Pergunte a algum negro se ele ou ela nunca sofreu racismo? Um dos pastores que muito influenciou minha vida ministerial foi o Reverendo Conheço
E aqui desafio os irmãos a perguntarem ao pastor de vocês, o reverendo Leontino Farias dos Santos, citado aqui no artigo anterior. Ele é testemunha viva das tantas piadas contadas para ele mesmo por colegas de ministério acerca de pretos, do caráter corrompido e duvidoso dos negros. Ele é testemunha e vítima do quanto ele sofreu por ser nordestino e negro nessa cidade racista que é São Paulo, onde sempre ouvi dizer que esses nordestinos é que fazem a sujeira na cidade. Ele é testemunha e vítima de seus colegas de ministério e membros de igreja que brincando, diziam a ele que onde ele chegava tudo escurecia, ou então que ele era preto mas era muito abençoado. Ou ainda, que era um preto de alma branca. Não somente esse homem mas tantos outros pastores e presbíteros e diáconos e diaconisas e membros de nossas igrejas levam guardados na memória da pele a exclusão de um país que parece fingir que os ama.
Pois foi esse pastor negro, assim como tantos outros em nosso país que deu um rosto negro à nossa fé. O rev. Leontino é exemplo de luta para todos nós. Devido ao seu trabalho intenso e de longa data, tantas vezes feitos na solidão do sertão, desde sua infância pobre e de fome no Nordeste brasileiro, esse homem foi o primeiro negro e nordestino eleito como presidente da Assembléia Geral da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. Mais do que isso, a história do Rev. Leontino nos mostra o engajamento, a luta por uma vida de fé mais justa e menos racista. Ele lutou nos organismos evangélicos de combate ao racismo, como o CENACORA; em sua tese de mestrado analisou criticamente o material racista da APEC que associava a noção de pecado com negritude. Ele fez e tem feito seu trabalho de profeta que clama no deserto. Mas é preciso ouvirmos sua voz. Como o discurso histórico que ele fez na Assembléia Geral da IPIB intitulado “Que a serpente não decida por nós”, ele dizia que nós não poderíamos deixar que a serpente nos iludisse com um evangelho fácil, que nos levasse por caminhos que abandonassem temas difíceis mas necessários da fé que precisa e deve ser uma fé brasileira. Que precisavamos nos converter ao Evangelho de Jesus Cristo, negro revolucionário que mudou a história do mundo e da nossa vida. Quando digo negro, não tento simplesmente mudar a pigmentação da pele de Jesus pela mera troca de cor da pele mas sim relacionar o Jesus sempre retratado nos filmes de Hollywood como louro e de olhos claros, com as causas e sofrimento e luta e resistência do negro e negra brasileiros.
E então precisamos nos perguntar: Quando será que teremos uma mulher negra como presidente de uma igreja evangélica?
Confesso que me converti novamente em agosto de 2004 em Salvador, BA. Conheci um Brasil negro que nunca tinha reparado, percebido, e novamente, não sem razão. Cresci branco, quase todo branco, aprendendo a ser um racista cordial. Mas em agosto me converti mais uma vez ao Evangelho de Jesus Cristo e à vida ampliada e abundante que ele me oferece e que eu tenho que cavucar para descobrir. Cavucar na cultura de meu país e entre o meu povo. Morei por um mês no bairro da Liberdade, um bairro de Salvador com 300 mil habitantes quase que exclusivamente negros e negras. O bairro da Liberdade é a maior comunidade de negros fora da África. Um lugar que para brancos seria sinal de violência e sujeira pelas ruas. Pois não foi isso que encontrei ali. Ao contrário encontrei ali um lugar feito por um povo acolhedor, extremamente bonito, amplamente seguro e limpo. Novamente meus pré-conceitos que aprendi dentro de casa, na escola, na igreja e na sociedade foram desafiados. Senti vergonha, tristeza e uma profunda angústia tomou conta do meu coração. Quando fui para o mercado Modelo, então ali Deus me visitou. Poucos anos atrás a cidade finalmente abriu a parte de baixo do mercado que hoje vende quase tudo no centro da cidade baixa, ao lado do belíssimo elevador Lacerda. Quando desci os degraus que me levaram até onde os negros eram colocados antes de serem vendidos, fui tomado por uma náusea, um estranhamento, uma sensação maior ainda de medo, de vergonha, de injustiça como poucas vezes havia sentido em minha vida. Ali, naquele lugar, sem luz ou janela, os negros eram jogados e tinham que esperar com água acima da cintura até que fossem chamados e untados com óleo para serem comercializados na parte de cima. Quis orar mas não consegui. Quis pedir perdão a Deus por esse holocausto brasileiro mas nada consegui falar. Sem saber me vi ajoelhado, ouvindo os clamores, as orações aos orixás, os gritos de resistência e luta que saíam do peito e da alma de homens, mulheres e crianças que tiveram suas vidas confiscadas e destruídas em favor de brancos gananciosos, desumanos e brasileiros. Ali meus irmãos e irmãs, ali me converti. Um Deus negro se anunciou para mim, um anúncio de quem havia vivido o drama dos negros e negras desse país multicultural e negro. Hoje sou negro. Posso ter raízes na Europa mas também tenho raízes na negritude brasileira e deles me orgulho. Por causa deles, nossos ancestrais, é que estamos aqui, por causa da luta, da transformação e da resistência de homens e mulheres negros que definiram e continuam definindo quem somos, de onde viemos e para onde vamos.
È preciso nos converter novamente. É preciso começar pelo radical abandono de nossas práticas de piadas e brincadeiras racistas que mantém a estrutura de isolamento dos negros de nosso país. É preciso conhecer a história do nosso país, é preciso lutar pela inclusão social. É preciso estar atento ao que vemos em nossa sociedade. É preciso ouvirmos nossos irmãos negros e negras falarem da dor, da exclusão e da história de resistência no Brasil. Somente assim a vida abundante, a vida rara que Jesus nos promete acontecerá plenamente em nosso meio.
Racismo Cordial e Teologia
Como a condição do negro e da negra no Brasil informam o nosso jeito de fazer teologia brasileira e de falar de Deus? Quais as feições de Deus num Brasil onde mais de 50% da população é negra? Como entender Jesus Cristo a partir da experiència dos negros brasileiros? O que salientar como importante na fé?
Delores Williams ao escrever sua teologia feminista negra, chamada de womanista, diz que falar de Deus a partir da experiência da mulher negra começa na cozinha das avós e das mães. Ali as mulheres falavam das esperanças, do mal trato dos maridos, da luta diária, em meio às intempéries, brutalidades e preconceitos múltiplos. Toda teologia tem que aprender a ouvir a voz das mulheres negras. Sem elas, toda teologia brasileira é fraca, desonesta e pobre.
A cordialidade de nosso racismo faz de nós ainda muito mais violentos que os racismos digamos “explícitos” porque com eles concordamos, porque dele vivemos a partir da negação do nosso racismo tão latente na história de nosso país e em cada esquina de nossas cidades. Por uma teologia negra brasileira urgimos! Despeseradamente!