August 30, 2013 at 2:55pm
Roberto DaMatta chama a atenção para o que ele considera um “nós brasileiros”: uma refinada distinção entre alimento e comida. Alimento seria da ordem do dever; comida – comunhão e comensalidade – é da (des)ordem do prazer.
“Para nós brasileiros, nem tudo que alimenta é sempre bom ou socialmente aceitável. Do mesmo modo, nem tudo que é alimento é comida. Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva; comida é tudo que se come com prazer, de acordo com as regras mais sagradas de comunhão e comensalidade. Em outras palavras, o alimento é como uma grande moldura; mas a comida é o quadro, aquilo que foi valorizado e escolhido dentre os alimentos; (…) A comida vale tanto para indicar uma operação universal – ato de alimentar-se – quanto para definir e marcar identidades pessoais e grupais, estilos regionais e nacionais de ser, fazer, estar e viver”.[1]
Mesmo correndo o risco de inventar um “nós brasileiros” que não resistiria a um simples teste de exclusividade – que o diga o inhame de Bronislaw Malinowski na vida trobriandesa – DaMatta explicita a comida como ato de escolha e valoração garantidor de identidades, estilos e modos de vida. Antes dele em 1933, Gilberto Freyre publicou Casa-Grande & Senzala, fazendo o registro dos hábitos alimentares e oferecendo receitas que poderiam explicar o “&”: o açúcar sinal de opulência canibalizava o trabalho escravo no quitute. Comi-o.
“Doce de manga. Descasca-se a manga e corta-se em talhadas. Faz-se um mel ralo (calda) põem-se dentro as talhas, que se levam ao fogo para fazer o doce. Quando o mel se mostra em ponto de fio brande o doce está pronto”.[2]
O que dizem os/as antropólogos/as é que esta distinção entre alimento & comida não se funda numa racionalidade ou num saber científico que, no caso da comida, deve conviver de forma tensionada com as escolhas e valores, modos e prazeres que são acionados pela experiência de comer: permissões, proibições e jejuns[3]
Decifra-me ou devoro-te!
Se aceitamos a proposta do professor, é o pentecostalismo que “come” – almoço e janta… mas pela voracidade da mastigação o terreiro devora aos bocadinhos qualquer racionalidade cristã sem guardanapo, algum palito. E aqui, para continuar com a sugestão do professor e superando seu alcance descritivo busco um modelo interpretativo que recoloque as relações de gula e regurgitação como vetor importante nas relações de relações entre as religiões no Brasil.
Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupy, or not tupy that is the question.[4]
As descrições de antropofagia[5] estão presentes em alguns dos primeiros relatos dos viajantes às terras que hoje chamamos Brasil, como no caso dos Tupis nos relatos de Amerigo Vespucci no século XVI. As descrições das práticas antropofágicas dos tupis se consolidaram como um projeto moderno emoldurado pelo termo “Novo Mundo” e globalizado na tradução simultânea para várias línguas, acompanhado de xilogravuras e um aparato conceitual que distinguia isto de aquilo – os “índios do novo mundo” são antropófagos e “por isso” se distinguem das culturas das índias orientais.
“O ritual canibal tinha início com a captura do inimigo, que podia viver longos anos junto aos seus contrários, com uma esposa ritual, atividades cotidianas, troca de experiências e até mesmo procriar. Um dia ocorreria sua execução o que ele sabia, aceitava e era impensável qualquer ato de covardia, já que o sentido do ritual dependia dos valores que a vítima era capaz de ostentar – a coragem, a bravura, a altivez…”[6]
A construção de “uma cultura colonial elaborada no interior de um processo, complexo e necessário, de negociações …” coloca a religião num lugar estratégico para a pergunta das metodologias de poder e as narrativas de controle. Para além da representação a antropofagia ritual torna difuso a distinção de sagrado/profano e faz de toda comida um ritual, mas também de todo “comedor” algo “comestível”! e é justamente neste processo duplicado de transubstanciação que o caráter místico/mágico/religioso de um dualismo incapaz de absorver “a crença na ressurreição corpórea” ( Lévi-Strauss[7]) torna o cristianismo inviável, porque não recusado mas comido. Por essas e por outras degustações é que o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade vem datado assim:
Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. (Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)[8]
O Manifesto re-inventa o calendário culinário-religioso: a marcação temporal e espacial do encontro profundo do Bispo Sardinha com os tupinambás. O ano 374 DBS (da Degluticação do Bispo Sardinha) desloca a datação e o logocentrismo do cristianimso e propõe – como ato fundante interpretativo – a grande fome dos tupinambás e a total falta de metafísica do ritual. A antropofagia do Manifesto reconhece as relações de poder desigual da história colonial e inverte e transgride os sinais dos contructos sociais da relação entre natureza & cultura que nos manteriam no labirinto do modelo/cópia. Para além do dualismo entre pensamento lógico e pensamento selvagem, a dialética suja de Oswald de Andrade não faz desaparecer nenhum dos termos de conflito/ em conflito. Europeus devoram – matas, metais, bichos, gentes – e são devorados: está dado conflito. Os comidos têm dentes: e comem. Escolhem. Valoram e deglutem formas, selecionando o que permanece, misturando substâncias e excretando o que não interessa.
“A antropofagia é o reflexo sobre a possibilidade de uma cultura genuína, levando-se em conta as condições de sua produção como tributária da européia… (só se pode) criar pela mistura de todas as contribuições da cultura letrada e da iletrada. É este o sentido da voracidade antropofágica: ela é uma entredevoração”. [9]
Maria Isaura Pereira de Queiroz numa conferência de 1987 explica de forma sintética a teoria da antropofagia de Oswald de Andrade :
“O escritor e ensaísta Oswald de Andrade (1890-1954), por sua vez, forjando a teoria da antropofagia, explica como se opera a fusão dos elementos culturais díspares: o Brasil, culturalmente, devora as civilizações que a ele vêm ter, compondo uma nova totalidade diferente das anteriores… Na década de 30, porém, já se encontrava perfeitamente consolidada e considerada como a interpretação válida do que seria a brasilidade. Com o correr do tempo, mais e mais foi se configurando como núcleo central de uma definição do que seria a identidade nacional, que perdura até os dias atuais.”[10]
Mesmo relativizando os “dias atuais” da autora e superando as facilidades de uma compreensão folclórica da antropofagia como nome-do-nome de uma mediação de identidade social, a possibilidade de retomar esta mediação está na ambigüidade entre a coisa & a palavra, isto é: antropofágica é a coisa que se conhece & o método de se conhecer. A comida é o prato. Comi-o. Para as gerações da Arte Moderna e o que veio depois o fato de que o resultante cultural era desarmônico e desigual não era um obstáculo, mas um vetor da produção mesmo do conhecimento conhecido.
“Consideravam que a reunião de elementos díspares devia mesmo resultar numa configuração desarmônica; todavia, achavam também que esta mesma desarmonia seria sempre fonte de enriquecimentos e de inovações, porque estimulava ou a renovação, ou a expansão do que já existia.”[11]
“E aí veio a umbanda” – diz Maria Isaura (Comi-a!): fato de que ao mesmo tempo surgirem teoria e religião girando em torno do mesmo núcleo cultural indica que o que se poderia chamar de civilização brasileira.[12] Esta sugestão da autora se aproxima da visão do meu professor que não somente descreve metaforicamente as relações religiosas quase 100 anos depois da Semana de Arte Moderna, mas sugere a justaposição retro-antropofágica entre teoria e religião. Assim a hipótese antropofágica para a sociologia da religião.
A dificuldade de entendimento da religião entre nós está nessa duplicidade ente a coisa e a palavra, o comido e o em que comer que horripilaria a ciência não mastigável fosse cartesiana positivista, marxista ou uma fenomenologia rasa ou funda; O prato. Também as alternativas de análise e a revisão crítica das categorias de análise que movem os estudos de religião temem confundir os modelos interpretativos com os objetos… como se o prato fosse comestível. E é. Comi-o.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.[13]
Assim, os pentecostais comem e foram comidos: reformados e romanos que se comem. Os pentecostais minorizados na escala de poder religioso resistem e apropriam-se do que lhes convém. Recusam o cristianismo inviável porque imposto; tomam aos bocados o Livro e recusam o método histórico crítico; recusam o ritualismo do latim e destemperam línguas estranhas de temperos outros; Assim se canibaliza o cristianimso fatiado em porções possíveis e metabolizado na cultura do conflito. A religião é entre nós ainda esta relação difícil entre a crença imposta e a crença recebida porque comida subvertendo a relação colonizador/(ativo)/colonizado(passivo). Regurgitação. Soluço. Suspiro.
“A religião é o suspiro do ser oprimido, o íntimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo. A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real”.[14]
Mais do que um “nós brasileiros” esta capacidade de resistência poderia ser percebida em outras formatações do “nós latino-americanos” como, por exemplo, na voracidade com que Mariátegui mastiga e engole porções do romantismo europeu, da mística revolucionária dos bolcheviques e a religião indígena e camponesa:
“Para Mariátegui, a luta revolucionária – ou melhor dito, empregando o termo de Miguel de Unamuno que tanto o fascinava – a agonia revolucionária configura um re-encantamento do mundo. Mas, ao mesmo tempo em que é “mística” e “religiosa”, esta luta é profana e secular: a dialética mariateguista tenta superar a oposição costumeira entre fé e ateismo, materialismo e idealismo”.[15]
Também na literatura é possível identificar antropofágicas aproximações, de modo especial na literatura fantástica latino-americana, com especial destaque para a obra de Manuel Scorza que devora a racionalidade mítica dos indígenas em meio às narrativas da história, tornando viável a ‘aceitação’ ou ‘adoção’ do estrato do mágico-mítico-religioso evitando as fraturas que os narradores da tradição indigenista impunham entre o que consideravam superstições indígenas e acontecimentos reais”. [16]
Em Jorge Amado a relação de devorar/ser devorado exercita a intensidade antropofágica no campo mesmo das religiões de matriz africana inviabilizando certo imobilismo interpretativo que se contentaria com a relação nós & outros das tolerâncias cristã:
Jorge Amado dava pouca importância à pretensão desse ou daquele terreiro de ser mais “puro”, mais legítimo ou mais genuíno que os outros. Tratava a todos como igualmente importantes e misturava todas as nações de candomblé. Santos católicos e orixás se confundem no enredo de seus romances na mais fina tradição do sincretismo.[17]
E as festas: religiosas? A presença das narrativas e imagéticas bíblicas nas festas populares brasileiras também desafiam as lógicas discursivas e controladoras das igrejas tradicionais. Numa apropriação laica, não dogmática mas sim performática, as festas populares dialogam com as tradições bíblicas nos espaços híbridos do sagrado e profano e na ambigüidade do calendário religioso latino-americano. Assim nas festas de junho associadas a São João e os cantos de cururu no centro-oeste brasileiro re-interpretam a vida e morte de João Batista mesclando informações bíblicas com elementos da cultura religiosa local[18]
Os usos e abusos antropofágicos na literatura nos permite “lamber a língua” – na música de Adriana Calcanhoto[19]. O mesmo hoje acontece com hinos e salmos das tradições religiosas que são revistos e reinventados para além da modernidade gospell explicitando a piedade quase-nórdica ao balanço quase-axé. E devoram-se corinhos protestantes em cerimônias católico romanas, e se reinventas as novenas e tríduos nas correntes neo-pentecostais que parcelam a fé em suavas prestações. Ninguém é de ninguém. Mas não é trânsito é conflito. Sem deglutição não há religião! Comeu-me!
Recolocar os estudos de religião no campo do conflito exige muito mais do que iluminar a teoria ela mesma, exige recolocar a esforço interpretativo ele mesmo na voracidade da luta de classes.
Contra a Memória fonte do costume.
A experiência pessoal renovada.[20]
São dois movimentos da dialética que se comem ou uma deglutição complexa que revela a abusiva identidade dos opostos (Zizek) que constituem a unidade e a fluidez do fenômeno religioso entre nós:
o primeiro que relaciona a religião a ela mesma: uma heterogeneidade interna, em alguns pontos antagonismos e o outro, seria uma relação, contraditória, da religião com a sociedade como um todo”.[21]
[1] DaMATTA, Roberto, O que faz o brasil, Brasil? 5.ed. Rio de Janeiro: Editora Rocco. 1991, p.55
[2] FREYRE, Gilberto, Assúcar, 1939, in: http://quitandasdeminas.blogspot.com/2010/10/gilberto-freyre-acucar-e-manga.html (acesso em 20/11/2010)
[3] RONDINELLI, Paula, Alimentação e Religião – um estudo antropológico no movimento alternativo, in: http://www.pucsp.br/nures/revista3/3_edicao_alimentacao_religiao.pdf (acesso em 21/11/2010)
[4] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[5] AGNOLIN, Adone, O apetite da antropologia: o sabor antropofágico do saber antropológico – alteridade e identidade no caso tupinambá, São Paulo: Humanitas, 2005
[6] MOTA, Regina, in: http://www.fafich.ufmg.br/manifestoa/pdf/analisemanifestoa (acesso em 17/11/2010)
[7] LÉVI-STRAUSS, Claude. 1955. Tristes Trópicos. Lisboa. Edições 70, apud., AGNOLIN, Adone, O apetite da antropologia
[8] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[9] ANDRADE, Oswald, apud., RODRIGUES FILHO, José Maria, «Cobra Norato», de Raul Bopp:
a celebração da brasilidade e as suas possibilidades midiáticas, in: portal.doc.ua.pt/journals/index.php/formabreve/article/…/193 (acesso em 22/11/2010)
[10] DE QUEIROZ , Maria Isaura Pereira, Identidade Cultural, Identidade Nacional no Brasil, Tempo Social – Rev. Sociologia da USP., S. Paulo, 1(1), 1. sem. 1989, p. 29 in: http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/site/images/stories/edicoes/v011/v1n1a02.pdf (acesso 20/11/2010)
[11] ibid., p.29
[12] ibid., p. 29
[13] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[14] MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2001, p.45
[15] LOWY, Michael. Mística revolucionária: José Carlos Mariátegui e a religião. Estud. av., São Paulo, v. 19, n. 55, Dec. 2005 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142005000300008&lng=en&nrm=iso>. access on 28 Nov. 2010
[16] ESCAJADILLO, Tomás. La narrativa indigenista peruana. Lima: Amaru, 1994. p. 57, apud., ARAO, Lina, Entre culturas: conflitos na literatura heterogênea de Manuel Scorza, in: http://www.letras.ufmg.br/espanhol/Anais/anais_paginas_%201005-1501/Entre%20culturas.pdf (acesso em 28/11/2010)
[17] PRANDI, Reginaldo, Religião e Sincretismo em Jorge Amado, in: http://www.jorgeamado.com.br/professores2/05.pdf (acesso em 28/11/2010)
[18] SOUZA, João Carlos de. O caráter religioso e profano das festas populares: Corumbá, passagem do século XIX para o XX. Rev. Bras. Hist. [online]. 2004, v. 24, n. 48 [cited 2008-12-02], pp. 331-351. Available from: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882004000200014&lng=en&nrm=iso (acesso em 12/11/2010)
[19] Vamos comer Caetano/Vamos devorá-lo/Degluti-lo, mastigá-lo/Vamos lamber a língua
[20] Manifesto Antropofágico, op.cit.,
[21]XAVIER, Vinicius, A Ambivalência da Religião, http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/626721 (acesso em 16/11/2010)