O Absurdo em Albert Camus, por Cláudio Carvalhaes – Parte 1

CAPÍTULO 2 – O ABSURDO

 

A fim de proporcionar uma maior familiaridade com o tema do absurdo, iniciamos este capítulo com um levantamento etimológico do termo, seguido da rápida menção de expressões culturais que acolheram o “sentimento do absurdo” em suas mais diversas manifestações: literatura, filosofia e até mesmo teatro.

O estudo do pensamento de Camus propriamente se concentrará nas obras que compõem o chamado “ciclo do absurdo”. As primeiras ocorrências deste “sentimento do absurdo” são apresentadas na análise de suas obras iniciais, notadamente O Avesso e O Direito e Bodas em Tipasa, para daí passarmos à sua expressão no teatro com as peças Calígula e O Equívoco. Nestas obras, Camus já deixa transparecer fortemente o impulso que o lança à vida e que, diante da fatalidade da morte, só ampliará sua percepção do absurdo irremediável a que o ser humano está fadado.

As consequências desta falta de significado na existência são brilhantemente incorporadas pelo personagem Meursault em O Estrangeiro, obra que consagrou o autor como romancista e que estudamos na sequência.

Por fim, merece destaque especial e uma análise mais minuciosa O Mito de Sísifo, que reúne num corpo compacto de idéias a noção de absurdo diluída em todo o ciclo e que, se não chega a constituir um tratado filosófico, ao menos marca sua preocupação com um maior rigor intelectual numa espécie de teorização do tema.

 

2.1.      A  Etimologia da palavra ABSURDO e seus significados

 

A palavra absurdo vem do latim absurdus e etimologicamente significa: AB – aquilo que detona, que intensifica; e SURDUS – surdo. O Dictionary of Word Origins nos diz que a palavra latina surdus, originariamente usada para significar surdez, logo foi estendida e usada também para mudo  no campo da fonética. Depois, foi usada para traduzir a palavra grega alogos, no décimo livro de Geometria de Euclides, usado para medição. Daí passa a significar irracional. Do grego A – fora; e LOGOS – palavra, razão.

A mesma palavra surdus foi também usada para significar inaudível ou intolerável, insuportável quando ouvido, a tal ponto que se desejaria estar surdo[51].

O Dicionário de Oxford nos fala também da intrínseca relação da palavra absurdus com a surdez e sua incompatibilidade com a razão[52].

Com relação à surdez fala que o absurdo é não somente a torção da harmonia, algo que está fora dela mas a sua ausência, a tal ponto que seu som estriônico, confuso, por demais intenso e atordoador se torna intolerável para os ouvidos tornando-o inaudível, impossível de ser ouvido.

O absurdo é esse som exorbitante, desmedido, excessivo e irracional.

O absurdo como algo fora da razão é esse som intolerável expresso pela falta de senso ou de prudência, a perda de compostura, a manifestação do ridículo. “Algo irritante, doído, cru, fora do tom, desconfortante, raro. Fora da harmonia com razão ou propriedade, incongruente, incompatível com a razão e que excede todos os limites da razão. Não governado pela razão, ilógico. Oposto à razão.”[53] O dicionário ainda fala do absurdismo, se podemos traduzir literalmente para o português, onde “a ética absurda não recomenda nem a virtude, nem o crime.”[54]

A absurdidade é o mesmo que insensatez segundo o mesmo dicionário.

A absurdidade é o estado ou qualidade de ser absurdo. Pode ser qualquer absurdo: uma declaração, ação ou costume oposto à verdade óbvia ou à razão.”[55]

O Dicionário Básico de Filosofia de Hilton Jupiassu e Danilo Marcondes nos fala do absurdo como o discordante, o incongruente.”[56] Diz-nos que absurdo é “aquilo que viola as leis da lógica por ser totalmente contraditório. É distinto do falso, que pode não ser contraditório.” [57] E cita pensadores que fizeram uso da palavra absurdo na filosofia. Começa dizendo que “o pai das filosofias do absurdo é Kierkegaard”. Cita a filosofia existencialista para quem há a “impossibilidade de se justificar racionalmente a existência das coisas e de lhes conferir um sentido.”[58] Cita Sartre, que ligou o absurdo à existência de Deus. E, por fim, cita que a partir de Camus e Kafka, o absurdo se dará “notadamente no domínio da moral ou da metafísica, para designar o ‘incompreensível’, o ‘desprovido de sentido’ e o ‘sem finalidade’.”[59]

Outros dicionários falam de “Demonstração por absurdo” que é “a que demonstra uma proposição, provando que sua contraditória é absurda ou contraditória em hipótese.” [60]  Ou então, a “Redução ao absurdo” que é a operação que consiste em tirar de uma proposição uma consequência absurda, o que mostra a falibilidade dessa proposição.” [61]

 

2.2.      Aproximações ao Tema do Absurdo

 

Saindo dos dicionários e pensando um pouco mais sobre o absurdo, poderíamos dizer que o absurdo é aquilo que acontece mas não poderia acontecer. É o impossível que se torna realidade. É o impensável feito pensamento pela concretude dos fatos. É o não aceitável que embora acontecido, continua como inaceitável.

É quando a lógica do mundo externo, objetivo dos fatos, não corresponde mais harmoniosamente com a lógica do mundo interno dos pensamentos. Aí está o absurdo e o reconhecemos”.[62]

Essa falta de harmonia entre os dois mundos vem da falta de um ponto de ligação, a lógica. Há aí um abismo entre aquilo que é e o que pensamos ou gostaríamos que fosse. O que liga os abismos é a corda cortada da razão, a ponte inexistente da harmonia. O abismo é, pois, repetindo, essa incompreensão absoluta daquilo que aconteceu mas jamais poderia ter acontecido, do impossível que se realizou, do impensável que se tornou pensamento, do inaceitável que continua inaceitável apesar da sua existência.

Sua força é tamanha que a tentativa da racionalização e da aceitação dos absurdos que eliminam qualquer tentativa de ligação entre os mundos, ao contrário, amplifica o abismo da nossa impotência fazendo-nos chegar à questão do sentido último da vida, isto é, de seu significado e validade.

Como unir esse abismo, como preencher sua fundura e aliviar sua espessura?

Mesmo já usando termos camusianos, nossa intenção é trazer algumas aproximações ao tema na tentativa de abarcá-lo a partir de idéias que tenham ligação com o absurdo para só depois pensarmos com mais vagar sobre o pensamento de Camus a respeito.  O conceito, pela própria incapacidade de definição, chama para si uma variada gama de palavras e imagens para capturar o seu sentido.

Da mesma maneira, para se capturar o sentimento do absurdo (expressão camusiana) é preciso evocar outros sentimentos a fim de melhor compreendê-lo. Sentimentos como desconforto, impotência, nostalgia, náusea, pessimismo, desespero, inconformismo, angústia, falta de sentido são alguns deles.

Filósofos como Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard, Chestov , Sartre, Cioran e outros expressaram esse sentimento do absurdo em suas obras. Nietzsche foi dentre todos a maior influência no pensamento de Camus. Leitor ávido da obra deste filósofo, vemos espalhados por seus livros constantes citações a ele. Todo o pensamento de Camus caminha muito próximo de Nietzsche como podemos ver em apenas duas citações: “É inevitável que a existência tal como é, sem sentido ou finalidade se repita; é imprescindível que o homem, não possuindo outra vida além desta, a afirme. Não temos escapatória: estamos condenados a viver inúmeras vezes e todas elas, sem razão ou objetivo; tudo o que nos resta é aprender a amar nosso destino.”[63]     Na sua doutrina do Retorno Eterno ele disse: “Se o mundo pudesse enrijecer, secar, morrer, tornar-se nada, ou se pudesse alcançar um estado de equilíbrio, ou se tivesse em geral algum alvo que encerrasse em si a duração, a inalteridade, o de-uma-vez-por-todas (em suma, dito metafisicamente: se o vir-a-ser pudesse desembocar no ser ou no nada), esse estado teria de estar alcançado. Mas não está alcançado…”[64]

Entretanto, Camus não permanecerá no absurdo mas sairá dele pela revolta.

Camus analisará Heidegger, Jaspers, Chestov, Kierkegaard,  e Husserl em O Mito de Sísifo, no qual também citará Sartre, que expressou esse sentimento do absurdo como um mal estar, a náusea do homem moderno.  Diz Sartre: ‘mediante o homem é que o nada irrompe no mundo’.”[65] Não há saída para o Nada e para a Náusea. A náusea se dá em meio ao convívio humano, onde o outro se faz meu inferno.[66]Já não posso falar, inclino a cabeça. O rosto do Autodidata está bem perto do meu. Sorri com ar fátuo, bem perto do meu rosto, como nos pesadelos. Mastigo com dificuldade um pedaço de pão que não me decido a engolir. Os homens. É preciso amar os homens. Os homens são admiráveis. Sinto vontade de vomitar – e de repente aqui está ela: a Náusea.”[67]

Emil Cioran é outro filósofo contemporâneo que aproximou o sentimento do absurdo ao pessimismo e à falta total de perspectiva do ser humano. “Aonde pode levar tanto vazio e incompreensão? Nós nos apegamos aos dias porque o desejo de morrer é demasiado lógico, portanto ineficaz. Porque se a vida tivesse um só argumento a seu favor – distinto, de uma evidência indiscritível – se aniquilaria.”[68]

O segredo de minha adaptação à vida? Mudei de desespero como quem muda de camisa.”[69]

Há também outras aproximações ao tema e ao sentimento do absurdo que não só a filosófica. O teatro do absurdo de Samuel Beckett, Ionesco e Jean Genet, o absurdo expresso pelo avesso da razão em seus vãos livres no surrealismo, nos filmes “repetitivos” de Luis Buñuel ou na falta de sentido em ”Não Matarás” de Krysztof Kieslowski,  na literatura de Dostoievsk ou Kafka, nas expressões artísticas “sem nexo” da pós-modernidade etc. Isso sem falar na menção bíblica ao tema do absurdo que examinaremos no Capítulo 4.

A poesia é lugar privilegiado para a aproximação ao tema e sentimento do absurdo. Pela poesia também busca-se, pela palavra em suas mais variadas formas de expressão, o que foi perdido. Em sua beleza, a poesia fala da vala, do abismo existente entre nós e a vida; ela é a ponte inexistente desse abismo onde as palavras apenas projetam suas sombras. Como neste poema de T.S. Eliot:

 

Entre a idéia

E a realidade

Entre o movimento

E o ato

Cai a sombra

 

Entre a concepção

E a criação

Entre a emoção

E a resposta

Cai a sombra

 

Entre o desejo

E o espasmo

Entre a potência

E a existência

Cai a sombra

 

A poesia nos falará da ausência de algo, do desconforto, da nostalgia, do deslocamento, da fugacidade da vida, das relações quebradas,  da estranheza das coisas,  lugares e de nós mesmos, de alguma coisa que estará sempre para além do tangível; ela será o testemunho de nossa condição, aproximando-nos do absurdo da vida.

E fechando este ponto de citações, podemos dizer que esse sentimento do absurdo necessita de conteúdo e forma para expressá-lo. Mas em função da limitação da razão para dar significado ao inexplicável, conteúdo à forma, essa amplidão de sentimentos acaba por se ancorar mais na forma do que no conteúdo. Entretanto,  a forma também está em crise. As palavras vão perdendo força e não abarcam os fatos neles mesmos. Fica-se com a impressão de que novas palavras poderiam trazer novos sentidos, ou então, e enquanto elas não vêm, tenta-se a repetição das palavras já existentes como tentativa de busca de novos conteúdos para velhas formas, ou de novas formas para velhos conteúdos. Como disse Arnaldo Jabor: “É que hoje os fatos estão superando as interpretações. Não há palavras que dêem conta das novas coisas. O mundo aboliu certezas. As palavras novas gemem por existir”. [70]

Em todas as aproximações ao absurdo, há uma forma de relacionar-se com o tema que  também as conduzem a diferentes direções e posturas.

Uns optam por saídas claras, outros nem tanto. Uns explicam o absurdo às vezes sem sabê-lo, e outros tentam caracterizá-lo, explicando suas razões. Uns revelam, outros encobrem, uns simplesmente descrevem, outros conceitualizam. Uns optam pelo  sobrenatural, o que será irracionalidade para outros. E outros ainda tentam usar da racionalidade para explicá-lo e tentar até conviver com ele. Essa será a opção de Camus.

 

2.3.      A Noção de Absurdo no Pensamento de Camus

 

2.3.1.   A Felicidade

 

A noção de absurdo em Camus surge de um profundo amor pela vida. A beleza da vida e a possibilidade do encontro da felicidade nela o faziam profundamente ciumento e invejoso: “Sou invejoso, porque amo demais a vida para não ser egoísta.”[71]

Essa noção veio a ele muito cedo. Ainda jovem e por vezes doente, como vimos, Camus parecia ter experimentado o que somente os grandes místicos experimentaram, a experiência do todo, cuja aparição faz a vida encher-se de pleno significado. Contudo, essa presença absoluta de significado encontrado na vida terá diferentes causas e diferentes consequências tanto para Camus quanto para os místicos.

A diferença ocorrerá também no resultado dessa experiência  que se dá no limite da intensidade do momento. Camus quer “nutrir-se da intensidade do momento”, postura que Jean Grenier comentara assim: “Nada, portanto, que se assemelhe à vontade de um esteto ou mesmo de um místico, de destruir-se num instante”[72].

A experiência da plenificação da vida traz também a ausência completa de uma possível razão e sentido. O que para os místicos será a presença de Deus como razão e sentido absolutos que contem em si toda a eternidade,  para Camus será a brevidade e limitação do tempo de gozo da vida e a certeza do fim desse gozo absoluto. O que lhe irá completar não é a experiência com o transcendente mas a experiência com a vida concreta. Por isso sua plenificação será sem lágrimas, e sua paz sem alegria. Isso é o que lhe completa.[73]

Camus, que recebeu uma forte influência do pensamento grego e da cultura mediterrânea, encontrará o prazer absoluto no corpo. A felicidade estará no corpo, na natureza e nessa relação e não em um ser transcendente. A promessa de felicidade cabe no mundo, nas coisas naturais. Seu sentido está aqui, não é preciso transcendência, pois ela seria a negação dessa promessa. O “ciúme de viver” ao qual ele se refere em Bodas em Tipasa é o profundo amor pela vida numa explosão de um corpo jovem em sua aproximação ao mundo, e não a tentativa/esperança de alcançar um outro mundo, futuro, e acessível somente pela fé, que descarta este corpo cheio de vida,  presente e único. Camus prefere a aproximação do corpo a este mundo:

Mesmo aqui, eu sei que nunca me aproximarei suficientemente do mundo. Preciso ficar nu e depois mergulhar no mar, todo perfumado ainda das essências da terra, lavá-las naquele, e enlaçar sobre minha pele o amplexo pelo qual há tanto tempo suspiram, lábios colados aos lábios, a terra e o mar. Entrando na água, eis a emoção viva, a subida de uma viscosidade fria e opaca, e depois o mergulho em meio ao zumbido dos ouvidos, nariz escorrendo e boca amarga – o nado, braços envernizados de água saindo do mar para se dourarem ao sol e recaindo numa torsão de todos os músculos; o correr da água sobre meu corpo, essa posse tumultuosa da onda pelas minhas pernas – e a ausência de horizonte. Na praia, é a queda na areia, abandonado ao mundo, retornado à minha gravidade de carne e osso, estupidificado de sol com, de vez em quando, um olhar para meus braços onde pedaços de pele seca descobrem, com o deslizar da água, a penugem loira e a poeira do sal.”[74]

Eis aí a “glória: o direito de amar sem medida.”[75]

E junto do corpo e da natureza, o prazer, não regulado pela noção inexistente de pecado, encontra-se em outro corpo, e para Camus, no corpo de mulher.  Para ele  a sensualidade não é pecado e sim libertação, uma forma de felicidade.

Há um único amor no mundo. Abraçar um corpo de mulher é também reter junto de si essa estranha alegria que desce do céu para o mar…A brisa é fresca e o céu é azul. Gosto desta vida com abandono e quero falar dela com liberdade: ela me dá orgulho de minha condição de homem. No entanto, muitas vezes mo disseram: não há de que se orgulhar. Sim, há de quê: deste sol, deste mar, de meu coração pulando de juventude, de meu corpo com gosto de sal e do imenso cenário em que a ternura e a glória se encontram no amarelo e no azul. É na conquista disso que preciso aplicar minha força e meus recursos… Não abandono nada de mim mesmo, não ponho máscara nenhuma: basta-me viver, que vale em verdade todas as receitas que eles tem para o bem viver.”[76]

O que deve valer não é a busca de uma esperança que fale de uma outra vida, além dessa para a realização do prazer. Há nessa vida o prazer e a alegria. Viver esta vida é o grande desafio. E isso deve bastar. Buscar por uma outra vida além dessa seria engano, seria viver de máscaras, seria esquecer que essa vida nos oferece a possibilidade do prazer: “… e chamo imbecil aquele que tem medo de gozar[77]

Há também nessa vida a possibilidade de se viver e de se orgulhar de viver: “… não posso impedir-me de reivindicar o orgulho de viver que o mundo inteiro conspira em me dar.[78] Assim escreve Camus em Bodas em Tipasa, lugar onde não se demorava mais que um dia para não ter demais. Lá ele descreveu parcialmente essa experiência do todo, da vida em toda a sua potência de felicidade, liberdade e prazer. Lá Camus vivia inteiramente, mesmo que por um dia. Como ele escreveu:

Basta-me viver com todo o meu corpo e testemunhar com todo o coração. Viver Tipasa, testemunhar, e a obra de arte virá em seguida. Há aí uma liberdade.”[79]

Executara bem o meu ofício de homem e o fato de ter conhecido a alegria durante um dia inteiro não se me afigurava um êxito excepcional, porém a realização comovida de uma condição, que em certas circunstâncias, nos impõe o dever de ser felizes. Reencontramos então uma solidão, mas dessa feita na satisfação.”[80]

Seu amor à vida e a experiência de seu corpo o lançam na aproximação do mundo, à natureza e aos outros. Essa é  a idéia de felicidade em Camus. Sua noção de felicidade vem daquilo que ele experiencia, isto é, vive e testemunha. Seu corpo é seu lugar de impressões. É dele que Camus apreende o mundo e vê nele enorme possibilidade de felicidade.

Come-se mal nesse café, mas há muitas frutas – pêssegos principalmente, que a gente morde sem cortar ou descascar, de modo que o suco escorre pelo queixo. Com os dentes fincados no pêssego, escuto as batidas no meu coração subirem-me aos ouvidos, e escancaro os olhos. Sobre o mar, o silêncio enorme do meio-dia. Todo ser belo com o orgulho natural de sua beleza e o mundo hoje deixa seu orgulho porejar por todos os lados. Diante dele, porque negaria eu a alegria de viver, se sei encerrar tudo na alegria de viver? Não há vergonha em ser feliz”.[81]

Em Bodas em Tipasa, Camus celebra e exalta a vida, mas não sem o sentido de absurdidade que essa exaltação aflora. Essa celebração é intensa, até desesperada mas nunca esperançosa. Quanto mais a vida lhe valer, maior será o absurdo que ela lhe trará. A felicidade pois é algo difícil pois traz sempre em si o sentimento da absurdidade. Pior que sofrer, é ser feliz. A vida é essa confluência entre a felicidade e a absurdidade ao mesmo tempo: “Tudo o que exalta a vida, aumenta ao mesmo tempo sua absurdidade. No verão da Argélia, compreendo que só uma coisa é mais trágica do que o sofrimento, e é a vida de um homem feliz. Mas também pode ser o caminho de uma grande vida, pois leva a não trapacear”.[82]

Felicidade e absurdo não se excluem, mas vivem conjuntamente. Camus diz que seria errado pensar que um nasce do outro e vice-versa. Eles se pertencem, e “não se descobre o absurdo sem se ter tentado a escrever algum manual de felicidade…só existe um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra”.[83]

A busca da felicidade por Camus é fruto de seu intenso amor pela vida e irá acompanha-lo até o fim de sua vida. E quanto mais ele a  busca mais se encontra com o absurdo. “Quanto mais apaixonante é a vida, mais absurda é a idéia de perdé-la”.[84] Entre a felicidade e o absurdo, Camus ficou conhecido infelizmente mais pelo absurdo do que pela felicidade.  Entretanto, a felicidade é o seu centro, e o símbolo escolhido por ele para dizer de todo o seu pensamento será o sol do meio-dia, invencível e inextinguível.

Em uma entrevista concedida em 1951 a Gabriel d’Aubarède, Camus diz:

Quando acontece de eu olhar o que é mais fundamental em mim, o que eu encontro é um gosto pela felicidade. Eu tenho um grande gosto pelas pessoas. Não tenho nenhum desprezo pela raça humana. Penso que qualquer um pode sentir orgulho de ser contemporâneo de certo número de homens de nossos dias os quais eu respeito e admiro… E no centro de minha obra existe um sol invisível.”[85]

 

2.3.2.  O Absurdo em O Avesso e o Direito e Bodas em Tipasa

 

Começamos falando da noção de felicidade em Camus para desvencilharmos a visão fácil e simplista de um autor pessimista em sua essência. Não é pelo fato de Camus ter pensado o absurdo e o ter colocado em posição de destaque em seu pensamento que isso fará dele um pensador maldito, um escritor pessimista, um filósofo amargurado nem sua obra será mórbida ou taciturna. Pois é essa mesma leitura fácil que fará de Camus um existencialista, o que ele mesmo rejeitou em outra entrevista, desta vez a Jeanine Delpech em 15/11/1945. Disse Camus:

Não, eu não sou um existencialista. Sartre e eu ficamos sempre surpresos ao ver nossos nomes ligados. Nós até pensamos em publicar uma declaração breve na qual os abaixo assinados declaram que eles não tem nada em comum um com o outro e refutam ser responsabilizados pelos erros nos quais eles possam incorrer. Isto é uma piada, certamente. Sartre e eu publicamos todos nossos livros, sem exceção, antes de nos encontrarmos. Quando nos encontramos, foi para perceber o quanto éramos diferentes. Sartre é um existencialista, e o único livro de idéias que eu publiquei, O Mito de Sísifo, foi diretamente contra os chamados filósofos existencialistas.”[86]

Camus ficou mundialmente conhecido pela primeira fase de seu pensamento, notadamente por O Estrangeiro, O Mito de Sísifo e A Peste.

Exceção de A Peste, o autor de O Estrangeiro e O Mito de Sísifo teria uma enorme facilidade de ser descrito como pessimista, sentimento comum aos existencialistas. Contudo, como diz V. Barreto, “O pessimismo de Camus é sempre acompanhado da presença mediterrânea.[87] Essa presença mediterrânea será o sol do meio-dia. Continua V. Barreto: “Ele (Camus) não se deixa prender no escuro pessimismo de alguns escritores dos país nórdicos. A vida ao ar livre, com sol forte queimado, é uma realidade, tanto quanto as limitações humanas, que terminam sendo a causa do pessimismo.”[88]

Pois serão as limitações da vida seus próprios inimigos. Contra a vida e a felicidade estão “a morte e suas variações, a doença e a velhice.”[89]

A vida, pois, depara-se consigo mesma em sua inalterabilidade de potencialidades e de limitações.

Nessa relação umbilical de forças, o que aparece como pano de fundo da vida, mais do que uma relação de dualidade, é uma relação de paradoxos e ambigüidades da existência que não nega nem o avesso nem o direito.[90]  Esta será a influência do pensamento grego em Camus.

Camus descobre muito cedo a alegria e a paixão de viver, como também descobre cedo o lado trágico da vida. Por isso, haverá sempre em Camus um “Horreur de mourir” (pavor de morrer) unido a uma “Jalousie de vivre” (ciúme de viver), “dois sentimentos básicos encontrados no homem”.[91]

A experiência destes sentimentos será o pano de fundo de suas primeiras obras,

O Avesso e o Direito e Bodas em Tipasa que, junto com os posteriores O Estrangeiro, O Mito de Sísifo, Calígula e O Equívoco, compõem o chamado ciclo do absurdo. A análise do absurdo nestas duas primeiras obras tem o intuito de mostrar a origem do absurdo na obra de Camus, mostrando como essa idéia esteve desde sempre presente em seu pensamento.

Em O Avesso e o Direito, Camus vê que “não há amor de viver sem desespero de viver.[92] Essa obra será sua fonte, seja para a iluminação do sentimento do absurdo, seja para suas revoltas. Como diz no prefácio de O Avesso e o Direito em 1958: “… sei que minha fonte está em  O Avesso e o Direito.

Nessa obra Camus deixa vazar seu inconformismo em face da impotência da vida contra a morte, a velhice e a solidão. Já aqui a morte havia sido descoberta como uma certeza. Certeza que fará a vida trágica. “A morte descoberta penetrará tudo. É ela que faz trágica a dor e a injustiça sofrida pelos homens. É ela que faz trágica a felicidade. Sofrer para morrer. Ser feliz e morrer.[93]

A descoberta da morte o fará descrever suas variações nos quatro ensaios do livro. Estes ensaios têm  poucos personagens sem nome. Há uma velha inválida esquecida pela família e por Deus, um velho que “contava suas pobres aventuras: bobagens supervalorizadas, cansaços que ele celebrava como vitórias” e uma mulher também velha que emprega o dinheiro de uma herança na compra de um jazigo. Há também ali a menção de lugares como Praza, Palma e Ibiza que servem de cenário para suas investigações sobre a condição humana. E, por fim, um ensaio em que relembra sua infância e sua relação com a mãe que era surda e sua avó autoritária. Temos aí em diversas situações, sua solidão, sua distância, seu cansaço, seu grito, enfim, seu monólogo, seu silêncio, seu fim.

Camus nos chama ao dualismo na conciliação dos personagens. Diz ele: “Isso tudo não se concilia? Bela verdade. Uma mulher que se abandona para ir ao cinema, um velho que não é mais ouvido, uma morte que nada resgata e, então, do outro lado, toda a luz do mundo… A morte para todos, mas a cada um a sua morte. Afinal, o sol nos aquece os ossos, apesar de tudo.[94]

Muito embora Camus apele sempre ao diálogo, aprendeu no silêncio do mutismo da mãe que as imagens poderiam ser lugar privilegiado para os sentimentos e para a absorção do absurdo da vida. “… e a vida inteira resume-se a uma imagem.[95]

Camus parecia ter dentro de si toda a intensidade da vida, como já dissemos, mas que só se manifestava pela revelação da morte, também recebida com a mesma intensidade. Daí a descrição: “Sim, essa plenitude sem lágrimas, esta paz sem alegria que me completava…”[96]

Essa paixão sem explosão nem pavio, lhe dava a sensação do desejo sem objeto: “No meu caso, eu tinha vontade de amar, como se tem vontade de chorar. Parecia-me que cada hora de meu sono seria de agora em diante roubada da vida… quer dizer, do tempo do desejo sem objeto.”[97]

A descoberta da morte o fará dar atenção ao tempo, pois a vida corre para a morte. Ao nascermos, o botão da bomba que é nossa vida começa contagem regressiva. Daí o alerta de Camus: “A vida é curta, e é pecado perder tempo.”[98]

E diante da escuridão e da vida, “a grande coragem é, ainda, a de manter os olhos abertos, tanto sobre a luz quanto sobre a morte.[99]

Bodas em Tipasa, tradução de Noces em 1939, é uma espécie de continuação do que Camus escreveu em O Avesso e o Direito sem a forma literária deste. No dizer de V. Barreto, “existe um diálogo surdo entre os dois livros. O primeiro mostra-nos Camus caracterizando o fardo da vida como sendo feito de solidão; em Noces descobre que as menores alegrias experimentadas podem servir na verdade como instrumentos de revelação.”[100]

Em Bodas em Tipasa, a descoberta da morte já se amplificara em suas consequências e manifestações. A noção de absurdo expressa em O Mito de Sísifo tem aqui sua formulação inicial. Camus começa dizendo que “Antes de entrar no reino das ruínas, somos pela última vez espectadores.”[101]

Depois de entrarmos no reino das ruínas, isto é, no descobrimento, no desvelar da morte ante nossos olhos, já não mais olhamos de fora, somos todos personagens no absurdo “palco do mundo.”[102]

Esse palco tem sua própria melodia, flores, o azul do céu e o sentimento de ser estranho no mundo. Há o sol da manhã, o vento através dos pórticos, as ruínas de colinas antigas, os odores todos e a certeza do fim. Não o fim dessas coisas, mas o nosso fim, o fim de todos os personagens.

Contudo, antes do fim há ainda o começo da relação ser humano-mundo. Essa relação é descrita em Bodas em Tipasa. “O título Noces dá bem a intenção de Camus. Representa a grande libertinagem da natureza e do mar, o casamento das ruínas e da primavera, casamento do homem com a terra, acordo amoroso da terra e do homem. É como disse Louis Facon, o canto nupcial do homem com a natureza.”[103]

Diante da natureza o ser humano encontra inspiração para sua felicidade. Não sua salvação mas sim “pontos de referência.[104]

A vista dos campos, as flores, os perfumes, as árvores, tudo isto dá ao coração do homem “… uma alegria estranha[105]. Essa alegria é a mesma que um ator tem quando sabe, no íntimo, que representou bem seu papel.

Contudo, o contato com Djemila, cidade de ruínas, dirá ao homem que a partir dali não se vai mais a lugar nenhum e nem ali se pára. “É um lugar de onde se volta.[106]

Ali, em meio a uma natureza pálida onde somente o sol e o vento se mostravam, o presente se tornava a única realidade existente. Mais uma vez O Mito de Sísifo esboçado aqui: “Porque para um homem tomar consciência de seu presente é não esperar mais nada.[107]

O coração se inquieta e a morte mostra suas garras horríveis e sujas.[108]

Em O Vento em Djemila, a presença inalterável da morte teima por sucumbir e esgotar toda a força, pujança e energia da vida na juventude.

Deve ser isso a juventude, esse duro téte-à-téte com a morte, esse medo físico do animal que ama  o sol… a juventude não tem ilusões. Não lhe sobre tempo nem devoção para construi-los.”[109]

A morte se torna ainda mais repugnante em função de toda a força que a vida traz na juventude. Ante essa força estrondosa e barulhenta, a morte silencia seu estardalhaço, transformando-a em um chiado imperceptível.

A vida se mostra na busca frágil mas incessante do prazer e da felicidade, mesmo que curto,  mesmo que irrisório, mesmo que imperceptível. Pois enfim, é o que a morte nos deixou.

Em O Verão em Argel, o “excesso de bens materiais[110] deixa o ser humano atônito em sua ligação com a terra. Ligação essa tão profunda que a vida fica toda coberta de naturalidades, de sensualidade e prazer. Naturalidades que não abrem espaço ao supra-natural, ao divino, ao imaterial. Nem mesmo ao eterno, pois todo o eterno pretendido é o sentimento daqueles que se foram e deixaram memórias que logo se irão também.

Até mesmo a morte é natural:

Mas, afinal de contas, não vejo o que a morte pode ter de sagrado e sinto bem, ao contrário, a distância que há entre o medo e o respeito. Tudo aqui respira o horror de morrer num país que convida à vida.”[111]

A vida e a morte convivem em uma harmonia sem melodia e som pois, “tudo o que exalta a vida, aumenta ao mesmo tempo a sua absurdidade.”[112]

Rejeitar a esperança é caminhar no único caminho da vida sem se  iludir. “Pois, se há um pecado contra a vida, talvez não consista tanto em desesperar dela quanto em esperar outra vida, e furtar-se à implacável grandeza desta… pois a esperança, ao contrário do que se imagina, equivale à resignação. E viver não é resignar-se.”[113]

Por fim, Bodas em Tipasa termina com O Deserto.  Aqui Camus se mostrará veementemente contra a esperança e a imortalidade.

Para Camus, “o mundo é belo e, fora dele, não há salvação” e a “felicidade nasce da ausência de esperança, em que o espírito encontra sua razão no corpo.”[114]

A terra é pois o lugar da salvação. Sem deuses, sem esperanças, sem truques nem enganações. “Nesse grande templo que os deuses desertaram, todos os meus ídolos tem pés de barro.”[115]

Enfim, as noções de felicidade e de absurdo já estavam a esta altura como que prontas para Camus. Mas será só em O Mito de Sísifo que ele irá teorizar essa relação intrínseca. Ele diz:: “A felicidade e o absurdo são filhos da mesma terra. São inseparáveis”[116] . O Mito de Sísifo será a tentativa filosófica de explicar o que ele já havia feito na literatura, O Estrangeiro, O Avesso e o Direito, Bodas em Tipasa e no teatro, O Equívoco e Calígula.

 

2.3.3.   O Absurdo em Calígula e em O Equívoco

 

Estas duas peças teatrais representam o período do absurdo na dramaturgia de Camus.

A noção de absurdo nestas obras acompanha o que já vinha sendo desenvolvido em obras anteriores. Calígula foi escrito em meio a formação de O Estrangeiro e Bodas em Tipasa. Camus começa a escrever O Mito de Sísifo no mesmo ano em que escreve Calígula, que somente será encerrado em 1945.

Vale dizer ainda que no período de criação de Calígula, Camus estava sofrendo de tuberculose, o que poderia tê-lo feito “carregar nas tintas” de sua história.

Isso tudo é dito para que se entenda a primeira etapa de sua obra. E Calígula e O Equívoco são a representação teatral, dramática desse período chamado de absurdo.

Não cabe aqui a análise do teatro de Camus. Contudo, é preciso dizer que sua dramaturgia é obviamente carregada pelo seu estilo de escrever, sendo o dramaturgo Camus umbilicalmente influenciado pelo escritor Camus. Não era o teatro que dava forma à sua escrita mas sua escrita que desenhava sua dramaturgia.

Talvez por isso Vicente Barreto tenha dito que “as peças de Camus podem ser lidas como exemplos de oratória e dialética, mas são deficientes como drama.”[117]

Calígula e O Equívoco são dois textos densos que comportam uma oratória expressiva, marcante e trágica. E será a tragédia que Camus escolherá para representar sua dramaturgia e assim se expressar. “A intenção de Camus era a de retratar no teatro os dilemas metafísicos de nossa época. A crise espiritual contemporânea deveria encontrar em cada personagem o seu retrato vivo.”[118]

Camus mesmo defendeu a escolha da tragédia em detrimento de outros gêneros dizendo que “na tragédia, cada força em confronto é ao mesmo tempo boa e má.”[119]

Na tragédia têm-se as ambigüidades e os antagonismos presentes e não excludentes. Na tragédia tem-se toda a paixão e dor expostos, todo amor e ódio compartilhados.

Para Camus nada poderia ser menos do que tudo isso junto. Seu amor à vida era desesperado, sua sede de viver era sufocante. Ao constatar a morte como parte intrínseca e certa da vida, seu amor à vida torna-se ódio desesperado contra a morte, e sua sede pela vida o faz ir até o impossível para tentar superar o absurdo da morte em um mundo que não lhe ouve os gritos nem lhe presta atenção.

Pois assim será em Calígula e em O Equívoco.

Em Calígula, a noção de absurdo se encarna na vida desse imperador que perde a noção de certo e errado, de justiça e liberdade, transformando-se a si mesmo na expressão do absurdo. Na sua luta absurda apaixonada pela vida, mas desregulada e desconexa contra a morte, ele destrói-se  a si mesmo e morre sem conseguir eliminar o absurdo da vida. Em sua ânsia de viver ele encontra a morte. Encontramos em Calígula a mesma obsessão com a verdade e em ser fiel a si mesmo como em Meursault de O Estrangeiro. Na definição de Camus, Calígula “recusa todos os valores. Mas se a verdade é negar os deuses, o seu erro é negar os homens. Não compreendeu que não se pode destruir sem se destruir a si próprio. É a história do mais humano e do mais trágico dos erros.”[120]

Calígula perde sua irmã e amante, símbolo de critério e de ausência do absurdo na vida.  Sua perda é o contato demolidor com o absurdo. Na vivência desse absurdo, Calígula faz por ajustar a sua lógica ao absurdo. Ele não mais descansará: matará com uma razão absurda, destruirá a partir de critérios absurdos, e sua justiça e liberdade pessoal sem limites será seu guia para a morte. “Vivo, mato, exerço o poder delirante do destruidor, ao pé do qual o do Criador parece uma macaquice. Isso é ser feliz.”[121]

Sua lógica é absurda. Calígula quer ter a lua para si e nesse projeto emprega todos os seus esforços insanos.. Ante o absurdo da morte somente outro absurdo para resgatá-lo: ter a lua. No dizer de Calígula: “Juro-te que esta morte não quer dizer nada, apenas significa uma verdade que torna a lua necessária.”[122]

Diante dessa verdade enviesada, ele percebe a verdade do ser humano. Diz ele: “Os homens morrem e não são felizes.”[123]

Calígula é, pois, a busca desesperada pela felicidade, a paixão impetuosa pelo impossível, não só para protestar simplesmente contra o absurdo, verdade descoberta por ele, mas para superá-lo. Superação que traria à vida significado e razão.

Mas o seu fim é trágico. Calígula acaba por não conseguir a lua e sua morte é a vitória do impossível.

Em O Equívoco, escrito depois de A Peste e antes da primeira das Cartas a Um Amigo Alemão, período de mudança de seu pensamento, a noção do absurdo se faz presente e trágica também.

Em uma estória simples Camus fala da solidão de João que, estrangeiro no mundo, procura ir além de Meursault, tentando reencontrar sua família e pátria. João diz da necessidade da solidariedade da felicidade: “Não, eu tenho obrigação de velar por minha mãe e minha irmã. Esqueci-as durante muito tempo.”[124] E é no quarto do hotel que João sente outra vez o sentimento do absurdo a lhe roçar o coração, a despeito do partilhar de felicidade: “O céu escurece. É assim em todos os quartos de hotel onde todas as horas da noite são difíceis para um homem que está só. Eis que, no mais fundo de mim, recomeça a minha velha angústia, como uma ferida ruim que se agrava a cada movimento meu. Bem sei do que se trata. É o medo da eterna solidão, o receio de que não haja uma resposta. E quem poderia dar-nos a resposta, num quarto de hotel?[125]

A pergunta ficará no ar, pois logo batem na porta. Sua resposta estará na falta de resposta, seu grito não terá quem ouça. E o medo e o receio serão companheiros da felicidade até que o fim certo venha. Não há salvação para João. Ele será assassinado.

Assim como não haverá salvação para Martha, irmã de João  que o assassinará com sua mãe sem o saber. Moça que com sua juventude, buscava o tempo de poder gritar contra o absurdo de sua vida. E é com planos de superá-lo que ela mata seu irmão. Martha assassina seu irmão porque quer amar, quer dar um fim às perguntas e à solidão, quer uma terra de horizontes: “Ah, mãe! Quando tivermos muito dinheiro e pudermos abandonar estas terras sem horizonte, quando deixarmos atrás de nós esta cidade chuvosa, e esquecermos este país de sombra, no dia em que enfim estivermos diante do mar com que eu tenho sonhado tanto, nesse dia ver-me-á sorrir!”[126]

Mas o fim de Martha será diferente. Na luta contra o absurdo o que se encontra é o próprio absurdo. E assim se faz quando ela sabe que havia assassinado o irmão a fim de roubar seu dinheiro para cumprir seus sonhos. Novamente aqui se vê a liberdade sem limites levando a fins trágicos. O fim de Martha foi humilhante e desolador. Tentando escapar à morte de seu irmão e assim ao absurdo de seus atos, Martha opta pela saída da ajuda divina externa; fora de si mesma. No auge de seu desespero busca, grita e pede pela ajuda de um personagem que termina a peça com um sonoro e indiferente “não”. Em sua busca pela transcendência, tudo o que ela encontra é um Deus que lhe parecerá sempre mudo. Entretanto, levada pelo desespero resolve pô-lo à prova mas tudo o que ouve é um sonoro não.

Como um estampido que ensurdece, O Equívoco é a expressão trágica do uso desmesurado da liberdade e da ausência de saídas transcendentais ante o problema do absurdo.

 

2.3.4.   O Absurdo em O Estrangeiro

 

A literatura é a morada de Camus. E O Estrangeiro e A Peste são seus dois grandes romances. Pelo romance Camus expressa sua filosofia através de imagens. O romance pensa sempre em função de palavras e não em função de idéias como na filosofia. Camus dizia que era por palavras que ele pensava. Pelo romance, ele escapava do mundo etéreo e distante dos filósofos e se colocava mais perto da vida concreta e real das pessoas e expressava a condição humana.  Ele mesmo não se dizia um filósofo mas um artista.

O Estrangeiro é a tentativa de dizer da desordem da sociedade e da incoerência humana. Nesse romance, o absurdo é visto nas situações experienciadas pelo personagem central, Meursault, o herói absurdo. Por meio dele, Camus descreve a experiência absurda.

Este romance sairia de O Mito de Sísifo. Ou inversamente e mais verdadeiramente situado cronologicamente, O Mito de Sísifo é a explicação, a tentativa de teorizar a vivência de O Estrangeiro.

O Estrangeiro foi muito bem aceito e fez o autor conhecido em diversas partes do mundo. O romance pode ser dividido em duas partes. A primeira que narra a vida cotidiana de Meursault a partir da morte de sua mãe até o assassinato do árabe. A segunda parte é a história de seu julgamento e condenação à morte a partir da primeira parte, pois seu julgamento se fará à luz de sua reação à morte de sua mãe.

Camus diz que “O sentido do livro consiste exatamente no paralelismo das duas partes.”[127]

Com relação a Meursault, François Chavanes diz:

“Camus confidenciou a Roger Quilliot que no ponto de partida de seu romance ele tivera o desejo de descrever o comportamento de ‘um ser humano estrangeiro à sua vida, à vida tal como se concebe habitualmente, adaptado à natureza, mas inadaptado à sociedade’. E bem desta forma aparece Meursault.”[128]

Com relação ao conteúdo social e histórico, English Showolter Jr. diz que “O Estrangeiro não teve aparente relevância para os problemas políticos contemporâneos, mas em um amplo sentido moral, o livro explorou o problema aparentemente insolúvel do indivíduo em um universo absurdo e providenciou um antídoto contra o niilismo e o desespero.”[129]

A vivência do indivíduo em um mundo absurdo é vista em O Estrangeiro a partir das regras que regulam a vivência desse indivíduo no meio social. Essas regras são incoerentes pois escondem a verdade ao fazer os indivíduos mentirem para sobreviver. Estas mentiras tornadas verdade definem o absurdo como algo que se encontra extra-muros a estas leis. E assim será na condenação de Meursault: um homem que não chora no funeral da mãe é um homem absurdo. Camus vai dizer do prefácio da edição americana de 1956 que “o herói do meu livro é condenado porque ele não joga o jogo como querem. Nesse sentido, ele é um estrangeiro à sociedade na qual ele vive; ele vagueia pelas margens, nos subúrbios da vida privada, solitária e sensual.”[130]

O heroísmo que Camus reivindica para Meursault está na coragem absoluta do personagem em não mentir, em inverter os pólos de onde se localiza o absurdo e colocar no lugar certo. A verdade da sociedade é mentira e aí está o absurdo. Ser honesto é saber do absurdo e apontá-lo, mesmo que seu preço seja a morte. E é isso que Meursault faz.

Meursault denunciará o absurdo sem ter consciência dele. Sua razão está no cotidiano e na sucessão dos fatos de sua vida. Ele não usa da lógica para dizer da realidade do absurdo. Ele simplesmente vive, experimenta essa realidade.

A realidade do absurdo libera o ser humano para a liberdade, liberdade de expressões e de sentimento. O que não é fácil, pois como diz Camus, a mentira é “o que todos nós fazemos, todo dia, para simplificar a vida.”[131]

Meursault refutará a mentira e isso assustará a todos, mesmo que sem saber disso.

Camus foi acusado de fazer seus personagens quase inumanos. Entretanto, a possível inumanidade dos personagens de Camus, especialmente Meursault será marcada também por uma humanidade que  faria de Meursault  um herói absurdo “confuso, perplexo, inconsciente, incapaz de pensar claramente[132] , o que entretanto não lhe tira a lucidez.

Meursault não tem suas idéias claras, não as formula e, quase sempre, somente reage. Suas reações são incompreensíveis, ele não faz uso de momentos propícios a ele para explicar-se e sua fala é quase sempre monossilábica, quando não opta pelo silêncio.

Disse-me, antes de mais nada, que me pintavam como tendo um caráter taciturno e fechado e quis saber o que pensava a este respeito.

­­– É que nunca tenho grande coisa a dizer. Então fico calado – respondi.”[133]

Aqui Camus mostra sua desconfiança com relação à linguagem. O silêncio de Meursault não é despropositado para Camus. Além de fazer à crítica a sociedade que, por seu rígido complexo de justificativas gerais, espera pela fala de Meursault para atacá-lo e tirar dele qualquer argumento possível, seu silêncio é também seu alibi contra as palavras que constróem outros mundos e que poderia criar um outro Meursault, pior do que aquele que já haviam criado.

Nesse aumento ou quase criação de um novo sujeito, Camus denuncia o que Lourival Holanda chama de impostura literária, que é “o entusiasmo e a eloquência”. Diz ele ainda: “O episódio do espanto de Meursault ante os arroubos do Procurador ou da parrésia do Padre é exemplar. O arroubo (oratório) rouba o sujeito; leva-o à linguagem, além de si. O entusiasmo é transporte (divino?). Ainda: o pouco passo que separa o patético da patetice. O discurso que o excesso de sentimento anula e converte em cômico. Mas que ali exaspera o taciturno Meursault”[134]. Meursault se nega à paixão da palavra. Prefere o sentimento mediano do seu quase silêncio total.

Meursault sente-se mais à vontade com Marie quando se entregam à simples convivência, aos desejos e “dispensa-os da fala”. Lourival Holanda, professor de literatura, ainda diz que essa convivência, sem a necessidade da fala, “não deixa que a palavra os perca daquela entende silencieuse, em que as evidências dos sentidos vem como uma trégua ao absurdo do mundo”[135]

Pois se não há o que se entender, não há o porquê de se explicar.

Meursault expressa esse ponto falho entre a busca pelo entendimento e a incapacidade da expressão.

Para Meursault, as coisas simplesmente são ou não são. Nada importa na verdade.

Cito duas passagens de O Estrangeiro para captarmos esse sentimento.

Quando Meursault e Marie,  que mantém uma relação, falam de amor e casamento:

Contei a Marie a história do velho e ela riu. Estava com um dos meus pijamas, do qual arregaçara as mangas. Quando riu, voltei a sentir desejo por ela. Instantes depois perguntou-me se eu a amava. Respondi-lhe que isto não queria dizer nada, mas que me parecia que não. Ficou com um ar triste.”[136]

À noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar-me com ela. Disse que tanto fazia, mas que se ela queria, poderíamos nos casar. Quis, então, saber se eu a amava. Respondi, como aliás, respondera uma vez, que isso nada queria dizer, mas que não a amava.

            — Nesse caso, por que casar-se comigo? perguntou ela.

            Expliquei que isso não tinha importância alguma e que, se ela o desejava, nós poderíamos casar… Depois falou. Queria simplesmente saber se, partindo de outra mulher com a qual tivesse o mesmo relacionamento, eu teria aceitado a mesma proposta.

            — Naturalmente – respondi.”[137]

Segundo trecho, uma curta parte da conversa do juiz com Meursault no seu julgamento:

“– Por que o senhor atirou num corpo caído?

            Também não soube responder. O juiz passou as mãos pela testa e repetiu a pergunta, com a voz um pouco alterada:

            — Por quê? É preciso que me diga. Por quê?

            Eu continuava calado.

            …

            O calor estava cada vez mais intenso. Como sempre, quando quero livrar-me de alguém que mal estou escutando, demonstrei um ar de aprovação. Para surpresa minha disse,  triunfal:   — Viu, viu? Não é verdade que você crê e que vai confiar-se a Ele (Jesus)?

            É claro que mais uma vez disse não. Deixou-se cair na poltrona. Tinha um ar muito cansado. Ficou calado por alguns momentos…” [138]

Meursault não entende e não consegue se fazer entender. Seu único acesso de raiva e revolta, se dá na intromissão do capelão em querer providenciar sua salvação. Meursault não quer e não sente a necessidade de salvação. Mesmo em meio à certeza da morte diz que desejar outra vida “era tão importante quanto desejar ser rico, nadar mais depressa ou ter uma boca mais bem-feita. Era da mesma ordem.”[139]

Quando o padre começa a rezar, Meursault pula sobre seu colarinho e lhe despeja “sua alegria e cólera”. Seu desprezo pelas certezas o fez dizer que nenhuma das certezas do padre “valia um cabelo de mulher”.[140]

Contra o padre ele revela-se a si mesmo e a seu pensamento. Diz Meursault:

“Nada, nada tinha importância e eu sabia bem porquê. Também ele sabia porquê. Do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, à sua passagem, tudo o que me haviam proposto nos anos, não mais reais, que eu vivia. Que me importavam a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importava o seu Deus, as vidas que as pessoas escolhem, os destinos que as pessoas elegem, já que um só destino devia eleger-me a mim próprio e comigo milhares de privilegiados que, como ele, se diziam meus irmãos.

Como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por senti-lo tão parecido comigo, tão fraternal, enfim, senti que tinha sido feliz e que ainda o era.”[141]

Eis pois o fim da vida de Meursault. Vida absurda…

Vida absurda, sem propósito e razão. Sem um fim outro que não seja a morte. E entre o nascimento e a morte está a possibilidade da cólera, a vivência cotidiana da mais profunda indiferença do tanto faz para a vida, da convicção de que nada tem importância, do acaso, como a expressão do não sentido das coisas e da vida.

Contudo, a vivência do absurdo não precisa ser pessimista ou angustiante. Se Meursault só se revolta quando profundamente acuado e se entrega à indiferença que nada muda ou altera, pelo menos ele sabe por onde vai a felicidade e o prazer, a saber, no mar, no sol, no amor.[142]

Essa consciência de onde está a felicidade mostra um Meursault lúcido em sua relação com a vida. O absurdo não lhe tira a lucidez, como já dissemos, mas pelo contrário, a agudiza.

Como disse Sartre: “Certo é que temos a certeza de que esse herói é absurdo e que a lucidez implacável é sua principal característica.”[143]

Além de sua lucidez, Meursault é também um homem apaixonado pela vida.

Longe de ser privado de todo sentimento, ele é animado por uma paixão cuja teimosia a torna profunda, uma paixão pelo absoluto e pela verdade.”[144]

Finalizando, F. Chavanes nos fala de dois significados ou de uma dupla conclusão em O Estrangeiro: a metafísica e a social.

A conclusão metafísica, diz ele, é a aposta “para o absurdo e o nada, contra os quais é preciso se revoltar sem esperança”.[145]

Já a conclusão social fala da impossibilidade da justaposição de dois universos culturalmente diferentes, quais sejam, o universo do juiz, do patrão, do advogado, do diretor do hospício, do capelão da prisão[146]. São dois jogos diferentes onde os dois lados jogam sozinhos e não sabem jogar entre si.

 

2.3.5.   O Absurdo em  O Mito de Sísifo

 

O Mito de Sísifo é o fecho do chamado ciclo do absurdo. Esta obra foi escrita ao mesmo tempo de Calígula e O Estrangeiro.

Nesta obra, um livro de idéias, um ensaio mais do que um tratado filosófico, Camus  busca o significado da vida e uma estrutura que dê forma a este significado. Diz no início do livro que “Só existe um problema filosófico realmente sério: É o suicídio. Julgar se a vida vale a pena ser vivida é responder a questão principal da filosofia”. E depois: “Julgo, portanto, que o sentido da vida é a questão mais decisiva de todas”.[147] Nessa busca pelo significado da existência, Camus tenta uma outra via para além daquela já dada pela transcendência, que inclui a fé e a esperança numa vida futura. Camus não quer saber de uma vida futura. E também não quer saber de uma filosofia desvinculada da vida, etérea, enclausurada em pensamentos herméticos. Ele mesmo disse que só fala do que viveu.

* Continua na parte 2

* Este texto é um capítulo da tese de mestrado de Cláudio Carvalhaes. A utilização é permitida desde que citada a fonte.

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