A fé cristã e suas diversas expressões, inclusive as expressões teológicas, são fruto dos momentos, da história, da construção e dos jeitos que um povo vive e de como essa vivência é determinada pela presença ou ausência de influências, forças e movimentos, assim como as formas como encaramos, lembramos, esquecemos ou omitimos partes de nós mesmos nessas construções históricas.
Um desafio à vivência da fé cristã, uma fé que seja fiel ao Evangelho de Jesus Cristo tem que lidar com uma questão quase nunca lembrada por todos nós, a saber, a questão do negro e da negra na sociedade brasileira. Temos uma dívida histórica com os negros e negras de nosso país. Arrancados da África à força, africanos e africanas vieram para o Brasil como vítimas de um sistema que fazia deles-nós escravos. Escravos por muito tempo, escravos dos Portugueses, escravos dos brancos, escravos dos brasileiros. Desde a lei Áurea, promulgada para aliviar muito mais questões financeiras dos senhores feudais do que os escravos, e que ao fim e ao cabo não trouxe nenhum benefício estrutural para a vida dos negros e negras de nosso país, essa parte-todo fundante de nossa sociedade e que forma a nervura e o centro do que e como somos, tem sido vítima de um esquecimento histórico, abandono sistêmico e devorador que os exclui violentamente das esferas econômicas, sociais e de poder da nossa sociedade e os lança em situações de abandono, exclusão e morte. Como os movimentos negros tem repetido a exaustão, o negro foi tirado da senzala e colocado na favela.
Entretanto, não podemos falar que nós brasileiros somos racistas não é? Quem assumiria ser racista? A princípio ninguém! Somos o país do racismo cordial, onde o racismo é real, violento e impiedoso mas se reveste de uma aparência sã, bondosa, por não ser nitidamente ou aparentemente violento. O nosso racismo, sim porque somos todos racistas, está ao mesmo tempo escondido e explicitamente claro por exemplo nas milhares de piadas que ouvimos e criamos e disseminamos diariamente em nosso trabalho, nas ruas, na televisão e especialmente dentro de casa. Piadas que associam os negros com macacos, com escuridão, com sujeira, com mau cheiro, com roubo, com presos, com pecado, com morte, sexo selvagem, com pobreza e com coisas pérfidas, erradas. Se não vejamos: se alguém fez algo de errado logo se diz “é preto mesmo”. Ou então “Preto, se não defeca na entrada defeca na saída”. Ou ainda “Amanhã é dia de branco”, como se os negros fossem vagabundos e não trabalhassem. E mais, se é ladrão com certeza é preto, se é negro andando sozinho quase com certeza é ladrão ou pelo menos não será digno de confiança. Como vou confiar minha filha a um negro? Como vou receber em casa, essa menina preta? Mas não apra por ai: se é pobre é preto, se é preto com certeza é pobre. E as coisas não ficam melhores para as mulheres negras vitimizadas muitas vezes duplamente, pelos brancos e pelos próprios homens negros. Elas são feitas objeto sexuais por causa de seu corpo feito de curvas mais acentuadas e nada além do que corpo é salientado. O que anda comumente no nosso imaginário? Quais são os lugares das negras? Crescemos todos vendo negras como serviçais da novela da Globo, mudas, ou vendo Tia Anastácia relegada à cozinha e ao cuidado da casa e das pessoas do Sítio do Pica Pau Amarelo.
Cabelo ruim, beiçudos, malcheirosos, os melhores negros para os brancos tornam-se no máximo “negros de alma branca”. Quem nunca ouviu seu pai, seu irmão, seu amigo, contar uma piada de negro em casa para a alegria e gargalhada de todos? Quem já não passou horas em meio a churrascos de amigos ou almoços de família disputando a piada mais engraçada que achincalhava a vida, a moral, o corpo e a dignidade dos negros? Nossa cultura nos fez e faz crescer ouvindo piadas não menos diabólicas, brincadeiras racistas que moldam e limitam nosso olhar, nosso perceber, nosso sentir, nossos limites e fazem com que a violência racial não apareça claramente mas faça com que a realidade triste de nosso país se esconda por trás de uma violência truculenta e institucionalizada. Uma vez, ouvindo uma conversa entre o negro Rev. Leontino Faria dos Santos com o teólogo norte-americano negro James Cone, que criou a teologia negra nos Estados Unidos, o Rev. Leontino disse que o racismo brasileiro é pior do que o norte-americano exatamente por causa do cordialismo brasileiro que esconde, que nega e mascara o preconceito brasileiro.
Não é sem razão que a maioria da população de presos é de negros e mulatos e de pretos quase todos pretos como diz a canção de Gil e Caetano. A maioria da população brasileira hoje é feita de pardos, negros, mulatos e pretos, todos pretos. Mas o racismo também é internalizado. Mas sempre foi governada por brancos todos eles brancos que se acham nem um pouco pretos. Na Bahia, o estado que tem 80% de sua população feita de negros, nunca houve ali um governador negro. Uma vasta maioria dos negros e negras de nosso país moram nas favelas, não têm acesso à educação e ao mercado de trabalho e são colocados à margem da sociedade. São os negros e negras que “nos assustam” nas ruas e nos faróis da cidade e nos fazem achar que o problema está na cor da pele e não na injusta distribuição de renda e no histórico descaso e abandono com o esse nosso povo. Toda essa estrutura velada de exclusão é baseada na pigmentação da pele, como se isso fosse capaz de fazer alguém melhor ou pior.
Mas o que isso tem a ver com teologia, isto é, com um jeito de se falar de Deus? Leia “Preto de Alma Branca” – É preciso Conversão