ABSTRACT: This text tries to analyze from the aesthetical and religious points of view the work, “The Gates” of Christo and Jeanne-Claude which was shown for a period of 16 days in the Central Park of New York, in February 2005. The author of this article describes this work of art and comments the many repercussions it provoked around the world. He, then, reflects on the relation of art in modernity and in postmodernism. He essays a dialogue with Tillich´s theology of culture. He opposes, in a way, the tillichian perspective with the philosophy of Derrida, adding the themes of “future” and “veil”. The text ends speaking about promises of epiphanies in the unexpected relation between art and religion.
RESUMO: Este texto tenta analisar na perspectiva estética e religiosa a obra de Christo e Jeanne-Claude, “The Gates”, que foi mostrada durante 16 dias no Central Park de Nova York, em fevereiro de 2005. O autor do artigo descreve essa obra de arte e comenta as inúmeras repercussões que ela provocou ao redor do mundo. Passa, então, a refletir sobre a relação entre arte na modernidade e arte na pós-modernidade. Ensaia um diálogo com a teologia da cultura de Tillich. Opõe, de certa forma, à perspectiva tillichiana, a perspectiva filosófica de Jacques Derrida, acrescentando ao seu ensaio os temas do “futuro” e do “véu”. O texto termina falando a respeito de promessas de epifanias nas inusitadas relações entre arte e religião.
Introdução
É inverno em Nova York, fevereiro de 2005, e como todo ano as árvores estão secas e aparentemente sem vida. O Central Park continua a ser o lugar onde as pessoas vão correr, andar com amigos, levar os filhos para brincar, relaxar, levar os cachorros para passear, fazer exercícios ou mesmo respirar um pouco de ar mais leve. Os lagos estão parcialmente congelados e o vento forte dói e nos faz sentir desprotegidos, longe de casa. Este ano porém o Central Park está diferente. Portões enormes da cor açafrão se estendem por volta de quase 57 km (23 milhas) do parque e neles, panos longos da mesma cor ficam pendurados e soltos ao vento. O vigoroso laranja dos portões contrastam com o cinza das árvores, com as mutantes tonalidades de cinza, azul e vermelho do céu e com o branco da neve.
Os portões mudaram a vida da cidade. Os números são impressionantes: são 7500 portões, cada um deles medindo 4.870 metros de altura que variam na largura entre 1.67 e 5.48 metros. Eles ficam perpendicularmente regulados nos muitos kilômetros em todos os mais variados caminhos do Central Park. Já os véus feitos de vinil sintético e que ficam pendurados em cada um dos portões ficam aproximadamente 2.13 metros de distância do chão. Eles voam horizontalmente na direção do próximo portão mas em alguns lugares do parque eles sopram transversalmente. Caprichos do vento que sopra em direções contrárias no mesmo lugar. O intervalo entre os portões varia em função da presença das árvores visto nenhum portão poder perturbar esses habitantes antigos do parque, e guardam um espaço padrão de aproximadamente 3.65 metros de distância entre eles.[1]
A exposição de arte foi idealizada, projetada e realizada pelos artistas Christo e Jeanne-Claude que também financiaram todo o projeto com dinheiro próprio através da fundação C.V.J. Corp da qual Jeanne-Claude Javacheff é a presidente. Segundo os artistas/financiadores, o projeto todo custou cerca de U$ 23 milhões sem que a prefeitura de Nova York tivesse que gastar um “penny” (centavo) com o projeto. Ao contrário, segundo dados da prefeitura de Nova York, a cidade embolsará cerca de U$ 80 milhões em função do turismo. Foram 26 anos de espera desde que o projeto foi apresentado à prefeitura de Nova York pela primeira vez e para sua final aprovação pelo prefeito Michael R. Bloomberg, amigo pessoal do Christo em 2004. Nada como a força do dinheiro para viabilizar a provação de um projeto “estritamente artístico” e nos lembrar que vivemos na era da arte subsidiada pelas grandes corporações financeiras em todo o mundo que manipulam e controlam o valor da arte. É impossível fazer arte “reconhecida” sem dinheiro e as devidas conecções do mercado . Jaci Maraschin define bem essa relação:
Em nossa época de globalização a cultura se massifica e os gostos parecem se nivelar pelas forças do poder. Certamente, o poder se atrela a interesses e os interesses dependem do lucro que nossos empreendimentos podem alcançar. É por isso que na base da escala de valores situam-se as forças do mercado e no cume da pirâmide seus resultados contábeis.[2]
Na “sociedade do espetáculo”[3], o consumismo e o lazer se associam à arte e ao capital e estruturam um capitalismo avançado. O espetáculo, o entretenimento, torna-se o capital e esse capital se expande à medida que gera e alimenta o consumismo e o lazer.
Ao final da exposição, nada do material usado será guardado, distribuído ou colecionado por nenhum museu de arte. Para frustração daqueles que querem perpetuar a arte, o objeto do encanto e do desejo, todo o material será reciclado. Os portões de Christo e Jeanne Claude duraram o prazo curto de 16 dias mas ficarão para sempre nos olhares do mundo e na memória cultural da cidade como a maior exposição de arte já realizada em Nova York. Uma extravagância de açafrão cobrindo e colorindo todo o parque. Durante esse curto período, os portões de Christo e Jean Claude foram alvos dos mais diferentes olhares, variando radicalmente entre olhares confusos, de estranhamento, de mero turismo, de contemplação, olhares religiosos e mesmo olhares que não viam arte nenhuma ali. Andei pelo parque muitas vezes e visitei os portões em diuferentes horas do dia e da noite. Andando e conversando com as pessoas, ouvi as mais diferentes e inusitadas manifestações. Um motorista da UPS me perguntou o que estava acontecendo no parque: “O que é isso?” perguntou ele. Respondi que era obra de arte e ele sorrindo não disse nada. Já um estudante britânico, para minha estranheza, disse se sentir oprimido pelos portões. Mas a melhor reação aos portões a meu ver veio numa manhã ensolarada com o chão coberto de neve. Andando por entre uma série dos portões, um homem caminanhando com seu filho de talvez cinco anos me perguntou: “Estou procurando uma obra de arte que disseram estar aqui no parque, você sabe onde fica?” Fiquei espantando e sorrindo respondi: “É isso aqui”, apontando para os portões e pelos panos que esvoaçavam por sobre nossas cabeças.” O homem silenciou entre o espanto e a frustração.
Confesso que quando vi os portões e véus pela primeira vez, ainda sem os panos soltos, meu olhar se turvou ante a expectativa do que seria, uma quase ansiedade pelo que haveria de vir. No dia seguinte, quando voltei ao parque e vi os enormes panos soltos ao vento, o mesmo olhar turvado se rendeu ao encanto e beleza dos portões e véus que cobriam todo o parque e a expectativa de antes continuou impregnada em minha retina/alma/coraçao. As imagens dos portões se misturaram dentro de mim e este artigo é a tentativa de dizer o que a imagem dos portões criou em mim.
Assim como Walter Benjamin, penso por imagens. São as imagens que fazem ebulir meu pensamento. Quando teimo em querer verbalizá-las, minha frenética e quase desesperada escolha por signos/símbolos/re-presentações acabam por se trans-de-formar em idéias quase todas elas fora de eixo. Minhas escolhas são quase aleatórias, tiradas do baú de minha memória seletiva. As imagens carregam em si uma irredutibilidade que nunca se dá à nenhuma estrutura de idéias, lógica, sistematização, ou interpretação. Elas guardam esse espaço irredutível à nossa tendência de controle das idéias e de totalização interpretativa dos sentidos. As imagens não nos imposibilitam a tentativa da tradução, o que acredito, devemos fazer, mas elas não se dão completamente a nenhuma tradução, deixando-nos ante a indecibilidade e a questão do que se fazer diante dessas aporias. Como, por exemplo, traduzir exatamente o anjo da história ou a figura do Flaneur em Benjamin? Ou como teorizar o carnaval espetacular de Joãozinho Trinta? Ou explicitar os caminhos de Ogum? Ou as trajetórias do Espírito Santo? Essas imagens nos são representadas, e lutamos com elas ao tentarmos criar linhas para alinhavar nossos espaços internos e externos que nos situem de algum modo no mundo. Nessa Luta do rochedo com o mar, sempre haverá algo que iremos reprimir, que iremos esquecer, fraturas que impossibilitarão apreensões ou as mais perfeitas traduções. Resta a nós saber que esse movimento é errante e metonimicamente descrever as imagens como paragens de um lugar descohecido, mas estranhamento familiar.
As formas como me relaciono com esse olhar pausado e convulsionado que os portões fazem reverberar dentro de mim, acham suas franjas e bordas nas fronteiras da religião, talvez por motivos óbvios demais para mim mesmo. Os portões se impregnaram em minha retina e temas religiosos me dão os contornos para dizer o que vejo parcialmente e não posso traduzir.
Os Portões e a Mensagem Estética da Modernidade
Christo e Jeanne-Claude disseram que a obra de arte que eles criaram não quer dizer nada, que não tem uma referência ou um discurso politizado. Não quer nada a não ser ser o que é, obra de arte. “Nós estamos criando trabalhos de arte de alegria e beleza. ‘Os Portões’ são apenas uma obra de arte. Eles não têm nenhuma proposta, não são um símbolo, tampouco uma mensagem. É apenas uma obra de arte”.[4] O desejo dos artistas de fazer dos portões somente o que eles são, isto é, obra de arte, se confunde com o desejo modernista de fazer da arte algo embrulhada nela mesma, ou seja, auto-referenciada.
O jornal Le Monde expressa várias opiniões e enfatiza o comentário de outros críticos ao dizerem que a arte supostamente apolitizada de Christo está em absoluta sintonia com a política de releição de Bush e o desejo do prefeito de Nova Yor de conseguir projeção e levar as olimpíadas para a cidade.
O mesmo Le Monde cita o famoso filósofo contemporaneo Norte-Americano Arthur Danto que disse: “os portões são a antítese absoluta do Ground Zero.”[5] Para quem estava em Nova York quando o atentado terrorista de 11 de Setembro aconteceu, essa afirmação parece não incontestável mas imprescindível. Portões de açafrão contrastam hoje com o pó escuro e os restos de prédios e corpos que se acumularam no Ground Zero e na memória da cidade. Já Blake Gopnik do Washington Post fala que a obra de Christo e Jeanne-Claude é uma arte demodê, atrasada em 25 anos, pré-avant-garde.
Embora as referências na obra de arte estejam lá de uma forma ou de outra, não acho necessário correr para achá-las e nomeá-las. De outro lado, não quero deixar a arte de Christo e Jeanne-Claude entregues a uma espécie de aphasia. Ao contrário, pretendo contaminar a suposta pureza reinvidicada pela obra de arte e os campos teóricos com afirmações, interjeições, relações práticas e teóricas, uma certa infatuação linguística que talvez tragam outras possibilidades para o pensamento à medida que trabalhe com a linguagem no seu limite, mas que prorrogue qualquer apreensão definitiva seja da realidade seja da obra de arte. Assumo minha postura parasita e tomo a arte e a filosofia como parceiros de minha análise claramente religiosa. Vale dizer que o que entendo de religião não é um exercício metafísico sobre uma mesma coisa, transparente e auto-referenciada, a saber, Deus, mas sim um exercício pós-moderno de erupção do pensamento que faça suscitar diferentes conclusões sobre diferentes pontos. Essas conclusões não devem se fechar em sí mesmas mas sim possibilitar e manter, no sentido Heidegeriano, a abertura do mundo que se revela ao encobrir e se encobre ao revelar. No dizer de Robert P. Scharlemann, “O pensamento pós-moderno significa, então, o reconhecimento que assim como não há transparência do sujeito para si mesmo mas uma dispersão apontada para subjetividades concretas, assim também não existe o mundo como tal mas sim várias formas de conclusão.”[6]
A arte na modernidade começa com o conceito de autonomia nas três críticas de Kant: auto-nomos, auto-regulação. O princípio de autonomia se baseia no conceito de “teleologia-interna” ou uma “função sem próposito”. É em Kant que a diferença entre arte baixa e arte alta se estabelece. Mark C. Taylor explica:
Enquanto que a arte baixa, de acordo com Kant, é utilitária, a arte alta não é utilitária; a arte baixa é feita para vender, para o lucro, enquanto que a arte alta é criada para seu próprio valor e assim não tem valor prático; o fim ou propósito da arte baixa é externo (o mercado) e o fim da arte alta é interno (arte)”.[7]
A alta arte foi traduzida como “belas-artes” e a arte baixa como arte popular. As belas-artes não somente precisam de sua própria estrutura para acontecer mas acabam por ser a razão de sua própria condição. Taylor continua: “A relação recíproca dos meios e fins constitui a estrutura auto-reflexiva que aponta para nada além de si mesma e é, assim, auto-referencial.”[8] A referência que se vê na obra de arte não é um objeto mas um conceito e esse conceito se referirá sempre a si mesmo criando uma estrutura de adequação interna.
Mas essas estruturas internas e protegidas da modernidade também têm seus vazamentos e seus buracos, temas e tópicos que não podem nem ser incluídos nem incorporados em sua estrutura interna. A crítica pós-moderna trabalha na tentativa de achar esses espaços deixados abertos, vazamentos conceituais, temas deixados para fora, que são a própria condição da possibilidade da modernidade. Essa condição é que permite a desconstrução, a ruptura, a explosão, e possibilita outras inserções, outras posturas e outras leituras no campo do conhecimento em geral e no campo da arte em específico aqui.
A arte pós-moderna é entendida de várias maneiras: como superação da modernidade, como continuação, como ruptura e como um movimento tanto de ruptura como de continuação. No dizer de Hal Foster, a pós-modernidade “sinaliza o movimento de quebra da exaustão dos modelos da arte modernista que se focalizou nos refinamentos formais e negligenciou tanto as determinações históricas quanto as transformações sociais.”[9] Ao que eu acrescentaria também as dimenções religiosas.
Mas é preciso saber quais formas de religião se associam à pós-modernidade. Citarei aqui somente uma parte do pensamento de Tillich relacionado com sua teologia da cultura e sua co-relação com a modernidade.
Referências Religiosas e Modernas
Tillich foi o primeiro teólogo que viu a cultura com um aspecto teológico/religioso. Entender a religião como componente da cultura era desestruturar o campo secular do conhecimento que se estruturou sobre bases empíricas e portanto rejeitavam a religião e a viam como pertencente a um aspecto inferior da vida que ainda não havia alcançado a civilidade das idéias maduras e dos conceitos lógicos. Fruto dos modelos e influência francesas nas estruturação e demarcações do campo do conhecimento nas universidades do Brasil, a religião nunca foi contemplada com nenhum departamento de estudo. Parte do movimento filosófico atual tem se esforçado em fazer do mundo um mundo des-secularizado e aberto à possibilidades da religião e do sagrado. Trabalhar com a religião nas tramas da cultura é, portanto, provocar rachaduras nas estruturas de repressão que condicionaram o pensamento filosófico brasileiro.
È preciso dizer porém que a relação de conceitos que ficaram conhecidos no Ocidente como “secular e sagrado/religioso”, e que marcam e universalizam as formas e fronteiras do conhecimento é essencialmente cristão. Mas trabalhamos nesse artigo dentro desse formato cristão de acesso e interpretação da religião e por isso uso Tillich. Tillich sabia que essa relação binária sempre tende a um ou outro lado em suas dinâmicas de poder. Ele diz: “Na verdade, o elemento secular tende a fazer de sí mesmo independente e estabelecer o seu próprio reino. E oposto a ele, o elemento religioso tende a estabelecer a si mesmo como um reino especial.”[10] Tentando evitar essa dualidade, Tillich busca uma interpretação existencial da religião e chega à sua máxima “religião é a substancia da cultura e cultura é a forma da religião”.[11] Ao mesmo tempo que a estrutura dessa relação se atualiza através da preocupação última, ela se molda nos limites da linguagem. Assim, a linguagem é a criação cultural que carrega a vida espiritual humana em seus atos pessoais e sociais, nas funções teóricas e nas expressões artísticas, e a preocupação última é aquilo que é expresso na linguagem e que a linguagem não pode abdicar. Essa relação é quase perfeita porque permite que a linguagem seja cortada pelo imponderável, pela impossibilidade de sua própria estruturação assim como faz da preocupação última parte necessária da vida humana. Tillich diz “Em todas estas funções na totalidade da creatividade cultural humana, a preocupação última está presente. Sua imediata expressão é o estilo da cultura. Aquele que pode ler o estilo da cultura pode descobrir a sua preocupação última, sua substância religiosa.”[12]
Porém, o problema na teologia da cultura em Tillich se dá quando ele tenta descrever a realidade, o estilo da cultura que expressa a preocupação última. Diz ele que
a concentração das atividades humanas sobre a metodologia da investigação e as transformações técnicas do seu mundo, incluindo a si mesmo, teve a consequente perda da dimensão de profundidade no seu encontro com a realidade. A realidade perdeu sua auto-transcendência ou, usando outra metáfora, a transparência pelo eterno.”[13]
Talves seja possível detectar um risco nessa análise se o que Tillich pretende é a substituição da auto-suficiência das inter-relações humanas pela imposição da preocupação última. Além de estar muito próximo da definição do Deus cristão, a preocupação última se reveste de uma transparência e auto-rasnscendência própria das afirmações metafísicas que tomam como inquestionável um princípio dado, absoluto, a priori. Assim, a transparência da presença teológica ou religiosa da preocupação última de Tillich é a mesma da auto-referência da arte de Christo e Jeanne –Claude, já dada, auto-gestada e portanto esperada.
Tanto o projeto religioso de Tillich quanto o artístico de Christo e Jeanne-Claude devem ser confiscados para que não se engessem e se idolatrem em afirmações metafísicas que se baseiam em sua própria referência e que não se dão à crítica. O pensamento religioso deve ser também uma crítica iconoclasta constante contra absolutos, sejam eles artísticos, filosóficos ou de qualquer outro matiz, que se instauram em nosso cotidiano e no pensamento e tornam-se com o tempo, afirmações naturais, não dadas a exame ou a diferentes perspectivas. A obra de arte, assim como a preocupação última, nunca é i-mediata, a saber, sem mediações, mas se dá nos processos de representação de si mesma. Quando a arte quer se auto-referencializar ela caminha para o auto-aniquilamento, como quer Cristo com o mateiral de sua obra. Esses processos de auto-representação e de auto-aniquilamento sempre está a favor de uma preocupação/referência/estrutura específica, dada e que sustenta o desejo de ausência da estrutura. A viabilidade da estrutura ausente não é a simples ausência da estrutura mas sim a abertura de possibilidades dentro dessa mesma estrutrura.
Por fim, se a onto-teologia metafísica de Tillich precisa ser desafiada, a “influência do protesto”[14] ou o princípio protestante como conhecemos e que caracteriza sua análise existencial da religião precisa ser contínuo, precisa ser preservado. É pelo uso da linguagem, mesmo em face de sua mais iluminada limitação, pelo protestos, pela crítica, pela revolta, pelo desfazimento, pela desconstrução, que se possibilita e se busca a transformação e a constante construção do que chamamos de realidade.
Unir arte e religião parece ser uma aventura quase desrespeitosa se levarmos em conta o status da crítica da arte no ocidente. O sagrado foi deslocado pela arte e a arte assumiu o papel de Deus, do sentimento religioso. O deslocamento da religião pela arte também deslocou as estruturas auto-referenciais e invertendo os pólos, a arte tornou-se como Deus, autônoma e indeterminada em si mesma. Deus tornou-se arte mas a devoção dogmática continuou a mesma. Rosalind Krauss descreve esse movimento:
Dado a fissura absoluta que se abriu entre o sagrado e secular, o artista moderno se viu diante da necessidade de escolher entre um modo de expressão e outro. O testemunho curioso oferecido pelo grid é que nessa junção, ele tentou decidir pelos dois. Na crescente des-sacralização desse espaço no século dezenove, arte tornou-se o refúgio das emoções religiosas; tornou-se, assim como se manteve, uma forma secular de crença. Ainda que essa condição fosse possível de ser discutida de forma aberta no final do século dezenove, ela é algo inadimissível no século vinte, tanto que ainda hoje nós achamos ser indescritivelmente vergonhoso mencionar arte e espírito numa mesma sentença”.[15]
Dado o aspecto filosófico-religioso da modernidade, pretendo agora fazer um exercício de deconstrução da obra de arte de Christo e Jeanne-Claude. Para tanto, vou usar dois temas desenvolvidos por Derrida, a saber, o futuro e a noção de véu, e referenciar os portões de açafrão em embrulhos religiosos a partir das imagens que se constróem dentro de mim.
A Religião e a Estética dos Portões
Mark C. Taylor diz constantemente que a religião está nos lugares menos esperados da cultura, nos lugares menos evidentes, geralmente nos aspectos negados, silenciados ou esquecidos do pensamento filosófico. Em tempos de pós-secularização, o sagrado parece se manifestar em diversas feições e em lugares inusitados, não como um sentimento romântico a ser nomeado, não como um ideal platônico unificador, nem como substância à espera de uma definição da cultura, mas sim como uma possibilidade incapturável mas percebida nas tramas da realidade. Se o que Taylor fala da religião deve ser levado em conta, então a pergunta que se poderia fazer à obra de arte de Cristo e Jeanne-Claude é: “por onde perspassa a religião nos Portões do Cetral Park?” Não se trata de perguntar o status da religião na obra de arte, nem o que a obra de arte fala acerca da religião, nem mesmo o que ela guarda na essência ou expressa na realidade. Ao contrário, a pergunta acerca da religião na arte se dá naquilo de provável que a arte carrega em sua potencialidade velada e revelada, naquilo que a arte ventila acerca da religião mas que não pode ser capturado ou completamente entendido, decidido, nomeado, naquilo que a arte movimenta entre espaços inacessíveis e convidativos. Nesse espaço, tento achar uma fresta brasileira para reunir descontrução, estética e religião.
I. Os Portões, o L’Avenir e a Exigência Afirmativa
Quando Derrida discute a noção de futuro, ele fala de dois tipos de futuro. O primeiro é o futuro conhecido, o futuro no qual encaminhamos nossa vida, não só o processo de nascimento, vida e morte mas também dos projetos que fazemos em nosso cotidiano, dos agendamentos, o comumente esperado. O outro futuro que Derrida salienta, e é o futuro pelo qual que ele se interessa, é o futuro que vem sem pré-anúncios ou nenhuma expectativa de algo reconhecível. É o futuro do verbo l’avenir do francês, que fala de um futuro que vem sem que se possa fazer qualquer tipo de projeção, plano ou de se precaver em algum tipo de proteção. É o futuro impensado, inimaginado, incontrolável, fora dos horizontes, “o futuro absoluto, as boas vindas estendidas a um outro que eu não posso, em princípio, antecipar, o tout autre cuja alteridade perturba os complacentes círculos do mesmo… A primeira e última palavra em desconstrução é vem, viens.”[16]
Assim, a descontrução se abre para o futuro, sem se saber o nome de quem ou do que vem. Vive-se na expectativa do futuro, da promessa, enquanto tentamos desfazer as tramas complacentes da rede sempre prevista da religião, que trata do mesmo, do experimentado e do que se encaixa no grid do conhecido. O que vem no tempo verbal do l’avenir é o que não se espera adequadamente, o que não se tem certeza nem nunca terá, o que inaugura o desconhecido, o que singulariza o evento, o que indexa o novo. Dessa forma, a descontrução não vive das lúgubres projeções que muitos intepretaram mas sim, ela deve ser acompanhada do que Derrida chama de uma “exigência afirmativa”, ao que ele adiciona dizendo que a descontrução “não deveria jamais proceder sem amor”.[17] “Essa exigência afirmativa” coloca o futuro fora do horizonte das expectativas, para que o que vem venha sem que se saiba ou se tenha idéia de suas feições, formas ou aparições. O que vem é como o espectro de algo ou de alguém que não sabemos quem é ou mesmo de onde virá. É o sim, o “amém”, o “assim seja” necessário de toda oração que espera pela promessa, de toda forma de amor que anseia pelo melhor. O futuro e a afirmação fazem a abertura da experiência, da experiência ainda por experienciar, não pensada, não vivida, não prescrita. Chico Buarque já cantava a desconstrução ou a desconstrução. Já teorizava Chico na letra de “Vence na Vida quem diz Sim”:
Vence na vida quem diz sim
Vence na vida quem diz sim
Se te dói o corpo, diz que sim
Torcem mais um pouco, diz que sim
Se te dão um soco, diz que sim
Se te deixam louco, diz que sim
Se te tratam no chicote, babam no cangote
Baixa o rosto e aprende o mote, olha bem pra mim
Vence na vida quem diz sim
Vence na vida quem diz sim
Se te mandam flores, diz que sim
Se te dizem horrores, diz que sim
Mandam pra cozinha, diz que sim
Chamam pra caminha, diz que sim
Se te chamam vagabunda, montam na cacunda
Se te largam moribunda olha bem pra mim
Vence na vida quem diz sim
Vence na vida quem diz sim
Se te erguem a taça, diz que sim
Se te xingam a raça, diz que sim
Se te culpam a alma, diz que sim
Se te pedem calma, diz que sim
Se já estás virando um caco, vives num buraco
E se é do balacobaco olha bem pra mim
Vence na vida quem diz sim
Vence na vida quem diz sim
O sim da desconstrução se associa com a noção judaica do Messias. Uma associação não tanto religiosa mas política. Derrida se baseia intensamente no conceito de “poder messiânico fraco” em Walter Benjamin para construir sua trajetória filosófico-messiânica do “messias sem o messias”. Derrida clarifica a relação entre o futuro e a relação messiânica:
Assim que você se remete ao outro, assim que você se abre para o futuro, assim que você tem uma experiência temporal de espera pelo futuro, da espera por alguém que vai chegar: essa é a abertura da experiência. Alguém está por vir, está agora para chegar. Justiça e paz terão que fazer parte da chegada do outro com a promessa… Essa estrutura universal da promessa, da expectativa, da expectativa do futuro, para o que vem, e o fato dessa expectativa do que vem tem a ver com a justiça – isso é o que eu chamo estrutura messiânica.[18]
Os Portões de açafrão soprando ao ventro no Central Park eram como o anúncio do futuro, um futuro desconhecido, fascinante e tenebroso. Anunciações! Mais, como manifestações, ventilavam aparições do que seria, do que será e do que há de ser, como águas de março fechando o verão e anunciando a primavera, “promessa de vida no meu coração”. Sim, sim, promessas de epifanias, de vindas inauditas, impronunciáveis, incalculáveis, sobejantes, sacudidas. A enorme quantidade de portões pelo parque atestava os excessos de um presente a ser ainda descoberto, re-inventado e re-mexido pelo passado, contraponto e re-escrita do futuro pré-anunciado como lúgubre, catástrofe, como falta de fôlego, falta de ar, fim do mesmo. Os portões se instalaram ali como promessas que nos fazem sobressaltar de surpresa diante de um cotidiano tantas vezes previsível. Mais ou menos como Chico Buarque cantou em “Valsinha” ou em “E Se…” que eu cito aqui:
E se o oceano incendiar
E se cair neve no sertão
E se o urubu cocorocar
E se o botafogo for campeão
E se o meu dinheiro não faltar
E se o delegado for gentil
E se tiver bife no jantar
E se o carnaval cair em abril
E se o telefone funcionar
E se o pantanal virar pirão
E se o Pão-de-Açúcar desmanchar
E se tiver sopa pro peão
E se o oceano incendiar
E se o Arapiraca for campeão
E se a meia-noite o sol raiar
E se o meu país for um jardim
E se eu convidá-la para dançar
E se ela ficar assim, assim
E se eu lhe entregar meu coração
E meu coração for um quindim
E se o meu amor gostar então de mim
Um outro aspecto dos Portões laranjas ao longo do parque eram as noções de entradas e saídas que os portões sempre anunciam: mundos abertos sem ferrolhos hermenêuticos ou chaves interpretativas, liminalidade que impossibilita as certezas, as definicões fáceis e os credos concordados. Ao adentrarmos pelos portões, imediatamente saíamos deles e entrávamos em outro que nos despedia e nos enviava a novas entradas e assim sussecivamente sem que tivessemos chances de colocar ordem em pensamentos assentados. Como promessas de um devir desconhecido, os portões nos ajudavam a ensaiar a vida que temos a cada momento e que definimos a cada portão, a cada passo, a cada entrada e saída, nos chamando e desafiando, nos destruindo e nos refazendo, ganhando e perdendo juízo, vivendo na te(n)são incontrolável do corpo, performatizando/liturgizando o indecifrável, o que vem e está para vir, o que nos redime e nos corrompe, o que nos falta e nos plenifica, o que nos faz bendizer e maldizer, o que nos apruma e nos tira o equilíbrio. Um eterno ensaio de gestos e movementos, uma liturgia para viver e esperar o que não sabemos. Coisas que Chico Buarque cantou em “O que será (À flor da pele)”
O que será que me dá
que me bole por dentro, será que me dá
que brota à flor da pele, será que me dá
e que me sobe às faces e me faz corar
e que me salta aos olhos a me atraiçoar
e que me aperta o peito e me faz confessar
o que não tem mais jeito de dissimular
e que nem é direito ninguém recusar
e que me faz mendigo, me faz suplicar
o que não tem medida, nem nunca terá
o que não tem remédio, nem nunca terá
o que não tem receita
O que será,que será
que dá dentro da gente e que não devia
que desacata a gente, que é revelia
que é feito uma aguardente que não sacia
que é feito estar doente de uma folia
que nem dez mandamentos vão conciliar
nem todos os unguentos vão aliviar
nem todos os quebrantos, toda a alquimia
que nem todos os santos, será que será
o que não tem descanso, nem nunca terá
o q ue não tem cansaço, nem nunca terá
o que não tem limite
O que será que me dá
que me queima por dentro, será que será
que me perturba o sono, será que me dá
que todos os tremores me vêm agitar
que todos os ardores me vêm atiçar
que todos os suores e vêm encharcar
que todos os meus nervos estão a rogar
que todos os meus órgãos estão a clamar
e uma aflição medonha me faz implorar
o que não tem vergonha, nem nunca terá
o que não tem governo, nem nunca terá
o que não tem juízo
A cor açafrão brilha na escuridão e nos dá um rumo de lugares sem mapa. Logo pela manhã, os portões se misturam com o laranja do nascer do sol, que vem, virá e continuará vindo.
Como um intervalo, um lapso, uma nota semibreve, uma pausa inesperada num acorde de tempos incalculáveis. O anúncio faz com que o que aquele que espera se prepare sem saber como nem quando para o que vem. Então, no anúncio do tempo que se espera, a casa é constantemente arrumada, a roupa velha, mofada e amarrotada é tirada do armário, lavada e passada. Mais do que isso, a cidade se põe em polvorosa porque há de vir algo ou alguém que necessita de todo o cuidado. A cidade se veste de laranja e os panos que sopram ao vento ruminam a chegada do arrivant. Esse arrivant mudará o estado das coisas sem garantir verdades. Seus anunciantes serão os profetas gagos e sem fé, despreparados e temerosos, incapazes de se saberem mediadores do que virá. São os bobos da corte, os palhaços do circo, os loucos e os bêbados que anunciam o imponderável e ninguém presta atenção, falam do que é impróprio, inesperado, inimaginável e ninguém entende. Anunciam o que não se pode anunciar, falam através de opostos, seja por sintagma e/ou paradigma (Ferdinand de Saussure) por deslocamento e/ou condensação (Freud) ou preferencialmente por metáfora e/ou metonímia [sinédoque] (Roman Jakobson). Os Portões querem ser, nas palavras dos criadores, um “teto dourado criando sombras quentes” em meio ao frio castigante de Nova York. O teto dourado não extingue o cinza do céu mas oferece um novo olhar, cria vestígios, corta o horizonte, se oferece aos descaminhos. Já as sombras não aquecem o frio mas criam a expectativa de calor e aconchego. Criam também epifanias de luzes avessas, de escuridão que não iluminam mas falam de uma outra forma de luz ou da várias ausências dela.
II. Os Véus e o Veredito
Os Portões são também grandes véus soprando ao vento. Como roupas quarando no varal, ou como o tallith judeu, ou como um chale de seda, um lenço que saúda ou se despede, ou ainda como as velas de um barco. Referências de regulamentações de mundos.
O véu é o sinal da separação e de entre-espaços (in)comunicáveis. O véu guarda o que está por trás mas também guarda o que está a sua frente. O que está à frente do véu está guardado do que está atrás e tanto o que está a frente como o que está atrás do véu estão guardados e ao mesmo tempo misturados e divididos entre si. A condição da possibilidade da separação que o véu proporciona é a estrutura que mantém a sua mistura. O que está guardado e separado (santificado), ou seja, o sagrado, o segredo, acaba por se misturar, sem saber, com o que é mundano, com o cotidiano, com o vil, do que transgride mas não poderia.
Esse que acaba de chegar diante do véu torna-se sagrado também na medida em que ele está separado. O véu é parte intrínseca tanto do lado de dentro quanto do lado de fora. Choque de sacralidades e mundanização. O véu que separa une, protege e contamina. Diante do véu alguém suspira e anela. Diante do véu alguém silencia e grita. O véu se movimenta e o espetáculo da aparição, da epifania se faz possível a cada instante. Mas o que se mostra não pode se revelar pois assim aniquilaria a outra margem e se auto-aniquilaria. A glória de Deus deve ser protegida pelo véu do rosto de Moisés senão as pessoas morreriam. Se as pessoas morrem Deus também morre, por isso elas precisam rescucitar e ir apra o céu. Sem o ser humano, Deus deixa de ser.
O véu fala de uma glória desejada mas impossível, buscada mas inacessível. O véu não pode ser tocado nem abandonado. Ele é a garantia da ordem do mundo. A ruptura do véu do templo que separava as partes pela morte de Cristo fez com que os espaços fossem dissolvidos. A sacralidade se perdeu na mundanização do evento da morte de Cristo e criou um outro veredito: de agora em diante o acesso ao santo dos santos está liberado. A separação causada pela ruptura do véu é o colapso da divisão entre a união e a separação. A união entre o mundano e o sagrado que Cristo promoveu ao rasgar o véu com sua morte é a condição da separação irredutível de uma relação para sempre irrevogável. É a união promovida por Cristo que nos desloca para sempre de uma situação antes conhecida como alento e segurança com o sagrado.
O santo dos santos não é nem mais santo mas também não perde sua singularidade. O véu rasgado não serve mais para sua função de proteção mas não pode ser abandonado. Derrida fala que “graças ao véu dado por Deus, e oferta (o véu) significa ordem.” Estamos todos desprotegidos e o sagrado agora grassa pelo mundo solapando, destruindo e construindo sem critérios ou fronteiras. As teologias foram à bancarrota e não conseguem mais controlar o sagrado. Como uma mangueira de água sem controle, assim é o sagrado em um mundo sem a proteção do véu.
Sobre o tallith judeu, Derrida diz : “A originalidade dessa referência, o intraduzível que o tallith carrega em sua ferência, que não se pode nem se deve se livrar, de ser or tornar-se, como todo véu, meramente uma figura, meu tallith, um símbolo, um trope.”[19] O tallith é a re-ferência de algo intraduzível que não pode tornar-se mera figura. A figura do tallith carrega a necessária divisão dos mundos e do controle do sagrado. Não é a ausência do tallith que perturba mas seu uso indevido, meramente relacionado com uma outra coisa. Valendo-se de Walter Benjamin, Derrida diz que “Não é suficiente ter conceitos a disposição, é preciso saber como estabelecê-los, como alguém acerca as velas do barco, comumente para salvar a si mesmo, é claro, mas com a condição de se saber como pegar o vento na vela…”[20]
O véu é a estruturação do mundo e se dá entre o que oferece o véu e o artesão que cria o véu. O véu fala da verdade e ambos fazem parte de um veredito por vir de uma ordem já revelada. Entre aquele que oferece o véu e o artesão que cria/costura/borda o véu, criam-se os mitos e se constróem as verdades que definem o mundo entre o correto como entendido pelo -e no- veredito e o que se afasta do veredito e se emancipa criando outros vereditos. Derrida diz que
a fala de Deus, seu veredito: por Deus a ordem (é) dada para dar o véu, o véu (é) o presente (que é) ordenado para dar. Nada mais é. Deus seria então o nome do que dá a ordem de dar o véu, o véu entre o santo e o santo dos santos… véu, cortina, não é nada mais do que a habitação de Deus, seu ethos, seu estar-ai, sua jornada, seu anúncio: Eles devem fazer para mim um santuário… Ele, esse Quem que vive ali, nesse ethos, esse Quem é também um O Que, como um Terceiro Partido, é a lei, o texto da lei.”[21]
O véu é assim a lei, o veredito final e excludente, o que está fixado e deve ser cumprido. Entretanto, Derrida desconstroi a rigidez do véu dizendo que na figura do Messias, o veredito se abre para o novo evento, “como se alguém estivesse esperando pelo novo Messias, ou seja, o evento alegre apelidado de veredito. Desconhecido de tudo e de todos, sem conhecer or estar certo de alguma coisa.” Esse veredito não se dá na revelação de uma verdade mas se estira num “tempo infinito” de um teste que consiste não tanto na espera por este ou aquele veredito mas numa rigorosa e implacável suspeita…”onde “a data limite de um veredito que não mais será a revelação de uma verdade, um veredito sem verdade… sem veracidade, sim, mas a data limite que não será mais capturada pelo dobrar e desdobrar do véu”[22]
Os véus do Christo e de Jeanne-Claude também não falam de um lugar onde Deus mora mas o lugar onde algo ou alguém fez/faz/fará/será feito evento, veredito sem verdade, verdades sem catálogo nem certezas. O veredito dos véus do central Park pintam a impossíbilidade da originalidade do evento, que anuncia sem esgotar-se. O véu que separa e inclui, estira e reduz, amplifica e circunda, expande e se dobra, voz de trovões e de ares rarefeitos, produzem vereditos fracos e revogáveis.
Como uma lona armada de circo, um circo inacabado, os véus alaranjados falam de um tempo infinito onde a verdade somente é verdade na medida que ela não carrega a adequatio. Os véus se contorcem e não se exprimem em si mesmos nem mesmo anunciam outra realidade. Eles figuram nos ringues do circo sem palavra final. Não há como estar no véu mas somente entre os véus. Eles sugerem, imitam, possibilitam o novo que vem.
Os véus de Christo e Jeanne-Claude parecem-se com varais onde as roupas ficam guarando sem nunca perder a cor. Luzes de sol entrelaçadas, entrecortadas que secam e preparam as roupas da festa, anunciando o vento que anima o mundo. Os véus são aparições de novos desejos que se chocam entre a falta e o excesso. Sugerem certa atração pelo acaso e pela ausência de qualquer providência ou redenção. Assim é a religião anunciada pelos portões e pelos véus, vereditos sem verdade, anúncios de novidades e expectativas escatologicas sem telos, movimentos sem providência nem redenção mas que querem resultar em mudanças.
Conclusão
A arte dos portões de Christo e Jeanne-Claude poderiam ser vistos na perspectiva de Krystof Ziarek como um “campo de força”[23], onde forças históricas e sociais formam uma relacionalidade alternativa, colocando em cheque tanto o que circunda a arte como as referências, ou ausências delas, e que determinam a obra de arte. O espetáculo (imagem/ entretenimento/lazer/capital) seria assim força tanto de continuidade como de ruptura das estruturas que a compõem.
Teixeira Coelho rompe com a secularizada escola de crítica de arte e fala da relação universal entre o ser humano e a arte como transcendência:
Diante de toda obra de arte, o ser humano quer tornar-se, ele, uma obra prima (Nietzsche). Não pode fazê-lo se não recorrer a uma mediação. Mediação é distanciamento (não co-fusão imediata) e, nesse caso, celebração. O ser humano celebra a obra que permite permutar-se em obra prima. E celebra apenas o que lhe permite celebrar-se a si mesmo. Para tanto, a operação de metáfora – a transcendência- é fundamental.[24]
A estética de Coelho é feita de uma transcendência pura, limpa e regulamentada em uma forma de vida que não integra o grotesco, o abjeto, o horroroso, o sujo, o catastrófico, o irregular, regulando a vida em torno das normas de condutas conhecidas. Seu belo afasta o que não é intermitentemente belo, o que não tenha mais do que algumas horas de duração. Estética da transcendencia. Possível desde que a transcendência aconteça com lembretes da imanência, para que não se torne uma trasncendência i-mediata, sem mediações, dobrada nela mesma. Celebração? Sim! Visto que a celebração envolve um chacoalhar do espírito, (n)uma reverberação no corpo. A celebração que a arte inspira é uma performatização multiforme de algo que mexeu no corpo, que reverberou na pele, e se transformou.
A celebração do véu e dos portões criam apelidos para o momento feliz, para a ressureição. Traz um certo veredito, um veredito sem verdade, veracidade ou verosimilhança. Ao contrário, os vereditos anunciados são vereditos de uma arte contaminada por diveras referências que estão lá mas não sem dão à captura. Vereditos de verdades perdidas ou diluídas. Vereditos que ao cumprirem a função de definir os mundos continua a cochicar para sí mesmo “será isso verdade”, “me diga se o que eu sinto é real?” De um lado, esses vereditos insuflam uma radical descrença que denota a busca de uma fé prensada na dúvida, medrosa, incapaz, carente, fraca, quase inexistente. De outro lado, os vereditos ampliam as possibilidades de se acreditar no que se faz, na caminhada sob o céu riscado de véus alaranjados que vêm e continuarão a vir.
A celebração dos portões criam também espaços de liminalidade.[25] Esses espaços são os espaços das mudanças, das alternâncias, das mobilidades extras, radicais, do reprimido, do escondido, do assustador, do desprentensioso, do errante. Mas também é espaço dos anúncios absurdos, das promessas mais inconsequentes, da fé cega, da faca amolada, dos “beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouvia mais…”. Ali não se profetiza mas se anuncia o imponderável, o insuportável. Nesse vão, nesse portal, nesse espaço entre um lugar e outro a vida se refaz, a felicidade é anunciada, numa mistura de presente passado e futuro, o irresolvível se apresenta e o sagrado se manifesta. Nesse vão, não se poderá “provar o que aconteceu, somente jurar que aconteceu. Perjúrio deve permanecer possível Essa é uma obrigação que deve ser respeitada.”[26]
Assim, os vereditos impróprios dos véus e a liminalidade dos portões falam de uma arte sem telos mas com resultado, mesmo que indefinível. Se a verdade não pode nos salvar, mesmo que ela exista, a obra de arte pode, ao menos, nos dar visões breves, fraturadas, de presenças negadas, de espaços inabitados mas possíveis, das indeterminações da vida e do incapturável da religião.
Ao fim, a leitura que faço dos portões de Christo e Jeanne-Claude não quer nem dizer o que os artistas não dizem nem deixar de dizer o que não eles não querem. Querem sugerir uma visão obliqua e talvez patetica dos caminhos da religião nos entre-meios dos portões e suscitar os movimentos suaves dos véus que acabaram por ventila o inusitado em minha retina/alma/coração. Sugerir que eles mostram a beleza do futuro que não vive sem o presente e do presente que se refaz quando transforma não só o passado mas também e essencialmente o futuro. Nessa trajetória concreta, de corpos concretos entre arte e vida não busco por representações claras mas por sussuros, rastros de transcendências incapturáveis no meio do caminho, cheiros de quem chega e de quem ainda há de vir, desejos pelo novo e pelo melhor: sem telos mas com resultado.
O que nos ajuda a trafegar nessa simultaneidade de cores e afagos e carências é o vento que faz farfalhar o véu e se moldar nossas formas. É preciso não esquecer do vento porque é o vento que nos possibilita colocar na mesma frase arte e espirito. O vento é o fôlego que nos mantém vivos e animados. O vento move os véus e serpenteiam seus movimentos em bordas eternamente indefiníveis. O vento é o ar que respiramos. Maraschin fala belamente da relação entre arte e espírito:
A respiração nos faz seres espirituais e animados (isto é, cheios de alma). Somos seres que respiram e que, por isso, vivem. É na respiração e por meio dela que criamos. Asssim as obras de arte são obras de do ar. Sem querer, também dizemos que elas criam certa atmosfera…. A espiritualidade assim concebida, relaciona-se de maneira privilegiada com as obras de arte porque nelas nada mais importa do que seu aparecimento… São como anjos. Quanto menos pesadas mais cheias de espírito e mais condutoras da respiração… Portanto, mais perto da vida.[27]
Assim, o que temos na obra de arte são vestígios de levezas insustentáveis que se anunciam e que carregam promessas de transformação e de visitações leves e ligeiras (Nietzsche disse: “tudo que for divino tem passos ligeiros”[28]). Assim foi ligeira a passagem dos Portões pelo Central Park e pela vida do mundo, assim como foram ligeiras as minhas frequentes visitas aos portões, assim como foi ligeira a vida de meu pai. Lembro-me que, enquanto andava admirado e fustigado em meio aos portões e véus do Christo e Jeanne-Claude, ouvia os anúncios sussurados pelo vento de promessas de epifanias que vem e que virão. Ao andar entre eles cantarolava outra “Anunciação”, essa anunciada pelo nosso nordestino Alceu Valença:
Na bruma leve das paixões que vêm de dentro
Tu vens chegando pra brincar no meu quintal
No teu cavalo peito nu cabelo ao vento
E o sol quarando nossas roupas no varal
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
A voz do anjo sussurrou no meu ouvido
E eu não duvido já escuto os teus sinais
Que tu virias numa manhã de domingo
Eu te anuncio nos sinos das catedrais
[1] Para maiores informações confira o site dos artistas: http://www.christojeanneclaude.net/tg.html
[2] Maraschin, Jaci Correia. A Estética da Pós-Modernidade e a Obra de Arte. Palestra realizada no Seminário de Liturgia, Arte e Urbanidade em 07/10/1999. Xerox.
[3] Guy Debord. The Society of the Spectacle (New York, Zone Books, 1995).
[4] Jeanne-Claude, citado por Angela Pimenta em Artista plástico tinge de laranja um cinzento Central Park (BBC Brasil on-line, 12/02/2005).
[5] Arthur Danto in Corine Lesnes, Christo emballe Central Park, moins les New-Yorkais (França: Le Monde, edição on-line 14/02/2005).
[6] Robert. P. Scharlemann (ed.). Theology at the End of the Century. A Dialogue on the postmodern with Thomas J.J. Altizer, Mark C. Taylor, Charles Winquist and Robert. P. Scharlemann. (Charlottesville and London: University Press of Virginia, 1990), 6.
[7] Mark C. Taylor. “Skinning Art” in Singular Forms (Sometimes Repeated): Art From 1951 to the Present (New York: Guggenheim Museum, 2004), 27.
[8] Ibid.
[9] Hal Foster. The Return of the Real (Cambridge, MA: MIT Press, 1996), 205.
[10] Paul Tillich. Theology of Culture, (London, New York, Oxford: Oxford Univ. Press, 1959), 41-42.
[11] Ibid., 42.
[12] Ibid., 42-43.
[13] Ibid., 43.
[14] Ibid.
[15] Rosalind E. Krauss. The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths. (Cambridge: MIT Press, 2002), 12
[16] John D. Caputo. Deconstruction in a Nutshell. A conversation with Jacques Derrida, (New York: Fordham Univ. Press, 1997), 156.
[17] Jacques Derrida, Points…Interviews, 1974-94, ed. Elisabeth Weber, trans. Peggy Kamuf (Stanford: Stanford University Press, 1995), 83.
[18] Jacques Derrida em “The Villanova Roundtable. A Conversation with Jacques Derrida”. in John D. Caputo. Op.Cit., 23.
[19] Hélène Cixous and Jacques Derrida. Veils. Translated by Geoffrey Bennington (Stanford, CA: Stanford Univers. Press, 2001), 75.
[20] Ibid., 85.
[21] Ibid., 29-30
[22] Ibid., 25
[23] Krystof Ziarek. The Force of Art. Cultural Memory in the Present. (Stanford: Stanford Univ. Press, 2004).
[24] Teixeira Coelho. Guerras Culturais (São Paulo: Iluminuras, 2000), 192.
[25] Liminalidade é uma palavra usada com frequencia na antropologia e foi desenvolvida principalmente por Victor Turner. O termo liminal ou liminalidade foi usado por ele para explicar o lugar entre lugares, o que acontece por exemplo nos rituais de passagem, que é um lugar onde se saiu de onde estava e ainda não chegou no novo espaço previsto. Os cultos religosos, as cerimônias de casamento e batismo, por exemplo, são lugares liminais onde as regulamenteções são suspensas e re-feitas para que o indivíduo ou grupo se adeque à vida que virá depois do ritual de passagem).
[26] Jacques Derrida. Veils, Op. Cit., 84.
[27] Jaci Maraschin. A (im)possibilidade da Expressão do Sagrado (São Paulo, Emblema, 2004), 16-17.
[28] Citado por Teixeira Coelho, Op. Cit., 192.
Claudio Carvalhaes – Estudante de PhD no Union Theological Seminary – Nova York
ONLINE LINK- Promessas de Epifanias: Os Portões e os véus de Açafrão de Christo e Jeanne-Claude no Central Park de Nova York
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