Cala boca já morreu! Quem manda na(s) minha(s) boca(s) sou eu! by Nancy Cardoso Pereira

** preparando um curso de exegese/hermenêutica feminista no DABAR/Cebi (nancy) **

O texto me manda ficar quieta: eu e todas nós. Em silêncio eu deveria aprender e com toda toda  toda submissão.  O texto não permite que eu ensine nem que eu exerça autoridade (1 Timóteo 2, 11 e 12). Eu já tentei dizer e escrever de novo o texto de Gálatas 3, 28, já repeti mil vezes que não há grego nem judeu, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher… mas o texto se insinua por teologias antiqüíssimas, exegeses refinadíssimas, hermenêuticas suspeitosíssimas e continua calando a minha boca e não permitindo que eu ensine. O texto deixa que eu profetize… mas com a cabeça coberta (1 Coríntios 11): valei-me traduções, verbos e gregos todos! Mas não adianta: o texto continua me mandando calar nas igrejas porque não me é permitido falar. Que eu seja submissa como a lei determina (1 Coríntios 11, 34).  Do que adianta lembrar Jesus e suas conversas com mulheres, as mulheres testemunhas da ressurreição, as igrejas nas casas das mulheres… tanto esforço, tanta devoção, tanto mestrado e doutorado, tantos livros e textos, tantos cursos e décadas de superação da violência contra a mulher. O texto continua escondido nas dobras do poder dos homens, senhores da religião. Eu devo ser respeitável, temperante, fiel em tudo… e não devo maldizer (1 Timóteo 3,11) mesmo que a teologia que eu faço deva ser rejeitada como fábula profana de velha caduca (1 Timóteo 4, 7). Devo ser decente, modesta, de bom senso sem cabeleiras exageradas e sem vestidos escandalosos (1 Timoteo 2, 9) . E devo ser mãe( 1 Timoteo, 2, 15): aí eu me salvo!

Mas…quem disse que eu quero me salvar ?

Disse Jesus? Quem quiser andar comigo negue os ídolos, assuma o seu corpo e siga-me! Quem quiser salvar sua vida, vai perdë-la! E quem não tem medo de se perder, eis a vida!(Mateus 16, 24 e 25)

 Erotizar a teologia para enfrentar o deus-mercado:

Alienação e fetichismo não são invenções do capitalismo e do patriarcalismo: precisam ser entendidos no âmbito da fabricação dos mitos, dos cultos, dos encantamentos, dos rituais mágicos de manutenção de ambos, seus deuses (capital/paideus) e seus truques. A religião sempre foi também expressão e reprodução de situações econômicas e de relações sociais de poder. Nesta dobradiça entre o discurso econômico e sensual e o discurso religioso e amoroso é que a teologia feminista percebe, não um conjunto de comparações ou recursos estilísticos, e sim um espaço de análise e crítica fundamental das relações entre capital-mercado-patriarcalismo.

De igual modo se mostra necessário identificar e criticar o dualismo imagético do pensamento da teologia da libertação e seus recursos ao marxismo dividido entre as duas senhoras desnecessárias (Moral e Religião) e as representações do imaginário feminino da grande sedutora nas relações de consumo. Rever os imaginários – antigos e novos – se faz necessário na busca de um metabolismo econômico habitável e igualitário. Suspeitar e desconstruir estas redes de imaginário que alimentam alienação e fetiche do capital e do patriarcado, se articulam de modo necessário com o desvelamento das redes institucionais de regulação das economias mundiais (nunca! de auto-regulamentação) e sua aparência metafísica.

A estetização da mercadoria confere ares de divindade ao dinheiro e ao mercado, garantindo fundamento metafísico para a cultura burguesa e seus rituais e cultos que demandam a produção de legitimação de si mesma e de constante reificação das necessidades dos dominados. Esta produção estética, que se apodera do corpo, sua capacidade criativa, inventiva, sensual e erótica, vem cooptando as teologias cristãs, suas exegeses e hermenêuticas, seus sacrifícios e mecanismos de postergação como linguagem missionária da suposta inexistência do conflito de classe e da inevitabilidade do mercado como realização plena da vida humana. Estas teologias cristãs fundamentam e legitimam o silëncio e a invisibilidade de quem não tem e não usa o falo como deus quer, da cor que deus quer, na posição que deus quer.

A des-explicação ética do feminismo se dá na insistência de que o pessoal é político, o cotidiano é histórico, a reprodução é produtiva, a produção é distributiva, o consumo é criativo. Esta reversabilidade dos sentidos e suas relações confrontam qualquer modelo político metafísico de alienação das relações cotidianas e fetichização de desejos e necessidades. Não há nenhum mecanismo fora da história, no passado ou no futuro, capaz de concretizar relações igualitárias.

Ao insistir em trabalhar com o corpo, a vida cotidiana e suas relações como lugar vital de construção e circulação de poder e significados sociais e teológicos[1], a teologia feminista quer inviabilizar a mercantilização dos corpos e a estetização da mercadoria. Neste sentido, e de modo especial, a Bíblia e a teologia deixam de ser uma identidade auto-referenciada nos métodos sociológicos e histórico-críticos e passam a conviver com a vertigem da pluralidade dos paradigmas: classe, gênero, etnia, ecologia. São estas simultaneidades vivenciais e suas diferenças irredutíveis que tornam impossível qualquer tentativa idolátrica de mercantilização do corpo e estetização da mercadoria.

Visibilizar o caráter hermenêutico das relações políticas e econômicas e desvendar os mecanismos de construção de ídolos e rituais auto-reguladores, exigem uma teologia capaz de desistir de qualquer mão invisível auto-reguladora (seja ela dogmática ou exegética) para se inscrever definitivamente no campo da criação cultural, estética de memórias, hermenêutica de libertação. Deus conosco: tua medida de gente. Atreve-te:

 

Os corpos, frente a frente como astros ferozes,

são feitos da mesma substância dos sóis.

O que chamamos amor ou morte, liberdade

ou destino,

não se chama catástrofe, não se chama

Hecatombe?

Onde estão as fronteiras entre espasmo e terremoto,

erupção e coabitação?

A imaginação é a espora do desejo,

seu reino é inesgotável e infinito como

o fastio, seu contrário e seu gêmeo.

Atreve-te:

sê o arco e a flecha, a corda e o ai.

O sonho é explosivo.

Estala. Volta a ser sol[2].


Esporas do desejo: atrever-se a ler a Bíblia

            Escolho meus materiais de imaginação e desejo sem precisar me explicar demais: trabalho com os estalidos da literatura bíblica não mais como destino ou necessidade, mas desconhecendo qualquer fronteira entre espasmo e terremoto no corpo da minha história pessoal e no corpo sub-evangelizado dessa América Latina. São narrativas estranhas e próximas: dóceis prisioneiras dos altares e das academias de teologia; selvagens e míticas no uso oscilante e mágico da leitura popular. Refaço a leitura e invento contrários: mastigo as narrativas fundantes com dentes de desejos explosivos e recuso toda forma educada de participação no metabolismo ocidental, burguês e cristão das imagens. Quando o verbo se faz mercadoria e se perpetua entre nós… é preciso tomá-lo de novo como carne crua, negar seu valor de troca, enfrentar seu valor de imagem e grudá-lo de novo na pele suada dos homens e mulheres pobres: dolorosos e gozosos, benditos e malditos. Iluminada pela delicadíssima brutalidade da disputa pelos corpos e seus desejos, eu leio no feminino plural.

Os pequenos textos que se seguem são ao mesmo tempo rascunho de um programa inacabado, de um tratado teológico que não quer ser nem tratado nem só teológico. São trajetórias cultivadas em textos de Ribla e assessorias e, reunidas assim, só mostram o seu avesso. O que eu queria mesmo era fazer uma canção enquanto anunciamos: eis o tempo da revolução!

 

1- Por uma estética do desejo sem culpa (Gênesis 3)[3]:

Eva, a primeira. A mulher de grandes olhos abertos que viu para além do que a divindade e o homem haviam acertado entre si. Eva, senhora da menina de seus olhos. Vê e deseja. A árvore. O fruto. Entre o olhar e o desejo ela cria o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança de mão e boca. Puro erotismo modelando a carne e projetando alternativas. A árvore? Boa de se comer! Agradável… agradável aos olhos; gostosa na boca se adivinhava. Desejável para dar entendimento. O corpo que se projeta nos gestos, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, agarrar com as mãos e colocar na boca. Ele come o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nus. Examinados e acareados, Eva e o homem se dividem na culpa e se danam na moral que dita a lei sem os arrepios do desejo. A palavra criadora subordina o desejo inventivo. O trabalho criador amaldiçoa o corpo lúdico e curioso. Houve medo e castigo, o primeiro último dia da criação.

 

2-  Por uma estética do trabalho e seus desejos (Cântico dos Cânticos):

A Amante. A mulher de grandes boca e pernas abertas que tomou posse para além do que a divindade e os homens haviam acertado entre si. Ela, senhora da menina dos seus olhos, sua boca, seus seios, suas mãos, seu sexo, seu trabalho, seu amor. Vive e deseja. O homem. A terra. O fruto. Entre o olhar e o desejo ela cria seu próprio corpo, inventa mais de uma fome e se lança na contramão dos mecanismos de controle da terra, da vinha, da cidade, do corpo de mulher, da família. Puro erotismo modelando a carne e projetando alternativas. O homem? Bom de se comer! Agradável aos olhos: imagem de desejar se deixar querer. Gostoso na boca o fruto do trabalho libertado se adivinhava na pele do pastor/homem amado. Gozar na ponta da língua: poesia e orgasmo, sombra do desejo que inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, capinar, lavrar, podar, colher, carregar, juntar, separar… trabalhar o mundo e suas forças como quem se deita com alguém. Ele come o que o desejo/trabalho dela criou. Abrem-se as pernas. Estão nús. Extasiados e cansados, a Amante e o amante dividem o sono e se aconchegam na cama da mãe e seus arrepios de desejo. A palavra criadora se apaixona pelo desejo inventivo. O trabalho criador abençoa o corpo lúdico e curioso. Houve gozo e prazer, um outro dia de trabalho e criação da criação.

 

 3- Por uma estética da propriedade e sua erótica (Rute):

Rute, a outra. A mulher de grandes ombros curvados que desejou para além do que a divindade e os homens haviam acertado entre si. Rute, menina dos olhos da senhora: Noemi. Vê e trabalha. A terra. Os restos. Entre a produção e a sobra ela cria o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança de corpo inteiro na vinha, na vida, do homem senhor da terra. Puro erotismo que umedece a carne e se projeta num vestido de alternativas. O homem? De idade. Bom de se deixar comer. A terra. Agradável aos olhos. Ela se faz gostosa, na boca do homem se adivinhava. O desejo que constrói entendimento. O corpo que se projeta nos gestos, festa de desejo, inventa eroticamente o mundo, a propriedade, o pão e a família. Ele come o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nús. Amedrontados e excitados. Rute se despede do homem antes que seja manhã. Ele enfrenta culpa e moral da lei com os arrepios do desejo. O desejo criador subordina a lei sem paixão. O trabalho braçal abençoa a terra no abraço das mulheres. Houve terra e criança naquele dia de recriação.

 

4- Por uma estética distributiva e seu prazeres (2 Reis 4, 1 a 7):

Viúva, a última. A mulher de grande boca aberta que desejou para além do que a divindade, o marido e o credor haviam acertado entre si. A viúva, mãe dos meninos de seus olhos. Vê e grita. Um filho. O outro. Entre a dívida e a escravidão ela fabrica o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança ávida e faminta sobre potes e vasilhas. Puro erotismo modelando as horas e projetando alternativas. O óleo? Bom de ver escorrer. Maravilhoso… de um pote ao outro; um milagre na vida se adivinhava. Milagre para dar entendimento. O corpo que se movimenta entre as vizinhas e suas vasilhas, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo, a vida dos filhos. Produz conhecimento. Esticar as mãos e encontrar outras, encher a vida de sentido e azeite. Os meninos comem o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão salvos. Libertados e cuidados, ela e os filhos aprendem a consumir milagres distribuídos de mão em mão sem os arrepios da lei. A palavra criadora encontra o trabalho comunitário. O desejo inventivo abençoa o corpo cansado e glorioso. Houve fartura e sossego, aquele dia de salvação.

 

5- Por relações suspeitosas e sedutoras de conhecimento (Provérbios 6, 7 e 8)

Sentada de pernas abertas na porta de sua casa, a Sabedoria assovia com sua boca de mel e chama com suas palavras temperadas de desejo: ela é ao mesmo tempo a boca e o fruto, quem come e o que é comido, conhecer de ir se conhecendo. Com os olhos ela devora e prende. Com os seios em fogo, as vestes incendiadas e os pés em brasas ela conjura palavras e põe do avesso os mandamentos antes que eles virem pedra. Ela discerne, pensa, conhece, estuda, pesquisa como mulher apaixonada que busca o amante e quando o encontra: os olhos se abrem. As línguas se encontram. Um dentro da outra. Apaixonada e inquieta, seu corpo não pára em casa: ora está nas ruas, ora nas praças espreitando por todos os cantos. O desejo dela faz o mundo girar: ela tem prazer no mundo habitável e é deliciosa com quem busca saboroso saber. Houve prazer e conhecimento desde antes das palavras mais antigas.

 

            6- Por relações reprodutivas libertadoras e o prazer de decidir (Lucas 2 e 4)[4]:

Maria, a Virgem. Mulher de grandes ouvidos abertos que ouviu para além do que o deus, o pai e o homem haviam acertado entre si. Maria, senhora do labirinto de ouvir. Ouve e deseja. O filho. O fruto. Entre o ouvir e o desejo ela cria o seu próprio corpo, inventa espaço pra mais alguém e se lança de mãe e boca:

O Espírito de Deus está sobre mim… porque eu me ungi dizendo: sim! para anunciar as boas-novas às mulheres, para libertar as sem escolhas, sarar as abortadas e proclamar os tempos de decisão (entre Isaías e Lucas).

 

Puro erotismo modelando o útero e projetando alternativas. O filho? Bom de se desejar. Agradável… volumoso nas entranhas se adivinhava. Desejável para dar entendimento. O corpo que se projeta no ventre, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, aninhar a criança e oferecer o peito. Ele mama o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nus. Bem-aventurada e saciado, Maria e o filho se juntam nos arrepios do evangelho com desejo. A palavra criadora convida o desejo inventivo de pescadores e prostitutas. O trabalho reprodutor abençoa o corpo lúdico e sofrido. Houve cruz e castigo, o último primeiro dia de salvação.

[1] vv.aa., Pautas para uma hermenêutica feminista da libertação, Ribla 25, Vozes, Petrópolis, pp.5-10

[2] Octavio Paz, Libertad bajo palabra, 1949

[3] JARSCHEL, Haidi, Ventre, casa, terraEspaços de historiografia sexuada

[4]

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