“O sistema de moda é um sistema de metafísica muito bem guardado por seitas e escolas hermenêuticas”.
Na Introdução do Artist Clothing catalogue 2004/2005[1] Otto von Busch apresenta as similaridades entre religião e fashion de modo especial pelo modo como a moda influencia sonhos e concepções da realidade.
Este sistema tem seus profissionais místicos e intérpretes – cardinals and priests. O que mais aproxima fashion e religião, entretanto não está na estrutura hierarquizada e hermética mas na liturgia, isto é, no ritual de reprodução da crença do ideal de beleza que não está ao alcance de todos, mas somente dos iniciados.
“Fashion is alchemy. Ritual and magic . Faith and religion. Sacrifice and devotion”
“A moda é alquimia. Ritual e magia. Fé e religião. Sacrifício e devoção ”
No mundo fashion o corpo é idealizado in extremes e pela mediação de lentes, maquiagem e computadores as imperfeições do ser humano desaparecem na transfiguração of the most beautiful specimen. Nenhum cabelo fora do lugar, nem ruga, nem gordura, nem cheiro. É o corpo em sua máxima exposição… mas não há corpo algum.
“This holy moment is totally unique, but later reproduced into millions of copies, and made for us believers to be used as an ideal for a living”.
“Este momento sagrado é totalmente original, mas depois reproduzida em milhões de cópias, e feito para ser usado por nós os crentes como um ideal para a vida”.
A religião fashion exige dos fiéis observação, contemplação, entrega e sacrifício em troca de óleos e poções que promete a vida eterna.
Esta relação percebida nos marcos do capitalismo que se torna into the most refined magical system num sistema de significados que lidam com freshness, sexiness and beuaty (fescor, sexy e beleza). Fora desse mundo do mercado da moda tudo é desordenado e reina o caos e
everything is doomed to be ugly, dull and grey.
tudo está condenado a ser feio, sem graça e cinza.
Para o autor o sistema fashion é o espírito do capitalismo aproximando o fetiche da mercadoria e o fetiche religioso de modo inequívoco:
“fashion cannot have any meaning, because then it would already be out of fashion”.
“A moda não pode ter qualquer significado, porque, então, ele já estaria fora de moda”.
É um sistema fechado e auto-suficiente que lida com suspiros oprimidos, sonhos e desejos que são projetados para além da objetividade da roupa e sua fabricação, mas mantendo a exigência do consumo continuado e renovado dos rituais e seus objetos. Neste sentido a moda existe, mas não pode se deixar ver. Os panos, os gestos, as bocas e a parafernália ritual são visualidade de não deixar ver implicando sempre na atitude do fiel de virar o rosto. Como na religião o mundo fashion tem suas regras, entre elas: não fazer imagem e não ter outros deuses, isto é a interdição da modelagem e a servidão voluntária.
O autor apresenta o catálogo acreditando que a terra-do-meio entre fashion e arte cria a possibilidade de fissurar a monocultura do sistema religião-moda.
“Closing in on fahion from the side of art gives a freedom of being outside of the production of the system and can reveal this landscape under a fresh view”.
Aproximandoa moda da arte apresenta uma liberdade de estar fora de produção do sistema e pode revelar este paisagem sob uma nova visão.
Não é um projeto de enlightment to end the alchemy or magics of fashion (esclarecimento para o fim da alquimia ou mágica na moda) mas a mistura de dois mundos místicos merging to into one. Na hibridação da arte com o mundo fashion se criaria um espaço de um debate profundo sobre os fenômenos envolvidos. Um espaço apertado, mas que oportunizaria uma liberdade para fazer a crítica do sistema-moda nele mesmo. Busch vai desenvolver um paralelo intrigante entre Teologia da Libertação e um possível espaço fashion de liberação fazendo o contraponto entre a catedral e a comunidade de base, a exclusiva loja fashion e o bazar[2].
A pretensão do mundo da moda é o de realizar os anseios humanos ocupando o lugar do que Jon Sobrino chama “o sentido totalizante da existência e da história” [3].Entretanto, se para Sobrino este sentido totalizante vem das mesmas realidades a serem estudadas: “Deus, Cristo, libertação, pecado do mundo…”[4] as teologias feministas de libertação insistem que as realidades a serem enfrentadas são aquelas das condições objetivas e subjetivas das relações de poder&vida na sociedade. São os corpos e suas totalidades de relação em relação que implicam em existência e história.
Ansiedade. Amor. Imagem. Desejo. Sedução. Parecem não ser palavras devidas para a discussão econômica… entretanto são aquelas que talvez expressem melhor o processo de fabulação estética da mercadoria em especial da indústria da moda.
A mercadoria-roupa deseja ser consumida, precisa ser escolhida, comprada; para isso precisa fazer-se amável, desejável, precisa adivinhar o desejo ou inventá-lo oferecendo um estímulo estético. É preciso induzir uma nova forma de prazer sempre submetida à manutenção da capacidade de reprodução do capital mesmo.
…”a principal estratégia do capital não é a de criar novos mercados… o que mais importa agora é a racionalização dos mercados existentes; potencializar sua capacidade de realização, sem necessariamente implicar o crescimento do número de consumidores. Daí a radicalização do modismo: nascimento e morte das mercadorias…”[1]
Apresentada como estímulo à liberdade e à diferença na verdade a indústria da moda homogeniza criando uma multidão de anônimos que seguem “religiosamente” os ditames de especialistas e sacerdotes/sacerdotisas.
O sujeito sem a capacidade de eleger e impor seu gosto e vontade se esforça no frenesi do consumo em copiar através de arremedos periféricos o que o saber estético oferece e tira. A moda se move pelo descarte. O usuário deixa de ser sujeito: não veste, é vestido. Através da moda o mercado oferece mobilidade social sem, contudo, estabilizar padrões e parâmetros, obrigando a massa consumidora a manter uma agilidade de consumo que garante a reprodução do capital-moda.
Para Bourdieu, na metamorfose do gosto, a grife é a marca que, não mudando a natureza matéria, altera a natureza social do objeto-roupa.[2]
A aparente frivolidade e ludicidade do mundo da moda esconde relações perversas de produção, formas arcaicas de remuneração do trabalho e manipulações do gosto e do consumo. Mesmo a genialidade dos estilistas e sua liberdade criadora encobrem determinações tecnológicas por parte dos interesses da indústria e do capital da moda:
“…por parâmetros férreos da indústria dentro de uma cadeia de causações que começa muito antes do momento da criação, quando por exemplo, a indústria química e a indústria têxtil se entendem sobre a cartela de cores que vigorará muitas coleções depois… Começa nos fios, passa por automóveis e tantos outros produtos para acabar, muitas estações depois, na louça sanitária e material de construção[3]”.
Teologia da evitação do corpo
“Mas em quem tenho eu que acreditar então, na economia política ou na moral? ? A moral da economia política é o ganho, o trabalho e a poupança, a sobriedade, mas a economia política promete satisfazer as minhas necessidades”[4]
Marx vai apresentar duas senhoras: Senhora Moral e Senhora Religião. Estas duas Senhoras são completamente obsoletas e desnecessárias no que diz respeito às leis econômicas: a moral da economia política é o ganho e subordina as duas senhoras à sua lógica num metabolismo eficiente de alienação. Bem dito! No capitalismo full fashion é a religião que se adapta às leis econômicas do consumo e da reprodução da mais-valia como legitimidade do modelo outono-inverno.
São as anáguas teológicas panos de evitar a visibilização de deus, sua carnadura, os matérias de que é feito, sua sexuada pertença aos corpóreos mundos. A teologia vai se oferecer como pudicos panos ao redor dos quadris de deus… pura decência discursiva incapaz de fissurar a monocultura monolátrica e monoteísta. Sistemáticas performances. Lucrativas performances. Espetáculo de não deixar ver: ou por virtude ou por marketing.
E assim a teologia um tecido discursivo de não deixar “ver” as partes de deus, num jogo de mostrar e esconder acaba inviabilizando a consideração sobre que Deus e o que de Deus participa e se manifesta nas experiências teofânicas. Os exegetas e pesquisadores viram o rosto, evitam o texto como se eles mesmos estivessem fazendo a experiência de temor e tremor. Esta evitação se localiza de modo particular no tratamento do corpo de Deus que a experiência/texto comporta. Evita-se o corpo de Deus num ocultamento do corpo do homem que, no texto, faz a experiência, como também o ocultamento de seus corpos de homens que fazem a pesquisa.
As teologias virtuosas são anáguas pesadísimas, decentérrimas e repetidíssima. São aquelas uma teologias que lêem e relêem sempre de novo um mesmo autor, um outro autor e se fundam sempre de novo no simulacro autoral… qualquer coisa que inviabilize o desnudamento da realidade, dos sexuados corpos de humanas misérias eróticas e econômicas!
No mundo fashion da teologia o corpo é idealizado in extremes e pela mediação de letras, maquiagem e computadores as imperfeições do ser humano desaparecem na transfiguração of the most beautiful specimen. Nenhum cabelo fora do lugar, nem ruga, nem gordura, nem cheiro, nem sexo. É o corpo em sua máxima exposição… mas não há corpo algum.
Na outra ponta do fenômeno religioso contemporâneo a religião se oferece ao mundo do mercado do entertenimento com lançamento de produtos de fervorosa frivolidade que se esparramam em cds, camisetas, shows e se reproduzem em cantores e cantoras gospell e sua estética de um fervor espiritual… de gemidos e louvores ai! ao rei Jesus. A roda do consumo gira e o capitalismo nem paga dízimo.
Disse Marcella – materialista, indecente, apaixonada, imprudente – que fazer Teologia é “levantar a saia de Deus” [5]. Ah! as saias de Deus: divinas! quanto acontecimento ali debaixo das divinas saias! Eu nem preciso ser “salva”… só viver a Paixão (minha/nossa/de Cristo) como “tensão não adulterada, absoluta e simples para alcançar a abundância do ser”
[1] TEIXEIRA, Francisco José Soares, O Capital e suas formas de produção de mercadorias: rumo ao fim da economia política, Crítica Marxista, 2000, no. 10, Boitempo Editorial, p. 83
[2] BOURDIEU, Pierre, A distinção, São Paulo: Difel, s/d, p. 82
[3] Ibid.,
[4] MARX, K. 1978a. “Manuscritos econômico-filosóficos (Terceiro manuscrito)”. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, p. 3-48 (Coleção Os Pensadores).
[5] REID, Marcella Alt-Haus, Teologia Indecente, Revista Época,http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT805466-1666,00.html (acesso em 24/06/2009)
[6] DALY, Mary, Pure Lust: Elemental Feminist Philosophy, The Women’s Press, London, 1984, p.3
[1] BUSCH Otto von, Fashion, Alchemy, Ritual, Sacrifice, and Devotion, in:http://www.thetracthouse.com/baltimore/tracts/24.pdf (acesso em 10/1/2010)
[2] BUSCH, Otto von, FASHION-able hacktivism and engaged fashion design, in:http://www.hdk.gu.se/files/document/fashion-able_webanspassahd%20avhandling_OttovonBusch.pdf (acesso em 10/2/2010)
[3] SOBRINO, Jon, Teses sobre uma Cristologia Histórica, Cristologia a partir da América Latina, Petrópolis:Vozes, 1983, p. 353
[4] ibid.,