… de que maneira se pode dizer que os esforços, estudos e práticas do movimento bíblico de leitura popular expressam/objetivam a razão camponesa ou a razão das maiorias oprimidas? De que maneira a leitura popular da Bíblia participa do esforço emancipatório da construção da razão dos oprimidos na América Latina e seus projetos revolucionários?
O cristianismo é uma religião de livro, de leitura, de alfabetizados… tanto no modelo fundamentalista de repetição literal como no modelo crítico-histórico de interpretação. Na América Latina as maiorias oprimidas, em especial o campesinato participam de maneira limitada das oportunidades de educação. As maiorias oprimidas são sub-alfabetizadas e mais importante, pertencem a um mundo ágrafo, isto é um mundo de representação cultural em que a escrita/leitura não são hegemônicas.
Se for verdade que houve/há um sistemático e criativo processo de “alfabetização” nas experiências das comunidades e base e das pastorais sociais na expressão de processos de educação popular de interpretação da realidade, interpretação do texto bíblico e das comunidades como agentes de intervenção e espiritualidade, este modelo não pode ser idealizado nem silenciar outras formas culturais das maiorias oprimidas.
Se por um lado existe o esforço de tradução da Bíblia para línguas indígenas ou a produção de traduções na linguagem de hoje mais acessíveis, o grande desafio – por outro lado – continua sendo não deixar que a centralidade/autoridade da leitura/escrita bíblica continue sendo elemento de destruição das formas culturais que não dependem da leitura/escrita.
Bruna Franchetto 5, por exemplo, aponta alguns dos pontos principais da preocupação dos lingüistas quanto a situação de “comprometimento lingüístico ou línguas em perigo de extinção:
– “nos quinhentos anos que se seguiram a chegada dos europeus, aproximadamente 85% das línguas indígenas do Brasil foi perdido”
– “o Brasil continua sendo um país com a mais alta densidade lingüística (muitas línguas diferentes em um mesmo território) e uma das mais baixas concentrações demográficas por língua ( muitas línguas e poucos falantes).[1]
A leitura popular da Bíblia também deve ser identificada no avesso dos grupos de base organizados nas formas dos movimentos sociais, isto é, no complexo mundo das pentecostalidades latino-americanas. Esta pentecostalidade tem como característica comum a relação autônoma com formatações do cristianismo histórico (católico romano ou protestante). A Bíblia funciona como objeto de poder sem exigir tratamento histórico-crítico, curvando-se a um uso simples, narrativo, alegórico e imagético. Carrega-se a Bíblia. Canta-se a Bíblia. Repete-se a Bíblia… sem precisar estudar, sem precisar do especialista e do tradutor. O perigo real de leituras fundamentalistas e rasteiras é relativizado pela extrema fluidez do texto e os excessos de interpretações. Tal fluidez evidencia um acelerado processo de des-normatividade do texto e um movimento constante de deslocamento da autoridade bíblica. Sem os instrumentos de poder e de autoridade eclesiático e científico, o livro é facilmente acessado e usado inviabilizando hegemonias interpretativas.
Outra variação variadíssima e antiga é a presença do texto bíblico nas festas populares brasileiras onde é muito difícil dizer onde começa e onde termina o religioso.
as maiores contribuições da Bíblia à cultura nacional foram: construção de acervo para as diferentes narrativas da literatura brasileira; narrativas e enredos bíblicos começaram a servir de tema para muitas expressões da arte; as religiosidades passaram a usá-la como devoção particular; narrativas e personagens fazem parte do imaginário nacional.[2]
A presença das narrativas e imagéticas bíblicas nas festas populares brasileiras também desafiam as lógicas discursivas e controladoras das igrejas tradicionais. Numa apropriação laica, não dogmática mas sim performática, as festas populares dialogam com as tradições bíblicas nos espaços híbridos do sagrado e profano e na ambigüidade do calendário religioso latino-americano. Assim nas festas de junho associadas a São João e os cantos de cururu no centro-oeste brasileiro re-interpretam a vida e morte de João Batista mesclando informações bíblicas com elementos da cultura religiosa local [3]; também na Festa de Sairé:
Promovida há cerca de 300 anos pela comunidade de Alter do Chão, em Santarém no Pará; o Sairé é um semicírculo de madeira, que contém o relato bíblico do dilúvio: o grande arco representa a arca de Noé, os espelhos a luz do dia, os doces, as frutas, a abundância de alimentos existentes na arca, o algodão, o tamborim, a espuma e o ruído das ondas durante os 40 dias de dilúvio. Os três semicírculos simbolizam a Santíssima Trindade.[4]
Também nos festejos da Folia de Reis que acontece entre o Natal e o dia 6 de janeiro, onde grupos de cantadores e músicos trajando fardamento colorido percorrem as ruas de pequenas cidades brasileiras, entoando cânticos bíblicos que relembram a viagem a Belém dos três Reis Magos (Baltazar, Belchior e Gaspar) para dar boas-vindas ao Menino Jesus. Do lado de fora, os palhaços vestidos a caráter e cobertos por máscaras, representando os soldados do rei Herodes, de Jerusalém, dançam ao som do violão, do pandeiro e do cavaquinho, recitando versos.
Estas festas populares são vividas simultaneamente com as práticas eclesiais e as normatividades bíblicas escapando dos olhares teológicos e exegéticos e sendo melhor estudadas no campo da antropologia cultural [5].
Para uns é superstição, mas, para os foliões, apenas a fidedignidade à narrativa bíblica. É assim que eles são rigorosos às normas e rituais, sempre relembrados e estudados, antes de seguirem o trajeto. O jovem Reinaldo Pessoa, de 24 anos, é um dos mais emocionados e compenetrados. Pudera. Sua função – a de embaixador – requer improviso, agilidade, oralidade e, sobretudo, conhecimento da tradição. “Dentro da folia, narro a história cantando… Só que não tem nada decorado. É tudo no improviso mesmo. O que precisa saber é a história dos Reis Magos[6].
Assim, a referência à razão camponesa ou às maiorias oprimidas não pode ser reduzida a formas eclesiais de organização mas precisa ser expressão abrangente e complexa das formas religiosas das classes populares na América Latina. O reducionismo às formas consagradas das comunidades eclesiais de base ou a outros processos eclesiais de leitura da Bíblia restringe e atrofia a dimensão vital da presença da Bíblia nas múltiplas formas das culturas populares latino-americanas como resistência, apropriação autônoma e disputa dos imaginários de poder da religião imposta[7]. Nas palavras de Humberto Cholango:
La vida nos ha enseñado que al “árbol se lo conoce por sus frutos”, como dijo el Cristo, y sabemos distinguir quien le sirve en los pobres y quien se sirve de ellos. Cabe comunicar al Pontífice que nuestras religiones JAMAS MURIERON, aprendimos a sincretizar nuestras creencias y símbolos con las de los invasores y opresores.[8]
Para além de sistemáticas teologias, para além das dogmáticas e metafísicas, para além do texto emoldurado por metodologias, a leitura popular da Bíblia escapa das tentativas de controle e se realiza como linguagem, descosturando as intencionalidade de um projeto de evangelização/colonização opressor e se misturando com outras figuras, outros mitos, outras possibilidades e rituais diversos.
Mais do que uma teologia da hermenêutica do símbolo – dizia Dussel[9]- que se esgota na identificação da cultura popular como forma de resistência, o desafio de uma teologia da libertação continua sendo o de dissolver as fronteiras eclesiológicas e cristológicas, recusando qualquer triunfalismo cristão latino-americano e re-colocando a Bíblia em relação. Não se trata do sincretismo asseado e sutilmente violento das inculturações que perpetuam a conversão e inserção do sagrado dos outros na ordenação tolerante da cristandade. Significa perceber a religião da Bíblia como uma religião entre outras, de forma plural, descentrada, fragmentada e conflitual[10].
Estes desafios foram e continuam sendo enfrentados no espaço de estudo e produção de RIBLA de modo especial no volume 26: La Palabra se Hizo India (http://www.claiweb.org/ribla/ribla26/contenido.html). Este número de Ribla trata de investigar as relações das relações da Bíblia com as culturas indígenas em sua contemporaneidade na América Latina, não como registro do passado mas como interlocução cultural e teológica atual. De modo muito especial este esforço pode ser encontrado no artigo de Severino Croato Simbólica Cultural e Hermenêutica Bíblica e no artigo de Victória Carrasco Antropologia Andina y Bíblica – Chaquiñan Andino y Bíblia.[11].
O esforço de tomar as realidades e as leituras das maiorias oprimidas teve um impacto significativo nas formas de interpretação e estudo da Bíblia na América Latina. Novas mediações hermenêuticas se impõem a partir das práticas de leitura e vivência dos pobres com a Bíblia. Na Ribla 28 se apontam algumas destas possibilidades.
El cuerpo (la palabra, los gestos, las danzas, los sentidos, la sexualidad, el placer, etc.), los sentimientos, la cultura (la tierra, los símbolos, mitos y ritos religiosos, las tradiciones religiosas y culturales, lo festivo y lo lúdico, la solidaridad, etc.), la comunidad, el significado del tiempo y del espacio, etc. Hay un desplazamiento de lo meramente objetivo a lo subjetivo, de lo exclusivamente racional a lo corporal y afectivo, de lo puramente político a lo cultural, del lenguaje escrito a los símbolos y mitos. Este desplazamiento implica un enriquecimiento y no una negación de las mediaciones anteriores. Hay nuevos criterios o herramientas para poder entrar en la Biblia y escarbar en ella los sentidos de vida para nosotros hoy: La sospecha, la imaginación, los sueños, las intuiciones, las preguntas específicas, el juego, la danza, los cantos, la poesía, etc. Es evidente el desplazamiento de lo objetivo a lo subjetivo, de lo científico a lo artístico. Esta experiencia de contacto directo con el texto y con la vida ha comenzado a ser el nuevo criterio pedagógico de autoridad que fundamenta la exégesis y la hermenéutica bíblica. En este sentido hay un desplazamiento muy significativo. Ya no es la autoridad que nos brindan los grandes métodos exegéticos (y los exégetas) del “primer” mundo, lo que justifica la validez, la seriedad, la pertenencia y la profundidad de la exégesis que hacemos.[12]
De modo muito concreto a leitura feminista da Bíblia na América Latina vem conseguindo dialogar de modo positivo, crítico e criativo com os movimentos de mulheres e feministas no continente fazendo da maioria feminina dos oprimidos o ponto hermenêutico e epistêmico como pode ser conhecido em diversos números de RIBLA. Nestas duas décadas as mulheres e a leitura feminista deixaram de ser minoria nas reuniões e números de Ribla e passaram da estratégia de números temáticos específicos (Ribla 15 e 25) para a presença de mulheres em todas as Riblas[13]. Na Ribla 25 e na Ribla 50 o coletivo de mulheres da RIBLA apresenta o resultado de encontros específicos buscando concretizar a caminhada comum.
O Movimento Bíblico Latino-Americano é parte do processo de empoderamento das maiorias oprimidas, de movimentos sociais de caráter classista que de certo modo se expressam hoje no perfil político de governos eleitos com agendas políticas de centro esquerda; poderíamos reconhecer a significativa contribuição destes processos de leitura bíblica na vida política do continente. Esta não é uma relação mecânica, nem desprovida de contradições mas boas parte de novas lideranças políticas dos novos movimentos comunitários e sindicais tiveram uma formação de base nas comunidades de base e foram alfabetizados na hermenêutica da libertação. Neste processo, ler a Bíblia se dá a partir da leitura da realidade e se expressa na leitura das condições objetivas e subjetivas da comunidade.
O movimento diz do aprendizado de instrumentos de análise e interpretação que formatou e continua formatando um sem número de comunidades que lêem a Bíblia a partir da realidade, que dançam o texto, leem na palma da mão os rastros de história sagrada e ordinária. O método se curva diante da vida material, da vida cotidiana e faz da hermenêutica bíblica um exercício comunitário de construção de significados existenciais e sociais. A Bíblia é livro de religião. A Palavra de Deus não está no Livro… mas no encontro da vida no texto com a vida na realidade. Eu sou e muitos somos herdeira e aprendiz deste processo nos últimos na América Latina. A consciência é material. Me deixa ler sua mão?
[1] FRANCHETTO, Bruna: “Línguas indígenas e comprometimento lingüístico no Brasil: situação, necessidades e soluções”.mimeo.sd. Museu Nacional., in:http://www.trabalhoindigenista.org.br/Docs/povosagrafoscidadaosanalfabetos.pdf
[2] MAGALHÃES, A.C. Mello, 200 anos de Bíblia no Brasil, in:http://victorhfm.multiply.com/reviews/item/6
[3] SOUZA, João Carlos de. O caráter religioso e profano das festas populares: Corumbá, passagem do século XIX para o XX. Rev. Bras. Hist. [online]. 2004, v. 24, n. 48 [cited 2008-12-02], pp. 331-351. Available from: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882004000200014&lng=en&nrm=iso >. ISSN 0102-0188. doi: 10.1590/S0102-01882004000200014.
[4] http://www.horadobrasil.net/index.php?option=com_events&task=view_detail&agid=90
[5] PESSOA, Jadir de Morais; FÉLIX, Madeleine, As Viagens dos Reis Magos. Goiânia:Ed. da UCG, 2007
[6] matéria do Jornal Tribuna do Planalto, 13 de Janeiro de 2007, Caderno de Cultura, Tradição Revigorada, in: http://www.tribunadoplanalto.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=2761
[7] Progressive Theology and Popular Religiousity in Oaxaca, Mexico, Journal article by Kristin Norget; Ethnology, Vol. 36, 1997, in:http://www.questia.com/googleScholar.qst;jsessionid=J0xDRVxhyLp2rSYKrN49Jv809Yjk13QPYnhsvpnm0zGZ9J0BFrht!1153215274?docId=5001513809
[8] resposta ao Papa Bento XVI do Presidente da Confederación de Los Pueblos de la Nacionalidad Kichwa del Ecuador, in: http://www.katari.org/archives/respuesta-indigena-al-papa-benedicto-xvi
[9] DUSSEL, Enrique, Caminhos de Libertação Latino-AmericanaI, vol IV, Paulinas, São Paulo, 1985, p.283
[10] CANEVACCI, M., Sincretismos – uma exploração das hibridações culturais, Studio Nobel, São Paulo, 1996, p. 14
[11] http://www.claiweb.org/ribla/ribla26/simbolica%20cultural.html
[12] ARCHILA, Francisco Reyes Archila, Hermenéutica y exégesis – Un diálogo necesario, in: .http://www.claiweb.org/ribla/ribla28/hermeneutica%20y%20exegesis.html
[13] Confira: http://www.claiweb.org/ribla/ribla1-13.html