Teologa Da Cultura – O Caso da Record – Religião, Cultura e Negritude no Brasil

 

O jornalista e editor desse site, Omar de Souza, nos presta um excelente serviço ao publicar na página central deste sítio a nota jornalistica acerca da derrota jurídica que a Rede Record sofreu por “demonizar” os cultos afro-brasileiros em suas programações de televisão. Face a essa noticia, acredito ser importante pensarmos na relação da cultura, da religião e do negro a partir desse caso.

 

Todos sabem que a pregação do bispo Edir Macedo tinha/tem como inimigos centrais a igreja Católica Romana e os cultos Afro-brasileiros. Interpretados como manifestações do demônio, essas religiões, para ele, assim como para a grande maioria dos evangélicos de nosso país, são contrárias à vontade divina e por isso devem ser ser evangelizadas e resgatadas de seus erros. Pela conversão, seriam transformados em algo parecido com o que os pregadores proclamam e ao aceitarem os preceitos da fé evangélica, deixariam de ser parte dos “outros”,dos gentios, dos condenados, dos que vivem sob a égide do Diabo. Em outras palavras, ou eles aceitam o que nós pregamos ou então a existência de sua religião deve ser banida. Definido assim de maneira bruta, o evangelismo desenvolvido por várias de nossas igrejas parece ser mais de ataque do que de convite, mais de ódio do que amor, mais de truculência do que de entendimento, mais de vilipendiação do que de restauração.

 

Essa estratégia teológica baseada numa interpretação virulenta da Bíblia, gera crentes tão belicosos como qualquer outro de qualquer religião fundamentalista. O alvo missiológico vem embrulhado tanto pela restauração como também, e essencialmente pela destruição. Já ouvi falar de igrejas evangélicas que fazem o seu alvo de missões a destruição de 10 ou 20 terreiros de religiões Afro-brasileiras em um determinado período. Como chegamos a conceber isso? Onde é que chegamos?? Chegamos onde queriamos que chegassemos. Eu mesmo aprendi assim na minha adolescência. Lembro-me de ir evangelizar terreiros de umbanda nas praias paulistas na tentativa de destruí-los e achava que estava servindo a Deus. Ou ainda de ir evangelizar em Aparecida do Norte no dia 12 de outubro. Queria salvar a todos mas a salvação que eu propunha era baseada numa convicção de que minha fé somente poderia existir na medida em que a do outro fosse destruída. Hoje eu olho esse tempo com tristeza e até mesmo com indignação. Até que ponto nos arvoramos o direito de entrar nas celebrações dos outros e desrtuir seus conteúdos de fé? Não queremos que outros façam isso conosco e não deveríamos fazer também. O evangelho é mairo do que isso!

 

Essa postura de várias igrejas evangélicas é alarmante porque coloca em risco a democracia religiosa que queremos viver em nosso país. Ao vivermos da militarização da nossa fé, repetimos o que sempre denunciamos no histórico de outras religiões, inclusive a igreja católica romana, a saber, a proibição legal a outros grupos religiosos de viverem suas práticas de fé. Como protestantes, somos frutos dessa intransigência dogmática e histórica da fé Romana. Não podemos e não devemos repetir o que sempre rejeitamos.

 

Ao demonizarmos a fé do outro, isto é, daquele que não é como a gente, que não acredita como a gente, nos arrogamos o direito de dizer que somente nós temos a verdade única daquilo que o evangelho traz. No arvoramento dessa pretensão, negamos tudo o que não é parecido conosco e nomeamos os outros como diabólicos, para podermos ter base para nossa “evangelização de destruição”.

 

Não acredito ser esse o evangelho de Cristo. Conheci uma mãe de santo na Bahia que, pasmem, se converteu da Assembléia de Deus ao espiritismo e se tornou mãe de santo. Querendo saber das razões dela para tal mudança, uma das coisas que ela me falou foi acerca da falta de amor dos cristãos. E ela tem sido testemunha quase semanala dessa falta de amor. Ela me disse que as vezes, tem que chamar a polícia porque crentes ficam na porta da casa dela jogando pedras e gritando para que os demônios saiam de lá. Ela então me pergunta: “O que está acontecendo com os crentes?”

 

O problema assume outras formas quando o grupo religioso atacado é fundamentalmente formado de negros e negras. Já não basta a perseguição histórica da igreja católica romana aos membros dos cultos Afros que até não muito tempo atrás tinham seus objetos de culto confiscados pela polícia por meio de lei, agora somos nós os evangélicos que resolvemos atacar esses que são brasileiros e cuja religiosidade forjou, formou e estrutural as matrizes de nossas identidades brasileiras. Nesse processo, vamos destruindo não só outras tradições religiosas mas também partes importantes da nossa herança cultural. Ao destruirmos as religiões Afro-brasilerias, estamos destruindo a nós mesmos! Pois a diversidade religiosa é parte da tecitura de nossa cultura.

 

Temos o direito de pregar as boas novas do evangelho de Jesus assim como qualquer outra pessoa tem direito de pregar outros tipos de crenças. O direito de conversão também é inalienável. Mas isso deve ser feito não a despeito da diminuição, do flagelo, da discriminazação, da violentação e da destruição do outro. Seria muito difícil associar o amor de Deus à demonização do que não aceitamos e não queremos.

 

As vezes penso se essa virulência de se pregar o evangelho dessa forma não é um sintoma da desconfiança no amor de Deus. Porque que precisamos virar os leões de chácara de Deus e proteger a Deus de seus inimigos? Será que que a mensagem do amor de Jesus já não tem tanta força, e por isso precisamos ir pra cima dos outros com todas as formas de  violência e destruição  para falarmos de amor? Um amor que mais parece com imposição, que não da opção para o ouvinte e como se quem ouve não tivesse a escolha de uma transformação oferecida. Se acreditassemos que o Espírito Santo é quem nos convence não seriamos asim tão belicosos.

 

Enquanto não conseguirmos respeitar as tradições e as práticas de fé de nossos irmãos e irmãs Afro-descendentes, não conseguiremos chegar nem perto da compreensão do amor de Deus que Paulo nos fala em Efésios 3.17-19 “Oro para que, com as suas gloriosas riquezas, Ele os fortaleça com poder, por meio do seu Espírito no ser interior, para que Cristo habite em seus corações mediante a fé; e oro para que vocês, estando arraigados e alicerçados em amor, tenham poder, juntamente com todos os santos, para compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo conhecimento, para que vocês sejam cheios de toda a plenitude de Deus.”

 

Enquanto não entendermos esse amor de Deus, vamos precisar dos Tribunais Federais e Regionais, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) e do Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Intecab) para nos dizer o que o amor de Deus deveria ser.

 

 

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