACEDO, Emiliano Unzer, Pentecostalismo e Religiosidade Brasileira, São Paulo, 2007,
[14] MENDONÇA, Antônio Gouveia, O protestantismo no Brasil e suas encruzilhadas, Revista USP, São Paulo, 2005, p. 56
[15] ibid., p. 63
[16] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[17] BERGER, Peter. O dossel sagrado, Cap l. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 170
[18] FRIGERIO, Alejandro. O paradigma da escolha racional: mercado regulado e pluralismo religioso. Tempo soc., São Paulo, v. 20, n. 2, Nov. 2008 . Available from <http:>. access on 21 Nov. 2010. doi: 10.1590/S0103-20702008000200002.</http:>
[19] ALMEIDA, Ronaldo; MONTERO, Paula, Trânsito Religioso no Brasil, in: http://www.scielo.br/pdf/spp/v15n3/a12v15n3.pdf
[20] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[21] DAL ROSSO, Sadi. Multidão pode substituir classe operária nos dias de hoje?. Soc. estado., Brasília, v. 21, n. 3, Dec. 2006 . Available from <http:>. access on 18 Nov. 2010. </http:>
[22] MENDONÇA, Ciências da Religião: do que mesmo estamos falando? Ciências da Religião: História e Sociedade, Ano 2 , N. 2 , 2004, in: http://www3.mackenzie.br/editora/index.php/cr/article/viewFile/2314/2163
[23] ENGLER, Steven, Editorial: A Teoria no seu Lugar, Revista de Estudos da Religião – REVER, número 4, ano 5, 2005, in: http://www.pucsp.br/rever/rv4_2005/editorial.htm (acesso em 18/11/2010)
[24] cf.: BROMBERGER, C. (Org.). Passions ordinaires: du match de football au concours de dictée. Paris: Bayard, 1998., apud., DAMO, Arlei Sander, Da Paixão pela Etnologia à Etnologia das Paixões Contemporâneas, in: http://www.scielo.br/pdf/ha/v14n30/a10v1430.pdf (acesso em 18/11/2010)
[25] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[26] THUILLIER, Pierre Entretien avec Pierre Bourdieu: La sociologie est-elle une science (texte intégral) http://www.larecherche.fr/content/recherche/article?id=14410 (acesso em 18/11/2010)
[27] ibid.,
[28] ALVES, Giovanni, Trabalho, subjetividade e capitalismo manipulatório – O novo metabolismo social do trabalho e a precarização do homem que trabalha, in: http://www.giovannialves.org/Artigo_GIOVANNI%20ALVES_2010.pdf (acesso em 17/10/2010)
[29] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[30] BUCK-MORSS, Susan, Walter Benjamin: entre moda acadêmica e Avant-garde, http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/A_Buck-Morss.pdf (acesso em 19/11/2010)
[31] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[32] EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p. 270
[33] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[34] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[35] KLOSISNKI, L.E., in: CROSSAN, J.D., O Jesus Histórico, Imago, Rio de Janeiro, 1996, p. 47
[36] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[37] DaMATTA, Roberto, O que faz o brasil, Brasil? 5.ed. Rio de Janeiro: Editora Rocco. 1991, p.55
[38] FREYRE, Gilberto, Assúcar, 1939, in: http://quitandasdeminas.blogspot.com/2010/10/gilberto-freyre-acucar-e-manga.html (acesso em 20/11/2010)
[39] RONDINELLI, Paula, Alimentação e Religião – um estudo antropológico no movimento alternativo, in: http://www.pucsp.br/nures/revista3/3_edicao_alimentacao_religiao.pdf (acesso em 21/11/2010)
[40] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[41] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[42] AGNOLIN, Adone, O apetite da antropologia: o sabor antropofágico do saber antropológico – alteridade e identidade no caso tupinambá, São Paulo: Humanitas, 2005
[43] MOTA, Regina, in: http://www.fafich.ufmg.br/manifestoa/pdf/analisemanifestoa (acesso em 17/11/2010)
[44] LÉVI-STRAUSS, Claude. 1955. Tristes Trópicos. Lisboa. Edições 70, apud., AGNOLIN, Adone, O apetite da antropologia
[45] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[46] ANDRADE, Oswald, apud., RODRIGUES FILHO, José Maria, «Cobra Norato», de Raul Bopp:
a celebração da brasilidade e as suas possibilidades midiáticas, in: portal.doc.ua.pt/journals/index.php/formabreve/article/…/193 (acesso em 22/11/2010)
[47] DE QUEIROZ , Maria Isaura Pereira, Identidade Cultural, Identidade Nacional no Brasil, Tempo Social – Rev. Sociologia da USP., S. Paulo, 1(1), 1. sem. 1989, p. 29 in: http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/site/images/stories/edicoes/v011/v1n1a02.pdf (acesso 20/11/2010)
[48] ibid., p.29
[49] ibid., p. 29
[50] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[51] MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2001, p.45
[52] LOWY, Michael. Mística revolucionária: José Carlos Mariátegui e a religião. Estud. av., São Paulo, v. 19, n. 55, Dec. 2005 . Available from <http:>. access on 28 Nov. 2010</http:>
[53] ESCAJADILLO, Tomás. La narrativa indigenista peruana. Lima: Amaru, 1994. p. 57, apud., ARAO, Lina, Entre culturas: conflitos na literatura heterogênea de Manuel Scorza, in: http://www.letras.ufmg.br/espanhol/Anais/anais_paginas_%201005-1501/Entre%20culturas.pdf (acesso em 28/11/2010)
[54] PRANDI, Reginaldo, Religião e Sincretismo em Jorge Amado, in: http://www.jorgeamado.com.br/professores2/05.pdf (acesso em 28/11/2010)
[55] SOUZA, João Carlos de. O caráter religioso e profano das festas populares: Corumbá, passagem do século XIX para o XX. Rev. Bras. Hist. [online]. 2004, v. 24, n. 48 [cited 2008-12-02], pp. 331-351. Available from: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882004000200014&lng=en&nrm=iso (acesso em 12/11/2010)