Como disse no texto anterior, o essencialismo e existêncialismo marcaram profundamente o pensamento de Tillich e em meio a elas ele construiu toda sua teologia. Foram os horrores da Segunda Guerra mundial que mostrram a Tillich o quanto nossa humanidade está imersa nas angústias, no vazio e na ameaça do nada. O mundo, a cultura e a existência humana estavam sendo constantemente ameaçadas pela falta de sentido, pela apatia, pelo medo. A teologia deveria se lançar como contrapartida à essa situação e propor alternativas à essas ameaças. Para lidar com essas inquietações, Tillich trabalhou de maneira consistente a relação entre a teologia e cultura no que ele mesmo chamou de método da correlação. Em seu livro “Teologia da Cultura” ele detalha como deveria ser a relação entre a teologia e a cultura, entre Deus e o mundo, ou seja, entre Deus, a essência, o fundamento da vida e a existência humana. Esse método consiste basicamente nos seguintes termos: o mundo faz as pergunas e a teologia responde a elas. Ele cria uma mediação entre o que se pensa e o que se experimenta e essa mediação se dá através da cultura humana. Pelas manifestações da cultura, podemos ver a forma dos conteúdos religiosos da vida humana e aquilo que lhe é não só pertinente, mas de maior importância, de valor e sentido último. Tillich e os teólogos de seu tempo estavam preocupados com a secularização da cultura e as dificuldades de se ver os aspectos religiosos da realidade. Hoje parece mais fácil falar de Deus e sua presença em e através da cultura. Contudo, como falar de Deus nos tempos de Tillich? Como falar de Deus em meio a um mundo demolido e ferido por duas guerras que destruiram tantas pessoas, tantos sonhos e esperanças na bondade e na capacidade de progresso da existência humana?
Tillich rejeita o esforço de localizar o aspecto religioso somente em um ou outro aspecto da vida, seja o estético, o político, o experimental, mas quer ver o sentido religioso se expressando em todos as partes da estrutura humana. Para chegar a esse ponto, ele usa a metáfora da profundidade em contraste ao de superfície. Para ele a religião está localizada na profundidade da vida humana e manifesta o que lhe é mais visceral, infinito, fundamental, incondicional, o que ele também chama de preocupação última do ser. A religião será sempre aquilo que tece e estrutura a cultura, e esse incondicional da cultura se dá nas formas e manifestações concretas dessa cultura. Assim ele definiu sua teologia da cultura:
Religião é a substância da cultura e a cultura é a forma da religião.[1]
Uma dos grande legados de Tillich foi desvincular a igreja do sagrado, isto é, a igreja não era mais o locus unívoco e privilegiado onde o sagrado acontecia. A cultura, em geral, torna-se o espaço, a forma onde o religioso, o incondicional, Deus se manifesta. Em uma palestra dada em 1919 entitulada “Sobre a Idéia da Teologia da Cultura”, ele disse que o incondicional está ativo além das fronteiras eclesiásticas e o trabalho da teologia da cultura era identificar o conteúdo religioso ou a preocupação última dentre as esferas ou formatos criativos da cultura que poderiam ser discerníveis. Ao fazer essa leitura, a teologia deveria cuidar para que nenhuma forma da cultura se identificasse com esse incondicional e tomar o lugar do sagrado. Esse incondicional assume diferentes formas na cultura humana mas não se engessa e se deixa aprisionar por elas. É preciso que o teólogo use o imperativo do princípio protestante para não deixar que nenhuma forma torne-se conteúdo, ou seja, que nenhuma imanência se arvore como transcendência. Em outras palavras, o princípio protestante teria a função de protestar toda vez que a forma da religião queira tornar-se substância, ou seja, o incondicional que se encontra no fundamento do ser se transforme no condicional, no transsitório, e se fossilize em estruturas humanas que queiram assumir para si a totalidade do sentido último da existência.
Assim, se usarmos o método da correlação de Tillich, poderemos entender a relação entre teologia e cultura ao passarmos os olhos pela cultura e vermos por onde as pedras andam falando de Deus, ou seja, por onde Deus vai se revelando para além dos muros da igreja. Como ponto de partida, precisamos eliminar a idéia medieval de que a salvação está somente dentro da igreja e dos conteúdos cristãos, e olhar para fora de nossas fronteiras eclesiásticas, aprendendo a viver e a localizar a presença salvadora da graça entre as fronteiras do mundo e do conhecimento. Somente aí, entre fornteiras de diferentes mundos poderemos ouvir não só as perguntas da cultura mas também poderemos elaborar as respostas da teologia sem que nunca tenhamos tido idéia nem das perguntas muito menos das respostas. Cabe a nós todos, teólogos da cultura, estarmos atentos à revelação do incondicional que se manifesta por lugares onde não imaginamos e onde nossas teologias nunca nos permitiram chegar. Aqui fica a pergunta para você: Por onde o incondicional perpassa em nossa cultura brasileira? Num próximo texto vamos começar a falar desses lugares possíveis. É o espaço do “e” que falamos no primeiro texto, espaço de entre-meio onde a sagrado pode acontecer, entre a existência e a essência, entre o incondicional e o condicional, entre o transcendente e o imanente, entre o possível e o impossível.
[1] Paul Tillich. Theology of Culture. Edited by Kimball, Robert C. New York: Oxford University Press, 1959,p. 42.
Escrito em 2006.