Tudo é possível? Uma ética para a civilização tecnológica – 3 Artigos

Há 32 anos era lançada uma obra fundamental para a filosofia, cuja abordagem é das mais atuais e inquietantes: O princípio responsabilidade, de Hans Jonas (1903-1993). Inspirada pela importância desse escrito, a IHU On-Line entrevistou pesquisadores sobre o legado jonasiano.

Contribuem para o debate Lourenço Zancanaro, Jelson Roberto de Oliveira, Helder Buenos Aires de Carvalho, Nathalie Frogneux, Robinson dos Santos e Lilian Godoy.

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Um futuro hipotecado

Abdicar da “festa frívola” e da ideologia do progresso que embalam a sociedade moderna egoísta é imprescindível para que tanto a humanidade quanto o planeta onde vive continuem a existir, pondera Nathalie Frogneux

Por: Márcia Junges

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“Continuamos ainda hoje muito míopes nas nossas escolhas e prisioneiros da ideologia do progresso de uma humanidade que se considera soberana”. A constatação é da filósofa francesa Nathalie Frogneux, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line sobre o legado de Hans Jonas. Na verdade, continua, “se Jonas teve a intuição do perigo tecnológico que ameaçava a humanidade futura, ele constata também que esta intuição é rara e dificilmente partilhável”. A partir dessas constatações, a filósofa questiona como se pode “agir de maneira descentralizada e não egocêntrica ou etnocêntrica? Como não optar em função de nossa única época? Como operar esta inversão do olhar e, assim, de levar em consideração os que não nos são contemporâneos, pelos que, no entanto, somos responsáveis? Como renunciar ao que Jonas chama de ‘festa frívola’ de nossa época para optar por um comportamento mais responsável (e, sem dúvida, menos dispendioso), mas também menos arrogante, mais descentralizado?” Frente a tantas dúvidas, uma coisa é certa: “Não podemos hipotecar o futuro dos humanos que está por vir”.

Nathalie Frogneux leciona na Universidade Católica de Louvain (Louvain-la-Neuve), na Bélgica, no Instituto Superior de Filosofia. De sua vasta produção bibliográfica, citamos Emmanuel Lévinas et l’histoire (Paris-Namur: Éditions du Cerf-Presses Universitaires de Namur, 1998).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Quais são os principais desafios à ética formulada por Hans Jonas?

Nathalie Frogneux –
 Vou responder mais amplamente a partir d’O princípio responsabilidade, e, sem querer ser exaustiva, gostaria de salientar quatro desafios principais. A conscientização da crise tecnológica e seus riscos ecológicos, a dimensão ética de nossas ações coletivas, uma remoralização do político e, sobretudo, o sentimento de uma responsabilidade amplificada inédita.
O primeiro desafio é a tomada de consciência diante de uma ameaça global que se esconde atrás da ideologia de uma vida mais confortável. Se recolocarmos a ética da responsabilidade no contexto dos anos 1970, seu desafio era uma conscientização da situação de urgência na qual a humanidade se encontrava em razão das escolhas científico-tecnológicas da sociedade ocidental. Jonas vislumbra antecipadamente que estas escolhas serão logo seguidas pelo conjunto da população mundial. O caráter precoce e radical de sua conscientização desta crise, ligada a um sistema tecnológico cumulativo, caracteriza certamente o princípio responsabilidade. O primeiro desafio seria então de fazer compartilhar uma intuição impopular e que ia a contracorrente na sensibilidade e no otimismo do momento: a saber, a inversão possível da utopia científico-técnica, ocidental moderna em catástrofe para a humanidade inteira. Jonas pensa esta perversão de um ideal, enquanto que a época é ainda voltada aos desafios “melhoristas” e ligados ao progresso de nossas condições de vida, como a conquista do espaço ou a oposição entre capitalismo e comunismo. Neste sentido, Jonas desenvolve um pensamento global: este desafio diz respeito a todos nós, pois somos todos potencialmente vítimas destas ameaças ecológicas. Se insisto na intuição de Jonas, é porque ele não distingue nem um pouco os tipos de riscos tecnológicos (intrusão das técnicas no seio da matéria e mesmo dos organismos vivos) riscos ecológicos consecutivos (esgotamento dos recursos pelo superconsumo, poluição, mudanças climáticas, etc.). Todas estas distinções, que se tornaram evidentes hoje, somente serão possíveis mais tarde. Da mesma forma, ainda marcado pela oposição entre o comunismo e capitalismo, deixa ocultada a conivência entre tecnologia e economia para salientar o salto da ciência na era tecnológica.

Novo imperativo categórico

O segundo desafio do princípio responsabilidade é certamente mais o de ligar esta constatação da crise tecnológica e ecológica a um desafio ético, do que aos enredos políticos ou à gestão das ações coletivas. Efetivamente, a responsabilidade de nossas ações coletivas deve ser carregada por cada indivíduo: somente uma ética em nível universal será capaz de evitar um risco global. Enquanto que as questões éticas ligadas ao multiculturalismo emergiam, enquanto que o liberalismo parecia ser uma solução eficaz para conciliar as diversas concepções da vida boa, Jonas salientava a necessidade de garantir as condições de possibilidade deste debate. Neste sentido, pode-se ver a ética da responsabilidade como uma metamoral, pois ela diz respeito à condição de possibilidade de todas as éticas (mesmo a de Kant ). Esta condição é a de uma humanidade livre e responsável. O segundo desafio é, então, a radicalidade desta ética que traz um novo imperativo categórico: que uma humanidade seja feita.
O terceiro desafio seria a articulação entre a ética e o político ou a remoralização do político que corresponde ao destaque do rebaixamento ético de toda política. Um valor deve ser compartilhado por todos, independentemente das escolhas históricas e das opções particulares: o da existência humana como tal e que não deve ser melhorado. A humanidade não é um fato, mais um valor do qual continuamos responsáveis em razão do nosso poder sobre ela. Porém, esta humanidade é a condição de possibilidade de todas as opções políticas.

Responsabilidade ontológica

O quarto desafio, que é em realidade o centro da ética e da responsabilidade, consiste em redefinir o conceito e dar-lhe um valor ontológico. Ser responsável não se limita mais à sua dimensão civil (reparar os danos causados ao outro) ou penal (sofrer uma pena pelas regras infringidas). Jonas define a responsabilidade como o dever de conformar os atos a uma humanidade futura digna deste nome. Trata-se então de inverter o sentido temporal da responsabilidade do passado para o futuro e mesmo um futuro desconhecido por definição, uma vez que ele é marcado por inovações radicais. É preciso assim levar em conta todas as consequências e os desafios de sua ação: previstos, previsíveis, voluntários, involuntários ou secundários, mas também imprevisíveis e perversos. A dificuldade assim levantada é então de experimentar-se como responsável dos efeitos imprevisíveis de nossas ações coletivas sobre gerações que não nos são contemporâneas. Assim, Jonas entende situar a responsabilidade ao nível ontológico.
Em efeito, uma humanidade digna deste nome é necessariamente uma humanidade livre de suas escolhas e de seus atos e, então, responsável. Não uma humanidade que resultaria de nossas escolhas contemporâneas e seria delas finalmente o objeto, mas uma humanidade que seja o autêntico sujeito de sua existência como nós fomos. Mas estas constatações e as consequências que delas resultam estão longe de ser evidentes. Na verdade, se Jonas teve a intuição do perigo tecnológico que ameaçava a humanidade futura, ele constata também que esta intuição é rara e dificilmente partilhável. Então, ele se dá a tarefa de mobilizar de uma parte este sentimento de crise e, de outra parte, um sentimento de responsabilidade e de fazê-lo ser partilhado pelo maior número de pessoas, principalmente pela intermediação dos especialistas científicos e dos políticos.

IHU On-Line – Quais são os aspectos mais atuais do princípio responsabilidade desse filósofo?

Nathalie Frogneux – Eu levantaria dois. Primeiramente, um aspecto atual consiste sem dúvida na articulação entre os primeiros desafios descritos na minha resposta precedente. Estamos sempre diante de um problema irresoluto de mobilizar o sentimento de uma responsabilidade amplificada. Como agir de maneira descentralizada e não egocêntrica ou etnocêntrica? Como não optar em função de nossa única época? Como operar esta inversão do olhar e, assim, de levar em consideração os que não nos são contemporâneos, pelos que, no entanto, somos responsáveis? Como renunciar ao que Jonas chama de “festa frívola” de nossa época para optar por um comportamento mais responsável (e, sem dúvida, menos dispendioso), mas também menos arrogante, mais descentralizado? Nós constatamos que mais de trinta anos após a redação d’O princípio responsabilidade uma dificuldade continua imutável: como passar da constatação da urgência e da necessidade de modificar radicalmente nosso comportamento, ao sentimento de responsabilidade que mobilizará esta mutação para que ela seja carregada por cada um. Jonas tinha, por assim dizer, antecipado a dificuldade de fazer carregar, por cada um no centro de uma cultura democrática, uma mudança radical de comportamento e de perspectiva, mas, também, a impossibilidade de fazer passar esta mudança por uma política autoritária. Hoje, é ainda a articulação entre pressão política e econômica – mas também a resistência político-econômica – e convicção individual que coloca o problema. Além disso, estamos diante da questão de encontrar os meios que mobilizam o sentimento de ameaça iminente.

Humanidade míope

Jonas preconizava, em efeito, de tirar as lições de catástrofes locais para evitar uma catástrofe global. Mas as catástrofes em escala reduzida (Chernobyl, Kathrina e mesmo Fukushima) não parecem suficientes para induzir uma mudança radical de rumo nas nossas escolhas e nossos comportamentos. Continuamos, ainda hoje, muito míopes nas nossas escolhas e prisioneiros da ideologia do progresso de uma humanidade que se considera soberana. Todavia, para Jonas, a humanidade é o que deve ser e todas as épocas e as culturas devem assumir suas fraquezas e suas ambiguidades, em todos os contextos.
Uma outra dimensão atual d’O princípio responsabilidade é certamente nossa capacidade de levar em conta nossa postura de guardião. Verdade seja dita, somos seres dotados de uma responsabilidade, quer dizer que não podemos fazer tudo do que somos (tecnológica e economicamente) capazes. Não podemos tratar a humanidade futura como o objeto de nossas escolhas. Não podemos hipotecar o futuro dos humanos que está por vir. Para Jonas, a maior responsabilidade que pode pesar sobre nós é a de que nenhuma vítima possa mais nos acusar de sua inexistência. Mas como sentir-se implicado pelas gerações que ainda não nasceram e o nascimento das quais dependem de nós? Como podemos nos sentir interpelados por elas?

IHU On-Line – O que é o dualismo gnóstico ao qual Jonas se refere?

 

Nathalie Frogneux – Em sua tese de doutorado sob a direção de Bultmann e Heidegger, Jonas evidenciou o princípio gnóstico que permitia pela primeira vez reunir conceitualmente estes mitos e movimentos sectários abundantes, cuja unidade não havia jamais sido estabelecida por nenhum pesquisador. Todavia, o que dá razão aos heresiólogos que falaram em todos os casos de pensamento gnóstico, seja ele iraniano ou sírio-egípcio, é um dualismo radical que corta o homem do mundo e que opera um corte no próprio homem. Dois princípios opostos se afrontam: que o mal seja de toda eternidade o antagonismo do bem ou que ele seja derivado por emanações sucessivas. Enquanto que o homem se crê da mesma natureza que o mundo, ele aprende que ele não é nada dele. Gnosis significa conhecimento, e o conhecimento prevalece sobre a fé (pistis). Somente a conscientização deste erro lhe permite ser salvo. Trata-se então de um dualismo que faz do homem um estranho no mundo corporal e material, pois o primeiro é espiritual e bom enquanto que o segundo é essencialmente mau e corrompido. Entretanto, Jonas traz o diagnóstico deste dualismo como uma tentação constante de nosso espírito que retorna regularmente na história para fazer do homem um exilado que se ignora como tal. A Antiguidade tardia (séculos II e III) foi um momento forte deste dualismo, mas a ruptura moderna inaugurada por Bacon  e Descartes  resulta desta mesma tendência, assim como o coração do século XX com suas filosofias da existência ou o niilismo fundamental que desabrocha nas tecnociências. Como sua amiga Hannah Arendt, Jonas combate a ideologia do “tudo é possível”.

IHU On-Line – Por que Jonas procura resolver o dualismo, pensando na dignidade do homem no mundo em que se encontra?

Nathalie Frogneux – Para resolver o dualismo radical do tipo gnóstico, ou seja, a ruptura no homem, mas também entre o homem e o mundo. Trata-se de resolver a ruptura entre o corpo e o espírito ao mesmo tempo em que reencontrar a comunhão entre a natureza e o humano. A ação é sensata se nós somos comensuráveis com o mundo, o que recusavam os gnósticos que condenavam todo comércio com o mundo optando por uma moral seja libertina ou ascética. Jonas entende assim replicar o dualismo radical mostrando que o homem está e é do mundo, que é um ser natural e vivo, mesmo se ele ocupa uma posição de exceção. A dignidade humana passa pelo fato de que a liberdade continua em uma comum medida com seu corpo e seu mundo no seio do qual se depreende sua atividade.

IHU On-Line – Para Jonas, a pior consequência do dualismo homem/mundo é o niilismo. Nesse sentido, como podemos compreender a crítica empreendida pelo filósofo ao niilismo e ao ceticismo moral?

Nathalie Frogneux – Jonas salienta que todas as filosofias que concebem o homem como um forasteiro, um estrangeiro que ignora sua origem autêntica para corromper-se em um mundo que não é o seu e o conduz para a inautenticidade, pensam os valores e as normas como criações puramente subjetivas (e definitivamente arbitrárias). Entretanto, é a articulação entre os fins presentes na natureza e os valores carregados humanamente que nos garantem contra a escolha niilista do suicídio coletivo.

IHU On-Line – É correto afirmar que Jonas propõe uma crítica radical à metafísica moderna? Por quê?

Nathalie Frogneux – Sim, está correto e é ao menos sobre dois pontos principais. Jonas é crítico da modernidade quando afirma que a ética está ligada ao ser, ou seja, na sua recusa de separar o ser e o dever-ser. Ele recusa, assim sendo, a separação inaugurada por Hume e ratificada por Kant da separação entre o ser e o valor. Para ele, os valores encontram suas justificativas no ser através dos fins. Os valores reconhecidos subjetivamente se baseiam efetivamente sobre os fins objetivamente presentes no ser, uma vez que o vivo se caracteriza pela perseverança no ser, ou seja, a atividade permanente de se manter no ser recusando o não ser que sem cessar o ameaça de morte.
Além disso, Jonas recusa-se a conceber, à moda dos modernos, o medo como somente paralisante e mau conselheiro. Com sua heurística do medo, tão atacada e seguidamente mal compreendida, ele retoma com uma ambivalência deste sentimento descrito por Aristóteles na Poética: pois pelo medo se apresenta como Janus Bifronte. Ele é tanto phobos, um medo paralisante, como éléos, um medo mobilizador que impulsiona à preservação contextual e à ação avisada. É evidentemente esta segunda que deve ser mobilizada diante da ameaça.

IHU On-Line – Hans Jonas é apontado como o filósofo da liberdade. Qual é o embasamento dessa classificação e qual é a importância da liberdade dentro de sua filosofia?

Nathalie Frogneux – A liberdade constitui para ele uma ligação entre ser e dever-ser na natureza através do vivo. A obra na qual ele estabelece esta ligação é intitulada em alemão Organismus und Freiheit, Organismo e Liberdade, e recebeu uma nova edição sob o título escolhido pelos editores Das Prinzip Leben, O Princípio vida. Foi mais judicioso, a meu ver, de intitulá-lo Das Prinzip Freiheit, O princípio liberdade. A liberdade é o que desperta no seio da matéria inorgânica ou morte e parece procurar-se pouco a pouco do unicelular até as formas mais complexas da vida como afirmação do vivo por ele próprio. Mas com o homem, a liberdade ultrapassa um teto qualitativo, pois ela cessa de ser um princípio de afirmação de si (orexis como diria Aristóteles, conatus em Spinoza) para se tornar uma força ambivalente. Ela pode então não somente afirmar, mas também negar a vida, perseverar em seus fins ou negá-los, uma vez que pode doravante se arrasar. Esta questão permeia toda biologia filosófica de Jonas, The Phenomenon of Life, mas é também o rebaixamento de sua ética da responsabilidade, uma vez que o princípio responsabilidade põe o imperativo categórico que impõe que as forças negadoras sejam secundárias em relação à obrigação que tem o homem de afirmar-se no ser.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Nathalie Frogneux – Parece-me que, sejam quais forem as dimensões ultrapassadas ou aproximativas das análises da tecnologia e da crise ecológica de Jonas no final dos anos 1970, sua ética da responsabilidade, sua análise do gnosticismo, sua biologia filosófica e as análises de nosso tempo escondem instituições e uma força de análise que estamos longe de ter esgotado. É, sem dúvida, mais ao desdobramento destas intuições do que à crítica de suas análises que devem trabalhar hoje seus comentadores. Ele próprio reconhecia, aliás, no final de sua vida, os limites de seu trabalho e afirmava que lhe era necessário passar a missão. Uma coisa me parece em todo caso evidente: é que Jonas ia às questões essenciais com a preocupação de propor uma filosofia nutrida pela história e tradição, no objetivo de pensar seu tempo.
Além disso, parece-me urgente repensar a perseverança no ser que ele descreveu tão bem na sua biologia como desejo (orexis ou conatus), afim de que sua ética da responsabilidade não seja unicamente recebida sob a única perspectiva da austeridade.

A heurística do temor e o despertar da responsabilidade

Tom antecipador e “primazia do mau prognóstico” são característicos dessa heurística, afirma Jelson Roberto de Oliveira. Jonas acusa Kant de ter permanecido num modelo antropocêntrico de ética, por reconhecer a natureza como campo eticamente neutro e porque sua ética se limita ao âmbito humano

Por: Márcia Junges

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Um dos conceitos mais interessantes e polêmicos da obra de Hans Jonas. Trata-se da heurística do temor, erroneamente traduzida do alemão como heurística do medo, acentua o filósofo Jelson Roberto de Oliveira. “Trata-se de uma opção ética pelo mau prognóstico, de um antídoto contra a esperança sem sentido que pode afetar a ação humana no mundo. Em vez das probabilidades otimistas e idealistas, Jonas propõe utilizar-se o medo como forma de aprendizado e fazer da projeção da possibilidade da previsão negativa como condição para alterar a atitude do ser humano frente à natureza. Para o autor, é preciso utilizar as predições e os presságios apontados pelos saberes científicos modernos como forma de antecipação das condições desastrosas previstas caso o ser humano não altere as suas ações, em sentido de fomentar a responsabilidade”. E completa: “Trata-se de uma tomada de consciência do perigo, do risco do mal que adviria do uso perigoso do poder da técnica. Como a ameaça ambiental é geralmente imperceptível ou, pelo menos, de difícil acesso para o cidadão comum, a heurística poderia contribuir para revelar a real possibilidade do perigo e serviria de convocação. O temor tem, portanto, um tom antecipador e é a “primazia do mau prognóstico” que despertaria no ser humano a responsabilidade. O pesquisador fala também sobre a crítica de Jonas ao marxismo e a Kant. “Para Jonas o marxismo é um tipo utópico de proposta política que não se deu conta dos limites das condições materiais. Ao ser embasado numa esperança redentora através do materialismo, leu errado os limites da tolerância da natureza e da sua oferta”. Sobre o filósofo de Könnigsberg, Jelson assinala: “Em Kant, Jonas reconhece um vazio ético no que tange ao problema dos riscos de extinção do homem, de alteração de sua essência, de cuidado com a natureza, de uma marca profundamente antropocêntrica da ética, de uma ausência do problema do futuro e das exigências que ele traz em termos de garantia de sua factibilidade”. As informações fazem parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Graduado em Filosofia, especialista em Sociologia Política e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Jelson Roberto de Oliveira é doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR com a tese Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011), A solidão como virtude moral em Nietzsche (Curitiba: Champagnat, 2010) e Ética de Gaia: ensaios de ética socioambiental (São Paulo: Paulus, 2008). Leciona na Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é a heurística do medo, de Hans Jonas?

Jelson Roberto de Oliveira – Um primeiro ponto que deveríamos nos ater diz respeito à tradução desse conceito Heuristik der Furcht por heurística do medo. A palavra medo tem uma posição negativa na língua portuguesa que não traduz bem o alemão Furcht, que seria melhor traduzido por temor, que daria a ideia não de um medo passivo, mas de um receio fundado, de um medo acompanhado de respeito frente à força do mal eminente. Tem a ver com escrúpulo e com zelo e menos com a perturbação mental provocada por algo estranho e perigoso, como um sentimento desagradável frente ao desconhecido.
Dito isso, podemos afirmar que esse é um dos conceitos mais interessantes e, por isso mesmo, mais polêmicos da obra jonasiana. Trata-se de uma opção ética pelo mau prognóstico, de um antídoto contra a esperança sem sentido que pode afetar a ação humana no mundo. Em vez das probabilidades otimistas e idealistas, Jonas propõe utilizar o medo como forma de aprendizado e fazer da projeção da possibilidade da previsão negativa como condição para alterar a atitude do ser humano frente à natureza. Para o autor, é preciso utilizar as predições e os presságios apontados pelos saberes científicos modernos como forma de antecipação das condições desastrosas previstas caso o ser humano não altere as suas ações, em sentido de fomentar a responsabilidade. Catástrofes e calamidades serviriam, portanto, de mote para refletir e vislumbrar os desastres futuros que podem levar à extinção da própria humanidade. Esse prognóstico negativo não é um mero pessimismo ou um procedimento puramente instrumental. Mas a heurística do temor não deve ser entendida como uma palavra última da nova ética da responsabilidade proposta por Hans Jonas. Aliás, muitas confusões apareceram entre os intérpretes justamente por causa dessa má compreensão do conceito. A heurística, como hipótese adotada provisoriamente na forma de uma diretriz moral da qual se aprende tendo em vista a descoberta que se faz a partir dos eventos que despertam o temor, é um passo considerado indispensável na reelaboração do agir moral.

Tomada de consciência

Como princípio prático da sua ética, a heurística do medo remete à ideia de que o uso desse sentimento de preservar-se frente à ameaça possível. Quanto mais investirmos no conhecimento e na divulgação desse temor, mostrando as reais possibilidades e o quão terrível pode ser a ameaça, mais seria despertado o temor das pessoas e mais elas estariam dispostas a alterar as causas dessa ameaça. Para isso, a heurística também seria um princípio de conhecimento, porque sua efetividade e eficácia estariam ligadas justamente ao conhecimento (ou, se quisermos, à tomada de consciência em relação às causas, ou aos agentes e motivos geradores da crise, no sentido de domínio dos conhecimentos científicos que ajudam a realizar o diagnóstico e o prognóstico, bem como da reflexão ética a respeito da ação humana no mundo). Trata-se de uma tomada de consciência do perigo, do risco do mal que adviria do uso perigoso do poder da técnica. Como a ameaça ambiental é geralmente imperceptível ou, pelo menos, de difícil acesso para o cidadão comum, a heurística poderia contribuir para revelar a real possibilidade do perigo e serviria de convocação. O temor tem, portanto, um tom antecipador e é a “primazia do mau prognóstico” que despertaria no ser humano a responsabilidade.
Obviamente a polêmica do conceito logo salta aos olhos. Poderíamos resumi-la em duas perspectivas: uma primeira, que remete ao fato de que talvez seja problemático que uma ética do porte proposto por Hans Jonas necessite se fundamentar numa objeção adversária, ou seja, na representação de um perigo exterior pela via de um sentimento que altere e mobilize o sentido ético dos sujeitos; e uma segunda, que diz respeito ao fato de que, talvez, frente ao medo do absurdo fim (extenuado em vista do benefício de uso heurístico do temor) a consequência pode não ser a mudança das ações, mas justamente, pela gravidade do prognóstico, o despertar de um sentimento contrário, do tipo “por que mudar a minha atitude se tudo vai acabar mesmo”; ou ainda: ao exacerbar com vivacidade o perigo, ele pareça tão exagerado que soe justamente como impossível de acontecer realmente, porque tal perigo não tem nenhuma semelhança com a experiência real de mundo das pessoas. Seria, então, essa representação do medo algo inerte? Talvez, mas aqui incorremos no erro de interpretar, mais uma vez, o conceito como fundamento último. Jonas é claro: a heurística do temor é um antídoto contra as profecias de salvação (muitas vezes anunciadas, hoje em dia, pela boca daqueles que esperam da ciência, mais uma vez, uma solução milagrosa para os problemas ambientais que nos afetam, enquanto cruzam os braços para atitudes urgentes que indiquem a responsabilidade com o meio ambiente) e não um pessimismo em relação do futuro.
A “profecia da desgraça” não é a mesma coisa que a heurística do temor. Pessimista, diz Jonas, é a posição daqueles que julgam o existente tão ruim que não mereça ser considerado do ponto de vista do risco de sua extinção.

IHU On-Line – De que forma esse conceito se relaciona com a utopia da abundância, a que o autor se refere?

Jelson Roberto de Oliveira – O diagnóstico de Hans Jonas remete ao imenso poder humano representado pelo advento da técnica e à promessa de felicidade escondida sob o afã do progresso infinito e da esperança utópica por ele prometido. Para isso, o autor passa em revisão os ideais utópicos que encontraram na técnica e nos seus utensílios, a promessa de bem-estar. A abundância de recursos e de possibilidades oferecidas pela natureza torna-se, assim, o alvo da crítica jonasiana, de tal forma que poderíamos afirmar que o princípio responsabilidade aparece como antinomia dessa promessa, cujo maior prejuízo revela-se como dano à natureza. O que fundou a promessa da abundância natural em benefício do bem-estar absoluto e infinito do homem no mundo é a ideia de que a natureza era inviolável e, mais ainda, doadora de forças, energia e matérias-primas infinitas e ilimitadas para a construção da felicidade pela via do progresso tecnológico. As éticas do passado e os saberes disponíveis em outros tempos não foram capazes, por erros de interpretação da história evolutiva da vida, de diagnosticar de forma correta os limites da natureza em fornecer as bases dessa abundância desejada. O que descobrimos – agora já como dano e como prejuízo inalterável e, segundo muitos, irreversível – é que a oferta de alimentos, matérias-primas e energia por parte da natureza não é ilimitada, mas justamente o contrário. As condições materiais que fundaram as utopias de tipo desenvolvimentista, marxista, liberal, progressista, político-revolucionárias ou conservadoras (tanto faz, todas acreditaram na utopia da abundância), revelam-se agora como excessivas no que tange ao desgaste dos recursos. Não há abundância, portanto, quando a Terra é reconhecida em seus limites. Só poderíamos falar de abundância em sentido fraco, na medida em que reconhecêssemos a urgência do uso responsável desses recursos. A abundância é do tamanho da nossa responsabilidade!

IHU On-Line – Nesse aspecto, como compreender a crítica ao marxismo que advém da filosofia de Jonas?

 

Jelson Roberto de Oliveira – Para Jonas o marxismo é um tipo utópico de proposta política que não se deu conta dos limites das condições materiais. Ao ser embasado numa esperança redentora através do materialismo, leu errado os limites da tolerância da natureza e da sua oferta. É a determinação material da proposta marxista que está em jogo. Portanto, por creditar à determinação material as benesses da sua proposta utópica, o marxismo acabou dando de ombros para a responsabilidade, por não ter se dado conta desses limites. Se, como afirma Jonas nas primeiras linhas do capítulo intitulado A crítica da utopia marxista, do seu O princípio responsabilidade, “a primeira condição da utopia é a abundância material, de modo a satisfazer as necessidades de todos; a segunda condição é a facilidade em adquirir essa abundância” na busca do lazer, alcançado pelo conforto promovido pelo acesso aos bens de consumo que tornam a “abundância” algo rapidamente acessado pela maior parte da sociedade, mesmo a parcela proletária, então essa foi a viseira vestida pelos marxistas.

Se o lazer, chamado por Jonas de “essência formal da utopia”, remete à liberdade da servidão do trabalho, então não é estranho reconhecer nessa a chave de entrada no modelo proposto por Marx. A “radicalização da técnica” oferece a possibilidade (ainda que ilusória) para o alcance dos bens de consumo em cujo seio vem, embrulhados, os ideais essenciais do lazer e do conforto associados à felicidade. O marxismo, então, constituiu-se como “agressão intensificada” à natureza na medida em que se estabeleceu sobre essas bases. Esqueceram-se, os marxistas, de perguntar: até onde a natureza pode suportar? E dessa resposta dependeria todo o futuro dessa proposta. Marxismo e liberalismo, proletários ou burgueses, países desenvolvidos ou subdesenvolvidos igualam-se quanto à gravidade dessa pergunta e à urgência dessa resposta. Nesse sentido, a crítica de Jonas não é uma crítica política efetivada como crítica a um regime político-econômico, mas, antes, uma crítica ao ideal que serviu de motor para a maioria dos regimes políticos e ao erro a que estiveram submetidos.

IHU On-Line – Como analisa a herança kantiana no pensamento desse autor?

Jelson Roberto de Oliveira – Jonas reconhece em Kant um modelo exemplar do modo de pensamento ético vigente no Ocidente. Nesse sentido, trata-se, mesmo, de um reconhecimento, no sentido de dar aceitar a importância e o prestígio dessa filosofia. Mas isso não o impede (como jamais é o caso na filosofia!) de mostrar o quanto a tese kantiana é insuficiente para dar conta da nova realidade. Insuficiente, quer dizer, não significa que Jonas afirme a não validade da ética kantiana. O que ele propõe é um novo modelo ético em função dos novos saberes, frente aos quais a ética não pode mais fechar os olhos. Como se ampliaram o conhecimento científico e o poder de intervenção da técnica, é necessário e urgente que também a ética alargue a sua perspectiva de análise. É preciso superar limite da visão existente no século XVIII, o século do Iluminista, que fundou muitas das teorias da liberdade e da abundância, a despeito da responsabilidade.
O imperativo categórico de Kant seria limitado à perspectiva do conhecimento e ao tamanho da técnica existentes em seu tempo. Em Kant, Jonas reconhece um vazio ético no que tange ao problema dos riscos de extinção do homem, de alteração de sua essência, de cuidado com a natureza, de uma marca profundamente antropocêntrica da ética, de uma ausência do problema do futuro e das exigências que ele traz em termos de garantia de sua factibilidade.

IHU On-Line – Qual é o fundamento da rotulação antropocêntrica da filosofia de Jonas se pensarmos nessa herança kantiana?

Jelson Roberto de Oliveira – Jonas acusa Kant de ter permanecido num modelo antropocêntrico de ética, por reconhecer a natureza como um campo eticamente neutro e porque sua ética esteve limitada ao âmbito humano, tratando da relação ser humano/ser humano. Essa crítica parte da concepção de que a ética kantiana (como modelo daquilo que Jonas chama, em termos gerais, de éticas tradicionais) esteve reservada ao âmbito da “cidade”, ou seja, do artefato criado pelo ser humano e dele dependente. A ética seria a reflexão para a vida dentro dos muros da cidade, que foi erguida, no geral, de costas para a natureza, como uma forma de proteção e esconderijo, de conforto e segurança no meio do reino natural. Isso se deu porque a natureza foi tida sempre como um campo selvagem, violento, inimiga que ou cuidava de si mesma, ou era cuidada por “Deus”, ou melhor: que fosse mesmo reprimida ou domesticada, com vistas ao seu enfraquecimento. Frente à natureza, o homem se comportava como detentor de uma arma de domínio e exploração (com vistas à domesticação e usufruto das condições materiais): a razão amplamente elogiada e examinada na teoria kantiana. Com racionalidade, o ser humano quis decifrar e inventar formas de domínio da natureza sem que, em algum momento, tenha se colocado o problema das consequências negativas que adviriam desse processo. A partir da cidade, o ser humano iria à natureza pela via do domínio e da exploração, sem se dar conta do tamanho do seu impacto e sem prever (como prognóstico negativo) o que poderia acontecer depois de sua passagem.
Kant, então, formulou uma ética centrada na “cidade”, na qual o ser humano deveria construir uma vida feliz a partir do reconhecimento de si mesmo como “reino dos fins”. Nenhuma perspicácia de longo alcance, nenhum conhecimento para além do âmbito da urbes, nenhuma preocupação para além do âmbito imediato e presente da ação: Kant foi reducionista e seu imperativo categórico recusou os saberes que se revelavam como braço humano que se alongava para além do domínio da cidade, atingindo de forma catastrófica a natureza como um todo.

IHU On-Line – Em que aspectos é possível aproximar a ética da responsabilidade de Jonas e a ética da amizade, de Nietzsche?

 

Jelson Roberto de Oliveira – Apenas num ponto de vista generalista: ambos os conceitos e autores servem de crítica à modernidade e aos grandes valores éticos da modernidade. Nietzsche criticou Kant pela via da crítica a Schopenhauer  no que tange ao seu projeto crítico que, segundo o filósofo de Sils Maria, acabou deixando entrar pela porta dos fundos aquilo que tentara expulsar pela porta da frente: ou seja, ao tentar criticar a razão metafísica, reconhecendo seu limite no que tange ao conhecimento de uma verdade última do mundo, Kant acabou, segundo Nietzsche , colocando-se num lugar seguro e inquestionável. Jonas também critica os limites da ética kantiana, mas obviamente por outros motivos. Isso posto, é preciso reconhecer que, no que tange a Kant, Nietzsche e Jonas estão em lugares infinitamente distantes quanto aos motivos dessa crítica. Mesmo assim, ambos elaboram sua filosofia como uma crítica às éticas tradicionais e também como crítica ao modelo de racionalidade eleito como paradigma no Ocidente. Ambos são grandes críticos dos ideais modernos.

IHU On-Line – Poderia contextualizar a compreensão do conceito de vida por Hans Jonas?

Jelson Roberto de Oliveira – A questão da vida é central no pensamento de Hans Jonas, seja em termos absolutos seja quando pensamos no fundamento da sua ética da responsabilidade. Esse problema remete à sua obra Princípio Vida e se relaciona diretamente ao problema da relação entre necessidade e liberdade. Se a tradição moderna ligou a primeira à natureza e a segunda apenas ao reino da racionalidade, Jonas, como resultado de suas pesquisas em torno de uma filosofia da biologia, chega à afirmação de que a liberdade é uma característica presente em todo o mundo orgânico – e não apenas no humano. O que ele pretende é superar o dualismo ontológico reinante na filosofia e na ciência ocidental moderna que não passaram de um erro de avaliação a respeito do fenômeno da vida por limitarem-se a uma leitura materialista da vida, deixando para a religião o problema do espírito e a dimensão interior que marca a história da vida. Para Jonas, por estarem presentes também no homem, as características espirituais só podem ter derivado das demais formas de existência orgânica. Ou seja, o homem seria apenas um resultado do progresso que liga o “primitivo” ao “evoluído”, vindo a representar, pela consciência e pela busca da verdade, o degrau mais elevado desse desenvolvimento. Não é possível mais pensar segundo esse dualismo: o homem não está separado e desligado das demais formas de vida, mas justamente se liga a elas pelo processo evolutivo. Essa foi, segundo ele, a maior consequência filosófica do darwinismo.

Metabolismo inicial

Jonas precisa voltar, então, ao problema da origem da vida que, segundo ele, fora esquecido pela ciência moderna, cujo modelo mecanicista buscou na natureza apenas as estruturas já prontas, presentes no mundo e nele em funcionamento, atendo-se ao desafio da explicação da matéria e do movimento. Por isso, ao se perguntar sobre a origem, a ciência moderna logo se deu conta de seu limite e passou a reconhecer a origem e a existência como estados anteriores e posteriores de um mesmo substrato, como diferenças meramente cronológicas. Não há causa diferente do efeito. A organização tardia não passou de um resultado da instabilidade primordial de todo ser orgânico e é nesta etapa que deve ser reconhecida e buscada uma explicação para a origem do espírito. É como prolongamento desse estado inicial, portanto, que o espiritual deve ser entendido. Por isso, ao perguntar sobre a origem do espírito do homem, é preciso reconhecer necessariamente que ele já é antecipado nas formas mais primordiais da vida. Essa é a consequência mais radical do darwinismo. Para ele, é pela via da hereditariedade que cada “pequenino passo do acaso” acumula “informações” que se manifestam, através do tempo, em “grandes e completos genótipos” até alcançar a sua plenitude na forma de vida humana. É no metabolismo inicial dos seres que Jonas reconhece o primeiro gesto de liberdade da vida: “esse tema, comum a toda a vida, buscaremos acompanhá-lo através do crescente desenvolvimento das capacidades e funções orgânicas: metabolismo, movimento e apetite, sensação e percepção, imaginação, arte e conceito – uma escala ascendente de liberdade e risco que culmina no ser humano”, escreve o autor no seu Princípio Vida.

IHU On-Line – Qual é a maior contribuição desse pensador para a construção de uma ética da responsabilidade?

Jelson Roberto de Oliveira – Acredito que a proposta ética de Jonas não esconde suas dificuldades quando pensamos nos seus fundamentos. Mesmo assim, o tamanho, a originalidade e a coragem que ela guarda, é incomparável. É justamente pela grandiosidade e pela urgência do projeto que esses problemas aparecem. Devemos evitar, a meu ver, dois extremos: recusar o modelo em função de seus limites; exacerbar seus méritos fechando os olhos para esses problemas. Jonas conseguiu condensar, em seus escritos, um dos problemas mais fundamentais de nosso tempo: a relação entre o afã da técnica, o poder do homem e as consequências no campo da natureza. Ética, técnica e natureza se articulam numa obra de grandeza inegável, cujo impacto foi (é) muito relevante nos anos posteriores à sua publicação até os nossos dias.
Gosto de pensar que Jonas está enfrentando um problema que esteve alheio da filosofia. E o faz com a nobreza de um filósofo que acumulou, na própria vida, conhecimento e vivência suficiente para se tornar eloquente e fecundo. Trata-se de um convite para que a responsabilidade guie as ações humanas e conduza a sociedade tecnológica para um uso responsável do poder oferecido pela técnica.
Seu livro, assim, é um marco para o pensamento da responsabilidade num âmbito novo e muito grande do ponto de vista do poder de impacto desse poder. Dando-se conta de que “a promessa da tecnologia moderna se converteu em ameaça”, Jonas faz uma experiência que o conduz a resultados realmente impressionantes do ponto de vista ético e filosófico.
O novo modelo ético sugerido (na forma de uma convocação, que é como as teses éticas geralmente se apresentam) parte, em primeiro lugar, do indeferimento da superioridade da racionalidade técnica humana sobre os demais seres vivos, o que significa uma recusa da superioridade do homo faber (homem que faz) cujo entusiasmo incoerente subjuga o homo sapiens (homem que pensa). Em segundo lugar, da supressão da fronteira entre a “cidade” ou o Estado (o mundo da pólis) e a “natureza”, já que uma e outra estão confundidas no mundo contemporâneo, já que “o natural foi tragado pela esfera do artificial”. Do primeiro caso nasce a necessidade de refletir sobre a técnica como uma vocação humana, mas despi-la desse infinito impulso e desse cego triunfo. Da segunda negação advém a exigência de que a ética pense a conservação do mundo físico de forma a garantir a existência da própria vida no futuro. E não há outra exigência mais grave, urgente e imperiosa para a ética do que a vida.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Jelson Roberto de Oliveira – Só queria dizer que Jonas coloca a ética no campo de uma futurologia, como possibilidade de criação e de alteração do futuro mesmo, hoje fornecidas pela técnica moderna. A perspectiva do futuro, presente em sua proposta, nos remete à urgência de fazermos uma escolha quanto à possibilidade de existir, quanto àquilo que queremos ser e ao mundo no qual queremos viver. É a ética e não a técnica (muito menos essa ideologia da técnica usada pelos tecnocratas a serviço das grandes corporações) que deve nos ajudar a chegar a uma resposta para essas questões.

Leia mais…

>> Jelson Roberto de Oliveira já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira:

•    Desolação no Paraná. Terra da soja, cana-de-açúcar, pínus e eucaliptos. Entrevista publicada em 29-03-2007

Uma filosofia para compreender a crise ambiental

Com seu imperativo ético, o princípio responsabilidade de Hans Jonas afirma o valor indiscutível da vida dos humanos e não humanos, observa Helder Carvalho, além de afirmar a liberdade e autonomia do sujeito contemporâneo

Por: Márcia Junges

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“A filosofia de Hans Jonas tem o mérito de tocar diretamente num nervo exposto da cultura contemporânea: a conexão da crise ambiental pela qual passa o mundo com a ação humana e o lugar que a técnica moderna ocupa na modelagem dessa ação”. A afirmação é do filósofo Hélder Buenos Aires de Carvalho, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, “o costumeiro é pensar que a técnica é sempre algo que produz o bem, que traz benefícios para nossa vida, como se fosse algo divino, sem a mácula do pecado”. A reflexão de Jonas, continua, “busca lembrar ao homem que ele tem um papel significativo nas transformações ambientais do mundo e que o poder que adquiriu com o desenvolvimento da técnica – e seu uso desmesurado – precisa ser modulado eticamente, a partir de um referencial não mais antropocêntrico, mas biocêntrico, pois carrega consigo também a possibilidade do mal extremo”.

Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí – UFPI, Helder Buenos Aires de Carvalho é especialista em História da Filosofia Contemporânea e Pesquisa Educacional pela mesma instituição. Cursou mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG com a tese Hermenêutica e Filosofia Moral em Alasdair MacIntyre. É pós-doutor pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Professor do departamento de Filosofia da UFPI, é autor de Tradição e racionalidade na filosofia de Alasdair MacIntyre (2ª ed. Teresina: EDUFPI, 2011).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a atualidade da filosofia de Hans Jonas?

Helder Buenos Aires de Carvalho – A filosofia de Hans Jonas tem o mérito de tocar diretamente num nervo exposto da cultura contemporânea: a conexão da crise ambiental pela qual passa o mundo com a ação humana e o lugar que a técnica moderna ocupa na modelagem dessa ação. O costumeiro é pensar que a técnica é sempre algo que produz o bem, que traz benefícios para nossa vida, como se fosse algo divino, sem a mácula do pecado. Sua reflexão busca lembrar ao homem que ele tem um papel significativo nas transformações ambientais do mundo e que o poder que adquiriu com o desenvolvimento da técnica – e seu uso desmesurado – precisa ser modulado eticamente, a partir de um referencial não mais antropocêntrico, mas biocêntrico, pois carrega consigo também a possibilidade do mal extremo. Noutras palavras, que a crise ambiental pela qual passamos tem também um elemento ético significante, vinculado ao modo como o homem compreendeu até agora a si mesmo e a natureza, bem como à forma como tem exercido esse poder tecnológico; que uma não compreensão ética da técnica, um esquecimento de que ela também é um dado humano, portanto, maculado pela finitude, pode conduzir a uma catástrofe.

IHU On-Line – Como o conceito do princípio responsabilidade dialoga com a liberdade e autonomia do sujeito contemporâneo?

Helder Buenos Aires de Carvalho – Se contemporaneamente pensamos a liberdade e autonomia como constitutivos fundamentais do sujeito humano, dando-lhes uma plasticidade muito maior do que havia sido concebido até agora pelo que Hans Jonas chama de ética tradicional, essa liberdade e autonomia, na verdade, aumentam a responsabilidade pelos seus atos. Anteriormente não se pensava essa autonomia em termos tão extensos; o homem era visto em suas limitações frente à presença avassaladora do cosmos e do mundo natural. O princípio responsabilidade, em Jonas, é justamente a afirmação da liberdade e autonomia que o homem contemporâneo assumiu, tanto em relação a si mesmo como em relação ao mundo natural, de um modo radical, dado que ele chegou à condição de ser capaz até mesmo de destruir toda a vida no planeta Terra. Penso que o esforço teórico de Jonas é justamente articular de forma radical essa autonomia e liberdade que o homem contemporâneo adquiriu, com a quase onipresença da técnica em sua vida, numa reflexão ética que o leve a repensar quem ele quer ser, sua participação na vida do planeta como um todo, sua responsabilidade com a manutenção da vida, pois passou a ser efetivamente um dos feitores do mundo, não mais apenas um vassalo deste ou dos deuses.

IHU On-Line – Quais as aproximações da filosofia de Jonas e de Alasdair MacIntyre?

Helder Buenos Aires de Carvalho – MacIntyre  e Jonas são pensadores bastante diferenciados, vinculados inicialmente a tradições teóricas aparentemente distantes, como a alemã continental e a analítica anglo-saxã. Entretanto, ambos compartilham certas referências importantes para pensar o agir humano em sua complexidade ontológica e aporte ético. A avaliação crítica da modernidade filosófica e seus efeitos é um ponto de partida comum entre eles; ambos compartilham a avaliação de que grande parte de nossos problemas fundamentais, hoje, são o resultado das escolhas filosóficas feitas nos albores e na continuidade do mundo moderno. O niilismo e a decadência que se apresentam na experiência moral contemporânea são valorações que ambos identificam como produtos dos equívocos cometidos a partir do modo de pensar da modernidade e que precisamos reavaliá-los para encontrar saídas. Jonas e MacIntyre são também críticos da democracia liberal e de sua alternativa marxista, pela incapacidade crônica destes dois modelos políticos de responder aos desafios globais que se colocam atualmente pela ecologia. A falta de representatividade dos modelos democráticos liberais, a redução crescente da participação política dos cidadãos, o individualismo destruidor de valores comuns, a ilusão da tecnociência como panaceia universal a todos os males, o mergulho dos socialismos marxistas em totalitarismos reais, a predominância de uma racionalidade instrumental em todas as esferas da vida humana, tudo isso são objetos da crítica dos dois filósofos.

Revisão do antropocentrismo

Ambos buscam encontrar alternativas para essa falta de opção no mundo contemporâneo, pois nem o capitalismo das sociedades liberais nem a planificação das sociedades comunistas se mostraram eficientes e consistentes para responder ao desafio ético de uma sociedade que possa pensar a vida aqui e agora, bem como no futuro. Tanto Jonas como MacIntyre tematizam a animalidade do homem e sua dependência da natureza como um todo, vendo isto como um indicativo fundamental da necessidade de se rever o antropocentrismo que caracterizou a eticidade tradicional. O reconhecimento da fragilidade e da dependência do humano em relação ao mundo natural, de tal modo que o homem não possa olhar mais a natureza como um outro a ser domesticado, mas como parte de si mesmo e ele mesmo como parte dela, é um ponto de convergência de suas filosofias. Além disso, por serem diferenciadas, isto é, Jonas propugnar uma ética principialista, do dever, e MacIntyre uma ética das virtudes, do caráter, elas podem convergir como complementares, na medida em que o princípio responsabilidade defendido por Jonas pode ser pensado também como uma virtude fundamental para se buscar saídas para os nossos problemas. Responsabilidade não é apenas uma imposição jurídico-formal ou um dever ser ancorado ontologicamente na vida como tal, mas também é um modo de ser do agente moral, um elemento constitutivo da agência, de sua identidade como humano.

IHU On-Line – Pensando nas teorias morais desses dois filósofos, quais seriam os grandes desafios éticos da técnica contemporânea?

 

Helder Buenos Aires de Carvalho – Não dá para detalhar aqui esses desafios éticos, pois que o emprego da tecnociência na vida humana é bastante extenso e cheio de novidades no tocante à geração de questões éticas. Mas eu penso que Jonas e MacIntyre estão profundamente preocupados com a racionalidade instrumental que invadiu a vida humana em todas as suas esferas; e é aqui que reside o desafio fundamental para nós: como reverter essa invasão indevida da racionalidade tecnocientífica no mundo da vida sem perder os benefícios que essa mesma forma de racionalidade nos proporciona? Para Jonas, o grande desafio é como fazer com que a técnica volte a ser um instrumento para o homem e seus fins éticos, não o homem estar a serviço da racionalidade da técnica, esta autonomizando-se cada vez mais e enfraquecendo o universo ético da vida humana. Para MacIntyre, o esvaziamento valorativo promovido pelo fracasso do projeto iluminista em fundamentar racionalmente a moralidade abriu espaço para a colonização do mundo da vida pela racionalidade instrumental, fazendo com que as virtudes deixassem de ser centros morais para a identidade do agente moral e se reduzissem a fragmentos psicológicos de indivíduos separados e anteriores à vida social. O problema que se coloca para ele é que a mudança necessária para mudar isso passa por um reposicionamento da racionalidade ética no modo de agir e pensar contemporâneos, de modo que racionalidade dos fins, a racionalidade ética, não seja sobreposta ou dominada pela racionalidade dos meios, própria da racionalidade instrumental ou técnica. E isso tudo implica, na ótica dos dois filósofos, enfrentar uma mudança não só de natureza cognitiva, espiritual, mas também social e econômica profunda, o que é obviamente uma tarefa de gerações e bastante cheia de empecilhos.

IHU On-Line – Em que sentido a ética da responsabilidade de Jonas serve como base para a construção de uma teoria que dê conta da questão ambiental contemporânea?

Helder Buenos Aires de Carvalho – A questão ambiental contemporânea não pode ser compreendida adequadamente apenas como um problema de natureza biológica, de sobrevivência de algumas espécies, entre elas a humana, ou econômica, como se fosse resultante de algum modelo produtivo ineficiente ou fracassado. É justamente porque ela é resultante da intervenção humana de forma bem sucedida, pelo fato preciso de ter sido escandalosamente eficiente, que a compreensão adequada dela deve incluir a dimensão ética da responsabilidade tal como indicada por Jonas. Qualquer teoria que se proponha a dar conta da questão ambiental em sua plenitude não pode deixar de lado a responsabilidade humana na origem e na condução dela. A responsabilidade que os humanos adquiriram com o poder proporcionado pela tecnociência assumiu uma proporção tal que ela se tornou impensável a partir dos parâmetros da ética tradicional. A ética da responsabilidade de Jonas é uma base importante para dar conta da questão ambiental porque aponta para fatores absolutamente iniludíveis que a constituem. A crítica ao antropocentrismo e o reconhecimento da amplitude da responsabilidade humana não só com o presente, mas com o futuro, são componentes filosóficos importantes para se buscar soluções e alternativas para a manutenção e qualidade de vida como um todo no planeta, não só para nós, mas para as gerações futuras e os outros seres vivos.

IHU On-Line – Nesse sentido, o princípio responsabilidade poderia ser pensado como um imperativo ético? Por quê?

Helder Buenos Aires de Carvalho – O princípio responsabilidade proposto por Jonas é seguramente um imperativo ético, no sentido forte da palavra “imperativo”, na medida em que ele é a expressão da afirmação de um valor moral fundamental: a vida, não só a vida humana, mas a vida como tal, incluindo humanos e não humanos. E é um imperativo ético fundamental porque visa garantir a própria possibilidade da vida ética dos indivíduos humanos, qualquer que seja a configuração que ela assuma no futuro; é como que uma condição de possibilidade de toda e qualquer moralidade particular: sem a garantia de que haja vida humana no futuro, não haverá a possibilidade de qualquer ética, pois a ética, embora não antropocêntrica, é antropológica, no sentido de que, sem a vida humana e a liberdade que lhe é própria, não haverá ética. Se não nos colocarmos esse dever ético fundamental, de garantir a vida humana autêntica agora e no futuro, não haverá viabilidade para qualquer formulação ética particular. A preservação da vida é um imperativo ético que se coloca como exigência do próprio ser do humano, cuja vida biológica não pode ser separada da vida como um todo no planeta, ao mesmo tempo em que adquiriu a possibilidade de destruí-la, de dar fim a ela, alçando voo dessa mesma vida biológica, como que ilusoriamente querendo se apartar dela.

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