De tudo que já se disse… e um pouco mais.O que não é dito.
As novelas. As músicas. As revistas. Os filmes. Os livros. A procura. A perdição.
“Com a retórica do amor-paixão, constituiu-se não apenas uma forma nova de relações entre os sexos, mas também uma das figuras mais singulares da aventura ocidental moderna”.
Dizem os entendidos – e aqui, procuro a interlocução com os textos escritos por homens – que a invenção social do amor no ocidente é também a mais refinada metáfora de construção das identidades de homens e mulheres. Há uma desigualdade de significação do amor. Não se trata de um amor melhor ou pior, mas sim uma distribuição desigual de informação e formação, vivência e expressão amorosa: qualidade, quantidade, intensidade, profundidade, aderência, permanência, risco, tontura e medo, prazer e dor.
Encurraladas na sensibilidade sem escolha e assimiladas num imaginário caótico e irracional, as culturas modernas formataram o feminino como uma predisposição naturalpara o amor e seus afazeres.
“As visões tradicionais da mulher como ser de excesso e de desmedida, assim como as ideologias modernas que se recusam a considerar a mulher como um indivíduo autônomo vivendo para e por si mesmo, contribuíram para conjugar estreitamente identidade feminina e vocação para o amor”.
As mediações da fabricação do amor são muitas. De modo especial, a literatura tem sido um dos cenários privilegiados de produção de metáforas, símbolos, imagens e avessos do mito ocidental do amor romântico.
A teologia, de modo eficiente e sistemático, tem sido um dos discursos que, ao longo dos séculos, vem contribuindo no reforço do amor como vocação das mulheres. Ainda hoje se sente a veemência da construção cristã dos Padres da Igreja sobre o assunto:
1 A feminização da carne;
2 A estetização da feminilidade, a associação da mulher com o cosmético;
3 A condenação ontológica da esfera das representações e de tudo que é prazeroso ligado ao corpo.
Estes discursos e estas tradições teológicas tiveram – e continuam tendo – grande influência nas artes de um modo geral e, em particular, na literatura e na poética, sendo elemento vital de definição dos gêneros sexuais e também de formatação da linguagem religiosa como lugar privilegiado de distribuição desigual do amor em relação a homens e mulheres.
Neste texto quero criar um espaço de aproximação entre a poesia e a hermenêutica bíblica como uma possibilidade de desvendar os comprometimentos e as armadilhas da linguagem religiosa anti-feminista que participa no reforço da miséria amorosa em que nos encontramos – homens e mulheres.
Junto dois amores: Poesia e Bíblia. João Cabral de Melo Neto – poeta brasileiro – e alguns profetas da Bíblia Hebraica.
Os Três Mal-Amados
A poesia de João Cabral de Melo Neto é conhecida pelo rigoroso trabalho com a palavra. Rigor. Logicidade gramatical. Apuro formal. “A Língua torna-se essencial à meditação – pois se transforma em matéria do poema”. Elementos sociais e políticos estão presentes sem que o poeta se distancie do trabalho de composição.
No poema mais conhecido de Cabral – Morte e Vida Severina – o lavrador, o cortador de cana, o migrante, a população do mangue, o sem-terra e um menino pobre são personagens de um drama cotidiano mas também são expressões do drama da linguagem e suas metáforas. As palavras, na poesia de João Cabral, têm a exata tarefa de denunciar as fraudes de encobrimento da linguagem e seus compromissos no ocultamento das realidades de limite da experiência humana.
Se para alguns críticos o tema do amor e do erotismo são raros na poesia de João Cabral é porque o poeta não se deixa ler na obviedade dos temas, mas exige uma leitura disposta ao enfrentamento de um léxico próprio e de identidades rigorosamente construídas. Assim, a poesia de João Cabral identifica como femininas a terra, os mangues, a chuva, as colinas e as montanhas enquanto o Estado de Pernambuco, o sertão, o mandacaru são masculinos.
Pernambuco, tão masculino,
que agrediu tudo, de menino,
é capaz das frutas mais fêmeas
e da femeeza mais sedenta.
(As Frutas de Pernambuco)
João Cabral estrutura seu universo em opostos não antagônicos: feminino e masculino. Tudo tem sexo. Tudo tem identidade construída na linguagem aonde gênero é um vestígio fundamental da composição. Percebe-se claramente a função matafórica do gênero como“atitude mitológica de uma comunidade lingüística”.
O caráter de construção da identidade de gênero se evidencia na poesia de João Cabral quando o rigor do trabalho poético permite a subversão das identidades, isto é “o feminino se vê às vezes violentamente transformado em masculino, ou vice-versa”.
onde o Recife secreto
é a Recife, muda o sexo.
(O Engenho Moreno – A Escola das Facas)
O poema Os Três Mal-Amados (1943) é um dos raros poemas de João Cabral em que a relação homem-mulher vai ser material de composição poética. Poema pouco conhecido que tem como sub-título uma referência a um poema de Carlos Drummond de Andrade:
“João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili …”
Este vão ser os três mal-amados: João, Raimundo e Joaquim. A partir dos três, João Cabral vai compor três falas sobre o amor. O amor de homem. Ou de três possíveis falas mal-amadas que podem fazer entender o estranho Rondó de amores não correspondidos. As mulheres não falam. Elas são de quem se fala e, ao mesmo tempo, o léxico feminino do amor com que João Cabral vai fazer com que os homens falem do amor.
As mulheres são ao mesmo tempo tema e atitude mitológica.
O amor de João:
João olha Teresa. Ela está perto – a poucos centímetros – e, ao mesmo tempo, longe – muitos quilômetros. O sentimento de João é de distância e afastamento. Sonho. João se pergunta se há intimidade possível: Teresa aqui está, ao alcance de minha mão, de minha conversa. Por que entretanto me sinto sem direitos fora daquele mar? Ignorante dos gestos e palavras?
João dúvida do sonho: a pedra de um sonho participa do mundo que povoa? E a mulher-Teresa do sonho – distraída e distante? Há algum sinal que a faça compreender termos sido, juntos, peixes de um mesmo mar?
Estranhamento. Lugar inacessível. A mulher faz parte de um universo privado, fechado na lembrança de João. As imagens de água, mar, umidade, peixe, copo de água… dão conta da fluidez, da inconsistência e do profundo sentimento de solidão. Posso esperar que este oceano nos seja comum?
Incomoda esta liberdade de Teresa de estar e não estar. Incomoda a permanência não-permanente, impermeável. João tem ciúme dos refluxos e marés do oceano de Teresa; João quer ser junto no mesmo mar e não se conforma em ignorar os gestos e as palavras.
João – mal-amado. Teresa, a indefinição e o afastamento: um vulto em outro continente que se vê através de um telescópio.
O amor de Raimundo:
A Maria de Raimundo é praia freqüentada de gestos indispensáveis e simplificados. Todos os segredos foram abolidos. Definindo Maria como praia, Raimundo se diz exato e nítido, enquanto ela vai ser o sem mistério e sem profundeza.
Raimundo é mal-amado porque a mulher a que se refere é fonte previsível, que se pode examinar e controlar. O corpo de Maria é um jogo de armar, conhecido… uma prancha anatômica.
Maria é caminho cimentado, um organismo sólido e prático, preso à terra com raízes. Diferente da Teresa de João, a Maria de Raimundo é sonho possível, aquilo de que se dispõe e se submete a meu tempo e minha vontade, que alcançarei com a mão.
A mulher é garrafa de aguardente – correta e explorável – e jornal. Livro. Susto cuidadosamente oculto.
Raimundo é mal-amado por que sua amada é uma folha em branco aonde Raimundo vai construir presenças precisas e inalteráveis, opostas a minha fuga. Maria é um sistema estabelecido, o fim onde chegar. Esta extrema lucidez – necessária, corriqueira e ordinária que pode dar um modo novo e completo de ver uma flor, de ler um verso.
É que de Maria se sabe tudo. Ela está tão presente e tão misturada ao óbvio de Raimundo que ele já não pode ver Maria em movimento: ele é barreira oposta ao rio impreciso que corre em regiões de alguma parte de nós mesmos.
É possível continuar amando e sendo amado pelo que é sem mistério e sem profundeza? Maria é a mulher presente, pressentida, presumida e precisa. Uma mulher sem cantos, sem detalhes desconhecidos. Óbvia demais.
O amor de Joaquim:
Joaquim não fala de uma mulher: nem ausente nem presente. Joaquim fala do amor e o amor de Joaquim tem uma fome insuperável e uma boca escancarada a devorar o que encontra pela frente.
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato… minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu… minhas roupas, meus lenços, minhas camisas… o número de meu sapatos…O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos. O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas…minhas aspirinas…O amor comeu todos os meus livros de poesia. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos. Faminto, o amor devorou… pente, navalhas, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro… O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos… comeu o pão de propósito escondido. Bebeu a lágrima dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água. O amor roeu minha infância… O amor comeu meu Estado e minha cidade… Comeu o cheiro de cana cortada… comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio… as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala. O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
O amor come, bebe, rói. Não há nada que o amor não devore. O mais rotineiro, o que ainda não é e o que já foi. Tudo é mastigado pelo amor que engole porções inteiras do homem todo. Devorado, Joaquim se limita a listar os bocados dele mesmo.
Não há mulher alguma. É o amor. É a mulher-amor-devorador. Gula que não tem nome. Só fome. Irresistível, o amor faminto provoca em Joaquim uma vertigem própria das listas. Há uma ordem. Uma seqüência que vai do mais íntimo ao mais escancarado. Do público ao privado sem limites.
A lista é feita num ritmo prazeroso. Dor e prazer de ser devorado de modo tão implacável. Diferente de João e de Raimundo que tem as mulheres como a outra – no sonho ou na mesmice – Joaquim é mal-amado porque não subsiste, não permanece na relação canibal do amor-mulher.
Ela é só totalmente essa fome que não se acalma. Quer mais. Quer tudo. Um amor sem disposição para a paz.
As metáforas do amor mal-amado
No poema de João Cabral as mulheres assumem as atitudes mitológicas do amor: totalmente ausente – Teresa; totalmente presente – Maria; totalmente total – a Mulher, Uma.
A forma do poema intercala as falas de João/Raimundo/Joaquim. As falas são simultâneas, sucessivas, monólogos sobre-postos. Os três homens não se escutam, não se falam. Como se alternassem possibilidades. As mulheres são o léxico, corpos que exercitam a língua masculina na fala do amor. O mal-estar está na linguagem, no falo masculino que produz um discurso mal-amado.
Metaforizadas, as mulheres acolhem suas identidades produzidas pelos homens mal-amados e, silenciosas elas se oferecem como sinônimos para o amor impossível, o amor domesticado e o amor devorador. Grudadas à fala dos homens elas deixam de se mover na ciranda proposta por Drummond: elas deixam de amar (Teresa amava Raimundo, Maria amava Joaquim, Lili…) porque se tornam prisioneiras das experiências masculinas.
A Mulher se torna sujeito do texto: João Cabral evita reproduzir vocabularmente a mulher como objeto de amor, para explicitá-la como gramática própria. Denúncia assim os abusos da fala sobre o amor que metaforiza as mulheres nas possibilidades do amor-mal-amado-masculino.
A linguagem do amor mal-amado desconhece a alteridade da mulher: ela passa a significar a que tem menos, a quem falta algo, a que não sabe querer, a que deseja desmesuradamente. “A mulher é faltante, segundo a ordem fálica.” A mulher participa da linguagem amorosa como vítima (Maria), como sedutora ou como impossibilidade (Teresa).
O poema Os Três Mal-Amados denuncia a prisão da mulher no discurso masculino, denuncia a permanência da mulher como “o outro do discurso” , isto é, objeto dos discursos produzidos pelos homens.
“Que o corpo feminino deva permanecer intocável, ou porque representa o Mal, ou porque deve permanecer puríssimo, são dois modos equivalentes de fazer com que ele não se revele…”
Assim entre assexuadas ou corriqueiras (como as esposas/mães) o cristianismo disputa com o mito do amor romântico no ocidente o controle dos discursos sobre as mulheres. Permanecer numa posição inacessível continua sendo uma das tarefas que a cultura ocidental cristã designa para as mulheres. Presas nos discursos do amor (materno, romântico, aos pobres, ao sagrado, à família, etc) ou nos modelos da sensualidade devoradora as mulheres são mantidas numa passividade necessária para a manutenção da hegemonia masculina.
A crítica dos discursos de amor em suas variações e seus usos na literatura, nos meios de comunicação de massa (no imaginário musical, tele-novelístico e da propaganda, entre outros) coloca uma tarefa de interlocução e de ampliação para a hermenêutica feminista da libertação na América Latina.
Esta habilidade crítica e criadora capaz de denunciar “atitudes mitológicas de uma comunidade lingüística” tem sido um dos desafios que as teologias feministas vêm desenvolvendo em relação ao texto bíblico – entendido como uma das comunidades lingüísticas mais eficientes na criação de metáforas aprisionadoras para as mulheres e também para os homens mal-amados.
Estes dilemas e questões não podem ser enfrentados no suposto campo isolado da teologia ou das ciências bíblicas. Este isolamento metodológico tem sido um dos modos de sustentação da invisibilidade da fabricação das identidades de gênero no âmbito do fenômeno religioso.
A interlocução com a literatura, a antropologia, a economia, a psicologia – entre outras disciplinas – exige da hermenêutica bíblica transparência, legibilidade e um desejo de ser realmente compreendida fora dos limites conhecidos e previsíveis da teologia e das igrejas.
Assumir uma conversa sobre as relações sociais de gênero e os discursos, práticas, rituais, procedimentos e coisas do amor entre homem e mulher precisa necessariamente de linguagens outras onde a psicologia da composição seja mais aparente e menos controlada do que o léxico e o vocabulário consensual da hermenêutica bíblica entre nós na América Latina.