Camus vai à vida para tirar dela suas verdades. Essa vida será para ele diagnosticada pelas “evidências que são sensíveis para o coração, mas que é preciso aprofundar para torná-las claras à inteligência” . Estas evidências como que intuições que brotam dos sentimentos da vida, darão à razão a função da delimitação das dificuldades, possibilidades e limites da própria vida. A razão será fundamental para explicar a condição humana e impedir o ser humano de se evadir de sua condição absurda, e não para captar todo o conhecimento, posto que impossível.
Assim caminha seu método. Seu trabalho é estar atento aos sentimentos que se evidenciam em seu coração e tentar formulá-los pela razão. Questão complicada para a filosofia cartesiana, que certamente relegaria o pensamento de Camus ao meio dos religiosos, ou dos literatos, sem maior crédito e/ou relevância.
Seu trabalho filosófico se iniciará a partir das intuições que se tornarão evidências, certezas da sensibilidade. Aí está o sentimento do absurdo. As certezas pessoais, quando encontradas, devem ser as norteadoras do pensamento. A sensibilidade que nos revela a condição humana, a solidão, o prazer, o sofrimento, a felicidade, a morte, será mais profunda do que a inteligência poderá jamais alcançar. E a sensibilidade se expressa de várias formas. Daí Camus usar o romance, o teatro e o ensaio, onde se vê que “o equilíbrio entre a evidência e o lirismo é o único que pode nos permitir aquiescer ao mesmo tempo à emoção e a clareza”.
Os conceitos virão pelo contato com a realidade, com as situações da vida. A narrativa das experiências, a descrição, será muito mais importante que a formulação e/ou análise de conceitos. A preocupação racional torna-se uma constatação existencial. Dessa forma temos no pensamento de Camus que “um dia de sol em Tipasa é a própria felicidade. A mãe que se cala é a própria solidão. A mulher que contempla seu túmulo é a própria morte. Calígula é a injustiça. Meursault é o absurdo. Rieux é a revolta”.
A cada um destes grandes sentimentos, um universo todo de beleza e/ou de dor se nos antepõe. E saberemos defini-los. Não pela razão, mas pela experiência. Entretanto, é preciso dizer que a experiência não traz em si o conhecimento pleno dos sentimentos, mas é parte necessária da percepção dizer que “todo verdadeiro conhecimento é impossível. Só se podem enumerar as aparências e se fazer sentir o clima”.
A Evidência e o Sentimento – o Surgimento do Absurdo em Camus
Mas passemos do método para a evidência do absurdo. Antes de dizermos o que é o absurdo para Camus e como ele se dá na vida, pensemos um instante sobre algumas questões: a relação da obra de Camus até então com O Mito de Sísifo; como nasce o absurdo em Camus; Por que o absurdo é tão importante para Camus? E porque fazer dele sua tábula rasa, ponto de partida?
O Mito de Sísifo é a tentativa de explicação, de investigação mais detalhada e acurada das atitudes humanas que Camus havia exposto de forma lírica em sua obra anterior. Neste livro, Camus abandona a narração das experiências para tentar explicá-las. Era preciso reunir suas considerações sobre a vida, jeito de vivê-la, o lugar da força, do amor e morte espalhados por seus escritos. Nesse processo, mesmo que em meio a contradições e incoerências, ele descobre e opta pelo sentimento maior e fundamental pelo que todo ser humano deveria passar, a saber, o absurdo. Este sentimento tomou e envolveu desde cedo sua vida. Embora, acredito, tenhamos deixado isso claro quando da análise de suas primeiras obras, esse sentimento, antes de ser expresso, foi vivenciado. Sem querer psicologizar seu pensamento, citarei alguns acontecimentos de sua vida para que consigamos ter em mente que o pensamento de Camus não se desvinculará de sua vida. Ao contrário, é do palco de sua vida que ele tirará o insumo necessário para escrever o roteiro de seu pensamento. E como já citamos no primeiro capítulo, e temendo o clichê: em Camus, obra e pensamento são a mesma coisa, confundem-se. Como Jean Grenier disse na introdução às obras completas de Camus “Uma obra de arte é antes de tudo uma personalidade”.
Camus perde o pai cedo, a mãe é companheira amada mas distante, a avó o educa com rigidez, tem uma infância feliz, se frustra em seu primeiro casamento, se decepciona coma a total ausência de Deus e com o silêncio ante o sofrimento humano. A tuberculose ainda na adolescência dará a ele o medo da morte em meio à explosão da vida na sua juventude. Acerca disso ele relata: “Mesmo mais tarde, quando uma grave doença me tirou provisoriamente a força da vida que em mim tudo transfigurava, apesar das imperfeições invisíveis e das novas fraquezas que nela encontrava, pude conhecer o medo e o desânimo, jamais a amargura.”
Essa transfiguração que criava nele uma enormidade de aspirações, seja o de viver, o de compreender, o de criar e de encontrar a felicidade era pois o cerne do sentimento do absurdo. Essa verificação, tomada por toda a consciência se tornará a evidência do absurdo.
Cedo faz leituras e é incentivado por um professor a leituras filosóficas. Eis aí o caminho da lucidez. Apesar – e talvez por causa – da certeza da morte, ele terá intensa ligação com a vida em sua cotidianidade. Joga futebol, continua a ler, trabalha, vive o mar (mediterrâneo) e o sol, a praia e a areia, tem prazer no corpo de mulher, na natureza, no teatro, no engajamento político, nos livros que escreve.
Essa cotidianidade de felicidade e prazer e orgulho o fará buscar por uma razão, um sentido mínimo ante a força avassaladora da morte em suas diversas expressões, essa força limitadora e exterminadora da vida. Enfim, o contato com a morte o fez rever a vida e sua relação com ela. Daí a importância do absurdo. E Camus irá descrever tão bem o que é o absurdo por tê-lo experimentado profundamente. Camus sempre será intenso em sua relação com a vida. Toma a vida com paixão, paixão diretamente proporcional ao sentimento do absurdo. Essa paixão o atará à vida de maneira sempre dramática. Por amar com abandono a vida, ele terá grande dificuldade com a perda e a morte. Em sua paixão pela vida, a natureza e as pessoas, fica horrorizado pela presença inapelável e injusta da morte. Diz ele: “Quanto mais apaixonante é a vida, mais absurda é a idéia de perdê-la.”
E poderíamos pensar que, em meio à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que ia destruindo todas as esperanças de ver surgir algo novo, Camus poderia se entregar ao pessimismo e ao cinismo de sua época. Pelo contrário, quis ele encontrar um meio de explicar a vida humana. E escolheu o absurdo como ponto de partida. Sua opção pelo absurdo não é para explicá-lo em si, mas para tentar explicar a vida humana. O absurdo será sua tábula rasa, uma posição provisória, porque Camus já sabia da impossibilidade de se viver no absurdo e que algo deveria surgir como resposta a isto. Mas isso veremos mais adiante.
Desde já é preciso dizer que o absurdo não foi definido por Camus. Não há pois um conceito de absurdo em Camus, assim como não há em O Mito de Sísifo uma filosofia do absurdo, assim como Camus não é um filósofo do absurdo.
Nesta obra, Camus tenta aproximar o máximo possível o sentimento do absurdo que transformado em evidência exigira uma explicação lógica, uma justificativa intelectual, que seria a noção do absurdo. Começa dizendo que “a simples preocupação está na origem de tudo… e que não se trata de uma definição mas de uma enumeração dos sentimentos que podem comportar o absurdo. Acabada a enumeração, não terá porém, esgotado o absurdo”.
“O Absurdo é o Conteúdo do Sentimento” – A experiência
O absurdo está na cotidianidade da vida. Pode estar em qualquer coisa. A diferença se dá quando o sentimento vem. E ele vem, cedo ou tarde, e quando vem, vive-se esse sentimento preenchido pelo absurdo. Esse sentimento é a angústia do quarto de hotel do qual o personagem João de O Equívoco fala. É quando a morte se revela a nós e no seu desvelar, nos diz de sua força e nos faz tê-la, a morte, como a única certeza da vida. Diante da morte queremos respostas e soluções, mas “querer é suscitar paradoxos” e contra isso não há o que fazer ou definir, somente tentar perscrutar suas consequências.
O absurdo é o encontro nunca acontecido da busca com a ausência, o desespero ante a tentativa frustrante de se colar o copo de ouro que ainda não se quebrou, de se religar o fio de prata que não se desatou e de se refazer a roda despedaçada junto ao poço mas que nunca se desfez, lembrando o que diz o pregador do livro de Eclesiastes . É a presença perene de um nó que nunca se desata na garganta, um estampido surdo no ouvido, um grito seco e mudo ante a tragédia do fim.
O absurdo é essa “revolta da carne, essa única certeza”, esse desespero e horror que nos agarra quando nos sabemos inimigos do tempo quando não temos o que fazer nem com o que lutar. O absurdo é essa inquietação ante o mundo contraditório, apático e desleal. É “essa espessura e essa estranheza do mundo”, a exigência de familiaridade, da fome de clareza que o homem tem diante do universo e não encontra. “O absurdo nasce do confronto entre o apelo humano e o silêncio despropositado do mundo” .
Há nessa definição de Camus, uma relação, um jogo de forças e fraquezas de ambos os lados. O absurdo não se define por um ou outro lado, pois ele é “essencialmente um divórcio. Não está nem de um lado nem noutro dos elementos comparados, nasce de sua confrontação”. O absurdo se insere no meio dos dois lados, no centro entre os dois termos. É o abismo sem ponte entre o ser humano e o mundo, entre o desejo e o objeto, entre a pergunta e a resposta, entre o vazio e o outro vazio, tendo por meio o nada. O apelo, o grito humano que sai em busca de retorno por uma resposta, se depara com a ausência de qualquer eco possível, e é engolido pelo mutismo despropositado do mundo, revelando assim a situação dessa condição angustiante e absurda.
O homem, de acordo com Camus, experiencia o absurdo ao mesmo tempo que ele nota sua existência e o combate. A experiência do absurdo é de todos. E a experiência vem pela consciência que se tem quando finalmente nos perguntamos sobre o sentido e valor dessa vida alienada e mentirosa. “A consciência da rotina, seguida da indagação do sentido leva-nos à sensibilidade absurda. Dar-se conta de todo um dia mecânico é ver-se excluído de sua verdadeira condição. Não há consciência de liberdade para o que despertou à consciência de sua jornada. É viver sem humanidade”. A consciência é a clarificadora do sentimento de absurdidade que Camus fala, que é o encontro do desejo com a falta, a ausência, ”esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário” .
A consciência torna-se assim o critério pela qual tudo se inicia. Uma vez saído do torpor de uma existência alienada e que escondia por seus hábitos a sua verdadeira condição, a decisão pelo absurdo é incontestável. A decisão para aceitar o absurdo reflete pois a necessidade humana por claridade, assim como a prontidão para dar a isto constante expressão. Paradoxalmente, a decisão de afirmar o absurdo permite aos seres humanos viverem em harmonia com as condições e exigências básicas da existência.
O suicídio seria uma forma de eliminá-lo sem resolvê-lo. Mas é preciso negá-lo. O que se pede do ser humano absurdo é que assuma, afirme, viva e experiencie o absurdo, tomando o seu próprio destino em suas mãos e, pela lucidez e coragem, enfrente esse absurdo sem esperança nenhuma. Essa é sua revolta, “um confronto permanente do homem com sua própria obscuridade… Ela não é aspiração, não tem esperança…é apenas a certeza de um destino esmagador, sem a resignação que deveria acompanhá-la”. .
A Opção pelo Absurdo
Chavanes criticará o pensamento de Camus concernente ao tema do Absurdo no que diz respeito ao ponto de partida de seu pensamento. Diz ele: “Seu erro, pensamos nós, reside na exclusão – da realidade que ele percebe – de tudo que não é absurdo. Quando ele declara ’o único dado para mim é o absurdo’, ele se encerra em uma prisão onde nenhum vislumbre de esperança pode penetrar. Ele o reconhece aliás quando admite que ‘o absurdo é o contrário da esperança’. Em O Mito de Sísifo, Camus recusa a esperança porque, tendo feito a aposta do absurdo, ele escolheu viver sem esperança”.
John Cruickshank também dirá que a solução de Camus para o absurdo, “Parece mais aceitável se expressa como uma escolha deliberada do que uma dedução lógica.”
Contudo, Camus não pensará em termos de opção pelo absurdo, pois para ele seu único ponto de partida é o absurdo. Como não há escolha pois não há opção, ele fica com a absurdidade da vida e define-se intransigente a respeito. Aí está sua verdade e dela não pode escapar, mesmo que seja a mais dura verdade. Diz Camus que “procurar o que é verdadeiro não é procurar o que é desejável”. Dessa verdade assumida, o absurdo se torna a única opção, já feita e que deve ser reconhecida. Diz ele ainda: “A partir do momento em que é reconhecida, a absurdidade é uma paixão, a mais dilacerante de todas…É preciso sustentar a aposta lancinante e maravilhosa do absurdo”
A partir do momento de descoberta do absurdo, descoberta essa que evidencia o que já existia desde sempre, a ética do homem absurdo será fundamentada na honestidade e na integridade, características fundamentais que o impedirão de evadir-se frente ao absurdo da existência. Uma vez experimentada a sensibilidade absurda tornada evidência e percebido seu raciocínio, isto é, sua noção, é preciso lutar contra seu trágico decreto.
Assumir o absurdo não é assumir a apatia ou renúncia mas seu inverso. Essa luta tem seus critérios para não desclassificá-la e também para não ser presa fácil de suas próprias ciladas. Para fugir dessas ciladas, Camus rejeita as opções pelo suicídio físico e filosófico, pela esperança e pela fé. Para ele, estas questões são a negação da vida e, ao mesmo tempo, a aceitação consentida de que o absurdo é o que resta. Para Camus, o absurdo é o início e não o fim. E ao dizer da falta de sentido na vida e ao propor a necessidade da experiência do absurdo, ele faz o absurdo tornar-se, de certo modo, um sentido na vida.
Logicamente, ele coloca a questão do suicídio em função de ter assumido que a única realidade da vida é o absurdo. Pois se o absurdo está aí e não posso fazer nada contra ele, que nos resta?
Camus não se atém somente à noção de absurdo. Haverá uma resposta para ele. Por esta razão, ele não concordará com o suicídio físico que seria a adesão à força destruidora do absurdo pelo uso desarrazoado da liberdade. A vida precisa experienciar o absurdo, e o suicídio não é a resposta a ele, pelo contrário, é a entrega deliberada, o consentimento que não o elimina.
Já o suicídio filosófico é a autenticação da limitação da razão em explicar o mundo. É a entrega despudorada da lucidez humana, fator inegociável no embate contra o absurdo. Camus fará uma análise curta de alguns pensadores que serão representantes do que ele chama de pensamento humilhado e suicídio filosófico. São eles: Heidegger, Jaspers, Chestov, Keirkegaard e Husserl. O pensamento humilhado é o pensamento entregue à sua própria limitação, é a descoberta do absurdo pela razão, descoberta essa que acabou por se entregar a respostas fáceis e mentirosas como o sobrenatural e o irracionalismo. O pensamento humilhado é o fracasso da razão na tentativa de explicar a vida, é o abandono da lógica ante o dilema insolúvel da falta de sentido da humanidade, é a fraqueza da inteligência em função da razão humilhada.
Como tentativa de responder a esse tipo de pensamento, Camus institui o raciocínio absurdo, ao qual “muitos chegaram a começá-lo. Não sei se contentaram com isso” .
Seu raciocínio absurdo não se entrega ao irracionalismo. Acha que a inteligência, apesar de limitada e falha, pode responder ao absurdo sem se entregar ao irracionalismo. Camus quer fazer possível a convivência entre a razão e a existência humana. Critica aqueles que se esqueceram da existência em prol da razão (toda a tradição cartesiana-kantiana—hegeliana), mas também critica aqueles que, partindo da existência, acabaram por cair no irracionalismo e na transcendência. Eis o motivo de Camus ter dito que seu livro de idéias, O Mito de Sísifo, era contra os existencialistas.
Para Camus, a filosofia existencialista negará a razão, reduzindo assim o homem. Pela crítica da razão o existencialismo chega à divindade, isto é, à divinização da história. Questão que Camus irá tratar em O Homem Revoltado. Sua crítica a estes pensadores se dá pelo fato de que estes fazem por integrar o homem ao absurdo, fazendo escapar ao mesmo tempo o seu caráter essencial, “que é oposição, dilaceração e divórcio (sic.)” . Esse divórcio não deve ser resolvido pela esperança ou por Deus. Isso seria fugir ao desafio do absurdo e se esconder em um sentido mentiroso e falso. É preciso enfrentar o absurdo, não escapar dele.
Cita Heidegger brevemente e o critica por achar que a existência é humilhada por não poder ser medida por categorias racionais. A maior realidade é a inquietação, que se transforma em angústia ao emergir para o nível da consciência, tornando-se esta a condição permanente do ser humano. Para Camus, Heidegger descobriu o absurdo mas não saiu dele, diminuindo o homem em sua humanidade.
Cita Jaspers que faz a descrição da falha e ilusão da condição humana, da “impossibilidade de conhecer” para logo depois tentar salvar essa condição humana devastada pelos “segredos divinos” .
Cita Chestov que só pressupõe o absurdo em sua obra para eliminá-lo. Critica a “preeminência do irracional” no seu pensamento e a existência de algo para além da razão. Camus jamais aceitará a irracionalidade e embora concorde com o fato da razão ser vã não concordará que há algo para além dela. Isso é para Camus a entrega à eternidade e a Deus como resposta enganosa ao dilema e condição humanas.
Cita Kierkegaard, um dos mais importantes precursores do existencialismo como o mais interessante de todos e que “fez mais do que descobrir o absurdo: ele o viveu”. Para este pensador, a existência não pode ser resolvida somente pela inteligência por ser impotente, mas irá enfatizar a necessidade da transcendência desta limitação da razão, optando pelo salto no escuro como um meio para dar sentido à existência. Embora tenha vivido o absurdo, Kierkegaard não quer continuar nele. Aí está seu erro.
E por fim cita Husserl e o método fenomenológico. É possível dizer à primeira vista, que o método fenomenológico se aproxima do pensamento absurdo no quis diz respeito à descrição que ambos fazem da existência humana e da “pluralidade de verdades, isto é, verdades particulares, cada coisa tem a sua verdade” . O pensamento deve ter limites e saber de sua impossibilidade de explicação. Mas deve também continuar nessa descrição sem fazer o suicídio filosófico que outros autores fizeram, nem se aventurar a explicar o que descreveu. E aqui o pensamento absurdo de Camus se afasta da fenomenologia. Husserl não se limita à descrição mas caminha para a explicação dos fenômenos, tentando capturar suas essências. Camus não aceitará essa busca eidética por ser um outro apelo à transcendência. Ele dirá que “para o homem absurdo, já não se trata de explicar e resolver, mas de experimentar e descrever… Descrever, eis a última ambição do pensamento absurdo”.
Toda explicação é necessária somente para manter a tensão e garantir a atmosfera do absurdo. Entretanto, essa explicação nunca se tornará em conceito e deverá se multiplicar sempre. Manuel da Costa explicita isso melhor: “Todo saber reproduz, portanto, o movimento do próprio absurdo, que opõe numa tensão perpétua o uno e o diverso, o racional e o irracional, a vida e a morte. Este movimento é afinal minha única certeza; mas uma certeza que não se decanta em conceito.” Camus diz que “a explicação é inútil.” , mas é nessa tensão entre a explicação inútil e a descrição que se dá o absurdo.
Ainda fazendo a crítica ao pensamento de Husserl, Camus diz que a razão em Husserl não terá nenhuma espécie de limite, o que não poderá ser aceito pelo absurdo.
Enfim, Camus rejeita o suicídio filosófico que, ou nega a razão, ou a substitui pelo transcendente, ou então não lhe dá seus devidos contornos e limites.
Com relação à fé, Camus a rejeitará pois ela seria o engano com relação à esterilidade dos atos. Ela serviria de engodo na caminhada com o absurdo, tiraria do ser humano a necessidade de tomar o seu destino em suas próprias mãos e ainda o faria esperar por uma vida inexistente no futuro que faria com que ele negasse a vida presente. O ser humano absurdo precisa de lucidez e coragem para não cair nas ciladas do próprio absurdo, como já dissemos, e a fé é com certeza uma delas.
Antes de continuarmos com a análise de O Mito de Sísifo, é preciso deixar claro que o ser humano absurdo é sabedor e consciente de que seu fim é a morte e de que não há saída para além do natural. Ele se encontra nesse meio tempo entre a consciência do absurdo e a fatalidade da morte. Nesse ínterim, encontra sua missão de dar forma a seu destino pela possibilidade da alegria na criação diária. E representa isso em mitos. É o que Camus irá tentar fazer com o mito de Sísifo.
A Ética do Homem Absurdo
Antes de analisarmos o mito de Sísifo propriamente, vamos nos ater aos personagens descritos por Camus como exemplos, não modelos, de sua ética absurda.
Camus analisa três personagens para descrever o ser humano absurdo. O ser humano absurdo é o que não faz contas do eterno. Como já disse, seus atributos são a coragem para assumir e enfrentar sua situação, e a lucidez, seu raciocínio para estabelecer os próprios limites. No dizer de Camus, sua liberdade é a prazo, sua revolta sem futuro e sua consciência perecível .
Em função da busca pela clareza de entendimento imposta pelo ser humano, o absurdo se põe entre essa busca e a falta de razão do mundo. Tendo o absurdo como explicação e referência, a ética de Camus será uma ética devedora ao absurdo que salvará a humanidade desse fosso sem fundo, sem tirá-la de lá. Essa ética é, no dizer de Avi Sagi, uma ética do dever e da obrigação ao absurdo. Daí que a ética será um processo de auto-revelação que se direciona para conclusões práticas. Exemplos: para se manter ligado ao absurdo haverá a necessidade de integridade e honestidade, para se aceitar o absurdo da vida será necessário coragem e lucidez, para que o absurdo não nos faça resignados é preciso a revolta, para que o absurdo não nos prenda em nossas ações e atividades, é preciso a liberdade criadora. E assim vai.
Camus partirá da idéia de inocência do ser humano, que irá mudar mais tarde. Essa inocência demanda a unidade que o mundo não dá, busca pelo absoluto que não encontra. Aí vai seu grito de revolta, daí advém a criação como busca desse absoluto. A mente sabe da impossibilidade do conhecimento todo, sabe da não significação de sua vida e da certeza da morte. Ante esse estado de coisas, a revolta protesta mas sem esperança, a criação surge mas é estéril.
A atitude absurda é livre pois de toda culpa. Não há o erro original. Deus não será preciso. Assim, “O absurdo é o pecado sem Deus” . A justificativa não será necessária nunca. E se o absurdo não autoriza todos os atos, ele traz responsabilidade aos atos. O homem absurdo não se desesperará ante as consequências de seus atos, ao contrário, ele as aceitará serenamente como parte da vida. Poderíamos fazer a crítica a Camus ao dizer que sua ética não incentiva nem libera todos os atos desejados ou mesmo não desejados pelo homem absurdo. Entretanto, a ética absurda não dá a estes atos a carga do erro. Pode-se dizer que não é dado ao homem matar, mas uma vez feito, a ética absurda se ligará somente à responsabilidade dos fatos e restituirá “ao remorso sua inutilidade”. Assim será Meursault, dono de uma ética de tanto faz.
Camus também entende que sua ética é da quantidade. Não mais uma busca da vivência da essência das coisas mas da quantidade de experiências que se tem. Assim se mede a vida. Viver não é viver intensamente, viver, é viver mais. Pois a quantidade dirá da intensidade. Viver mais é estar mais ligado à vida, é participar com maior constância possível do mundo, é aproveitar a vida que se tem, é viver com mais consciência das coisas. Assim serão os personagens do livro. Neles, tem-se a vida por imagens, eles perseguem o raciocínio absurdo dando-lhe sua atitude e calor.
Cada um destes personagens analisará um aspecto da vida absurda.
Don Juan será o primeiro e tipificará a tragicidade do absurdo. Ele encontra na quantidade as experiências amorosas que teve, a sua realização. Contudo, não estará satisfeito. Seu objetivo é a eficácia de sua sedução. E tendo uma vez seduzido as mulheres e tendo, a cada uma, experimentado o amor de modo diferente, seu absurdo se intensifica e ele parte para novas conquistas. Seu amor é generoso, visto que singular e passageiro. Ele sabe viver seu presente e busca por outros presentes sem a esperança, seja do passado ou do futuro. Se for castigado, não importa. Ele fará de seu castigo o destino, e “um destino não é uma punição”.
O ator será o segundo exemplo da ética absurda. A pessoa comum, que não assumiu seu próprio absurdo, passaria “metade da vida a subentender, desviar a cabeça e se calar” . O ator será a negação dessa vida pela consciência. Consciência de sua vida e das vidas fictícias de outros que ele toma para si. Ele viverá a experiência de muitos outros, terá diante dele tantos e diferentes destinos oferecidos, e viverá por alguns momentos a “eterna vivacidade” (Nietzsche) de alguns personagens. Sua glória será efêmera como todas as outras e seu sucesso/fracasso se colocará no presente. E aí está a maior glória, a que se efemeriza no instante presente, no imediato e não em projeções do presente ou do passado. Pelo corpo capta parte do conhecimento espalhado por todos os seus personagens e vive da mais pura aparência e seus contornos. Sua intensidade está na diferença de seus personagens e no instante fugaz de sua representação.
O terceiro personagem da ética absurda de Camus é o conquistador. Sem especificá-lo, Camus diz que o conquistador é o homem que sabe que não pode viver fora de seu tempo e por isso se vincula profundamente a ele. Seu vínculo ao tempo se dá na escolha da ação em detrimento da contemplação. Não porque não conheça a contemplação mas porque sabe que ela não lhe dará tudo pois está privado do eterno. Fazendo da vida seu campo de ação, vive o seu momento histórico com intensa relação e angústia, não nega suas alegrias e atrocidades. Entretanto sabe que suas causas são vãs e que nenhuma causa pode ser vitoriosa. Dessa forma se alia às causas perdidas pois sabe que toda ação é inútil e que sua única certeza é sua carne. Vicente Barreto diz do conquistador: “Dele nada resta, nem mesmo uma doutrina, a não ser a convicção de que viril é aquele que consegue ser lúcido, pois somente dessa forma a força não ficará separada da clarividência”.
Camus diz que estas imagens são somente para servir de exemplo e não para ser seguidas. O amante, o comediante e o conquistador servem para esboçar o estilo da vida absurda. O absurdo é essa tentativa de dar forma a essa ausência pesadamente silenciosa entre o ser humano e o mundo. A ética absurda é a tentativa desesperada de dar contornos a esta nova forma proposta por Camus. Seus personagens/imagens são exemplos do que poderia ser qualquer um que saiba e não mascare nada, no dizer de Camus. Ele quer fazer de todos reis e rainhas, dar a eles a possibilidade de participar de uma realeza, dando-lhes maior poder. Entretanto, essa participação é a mais efêmera de todas, e o seu poder maior está em saber que a realeza é a mais ilusória de todas.
Camus diz o seguinte sobre seus personagens: “Nem eu nem ninguém pode julgá-los aqui. Eles não procuram ser melhores: tentar ser consequentes. Se a palavra sábio se aplica ao Homem que vive do que tem sem especular sobre o que não tem, então aqueles são sábios”.
O mundo de seus personagens é um mundo onde deus não faz morada e onde nem seus filhos sedutores – a esperança e a fé – têm lugar. É um mundo povoado por homens e mulheres que se encontraram com o absurdo e tratam de viver sua vida em sintonia com ele, sem nada esperar, sem nada oferecer, a não ser a consciência da tragédia da morte e do tempo contado por ela até que tudo se acabe. Antes, porém, a alegria, o amor a criação, o prazer, a revolta e o presente. Todos sob o ar absurdo.
Por fim, o esforço de Camus, não só com relação a sua ética do absurdo mas mesmo com relação a toda sua obra, citando novamente Roger Quilliot, “é menos um problema de estabelecer um comentário do que de desenhar, a partir de vários textos, alguma coisa que se assemelhe a uma atitude exemplar da vida”.
A Criação
Haverá de ter um caminho por onde o absurdo se expresse, compatibilizando esse divórcio explícito entre o mundo e a razão. Camus negará o traçado desse caminho feito anteriormente pelo suicídio, pela filosofia e por Deus. Sua resposta será a criação.
A criação é a resposta a este divórcio, à revolta humana frente ao absurdo. É a ligação entre o ser humano e o mundo, a sua tentativa em achar seu ponto de equilíbrio. A obra de arte deverá saber, estar consciente de sua limitação, efemeridade e ausência de função. A criação é a resposta negativa ao convite/ tentação da esperança. Mesmo que a atividade criativa seja ”uma daquelas capazes de completar a existência absurda” ,a obra de arte nunca será seu remédio.
A criação se dá pelo pensamento. Pelo pensamento se duplica o mundo, pois “pensar é, antes de tudo, querer criar um mundo (ou limitar o seu, o que vem a dar no mesmo). É partir do desacordo fundamental que separa o homem de sua experiência para encontrar um terreno de interpretação conforme sua nostalgia, um universo espartilhado de razões ou aclarado de analogias que permite resolver o divórcio.”
Camus diz que a obra de arte, assim como a ciência e o pensamento, marcam a multiplicação da experiência e faz sua repetição monótona. Da mesma forma delimita o tempo de sua morte. “Também a ciência, tendo chegado ao fim de seus paradoxos, cessa de propor e pára a fim de contemplar e desenhar a paisagem sempre virgem dos fenômenos. O coração, assim, aprende que essa emoção que nos arrebata diante dos rostos do mundo não nos vem de sua profundeza, mas de sua diversidade. A explicação é inútil, mas a sensação permanece e, com ela, os apelos incessantes de um universo inesgotável em quantidade. Compreende-se, agora, o lugar da obra de arte.”
Na arte, diz Camus, o artista vive duas vezes. O que os personagens absurdos de O Mito de Sísifo fazem é duplicar o seu mundo em experimentações repetitivas e inesgotáveis, definindo a intensidade da vida pela quantidade de experiências que eles pudessem produzir.
Em outra evidência descoberta pelos sentimentos, Camus diz que a esperança não pode ser evitada para sempre e que pode tomar de assalto até aqueles que supunham estar livres dela. Para o ser humano a recusa constante da esperança pode ser mais difícil que a manutenção do sentimento de absurdo e da atitude em torno dele. E é em função da insistente esperança no coração do homem que Camus dirá que muitos aceitariam esta ilusão. Entretanto, o sentimento do absurdo e sua vivência sabem da força que a esperança tem. Ao tentar rejeitar a esperança, a sabedoria absurda diz que a esperança se lança na criação, mas na criação para nada, para uma obra sem futuro, que se aloje unicamente no hoje, sem nenhum cuidado em sua preservação.
Essa criação fugaz, inspirada pela revolta e também pela esperança será a não entrega ao fatalismo, ao contrário, será a presença pujante da perseverança na tentativa de dar forma ao destino, mesmo que essa perseverança já se saiba antecipadamente fadada à esterilidade, ao nada e à derrota. Vale ainda ressaltar que, para Camus, a obra de arte é a obra que fala menos.
Para a obra ser absurda, será preciso a presença do sentimento e da inteligência. O sentimento trará a evidência de seu estado absurdo e a inteligência trará os limites da realidade, e portanto da obra. Dessa maneira, o absurdo não se dá em função de sua criação. Seu absurdo é a evidência de seus sentimentos que, trabalhados pela razão, mostrará seu despropósito e falta de função do mundo. Pensar, para Camus, é criar um mundo. A criação será a consequência da revolta que o absurdo traz.
Diz Camus que “nesse universo, a obra é então a única possibilidade de se manter a consciência e se fixar em suas aventuras. Criar é viver duas vezes… A existência inteira para um homem que se desviou do eterno, é tão somente um mimo desmesurado sob a máscara do absurdo. E esse grande mimo é a criação”.
Contudo, e paradoxalmente, Camus diz que a criação não é aprisionadora do ser humano absurdo e que a revolta não se vincula obrigatoriamente à criação. E Camus chega mesmo a dizer que, “criar ou não criar, isso não altera nada. O criador absurdo não depende de sua obra”.
¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬ Eis aí outro paradoxo em sua obra.
Na criação, Camus tem seu artista preferido. Seu herói absurdo é o escritor. O escritor é o maior dos artistas. Mesmo a filosofia terá seus personagens, imagens e enredo. Todo romance para Camus é filosofia, e todo romance é imagem. O escritor se atém mais à descrição do que à explicação. Os raciocínios já estão lá. Não é preciso criá-los, nem formulá-los de maneira lógica. Um romance diz do conhecimento do que temos do amor, relativo e inesgotável. O romance é descrição fragmentada da experiência humana vivida pelo artista. Nessa descrição, seu valor está naquilo que sugere, a partir do respeito das exigências absurdas, quais sejam: cisão entre o mundo e o homem, sua condição absurda, revolta, sua consciência de limitação e de total falta de saída e sua aceitação. O valor do romance, assim como da obra de arte, está naquilo de ilusório que ele nunca menciona como alternativa, naquilo a que não se faz menção explícita, apenas deixando sob nossa responsabilidade nosso próprio destino.
Camus irá assim analisar um personagem de Os Possessos de Dóstoiévski apresentando essa obra não como obra absurda, mas que apresenta e abarca o problema do absurdo.
O Mito
Por fim, terminando a análise de O Mito de Sísifo, pensemos sobre o mito em si. Se nos seus personagens anteriores eles somente projetavam imagens e caminhos delineadores que nem mesmo deveriam ser seguidos, seu verdadeiro herói absurdo é Sísifo. Sísifo é um personagem da mitologia grega que por ter desprezado os deuses, foi condenado a rolar sua pedra até o topo de uma montanha. Quando lá chegava, a pedra soltava-se novamente e Sísifo tinha de ir buscá-la novamente e levá-la ao topo da montanha, e assim fazer o mesmo movimento durante toda a eternidade.
Como que descrevendo a si próprio, Camus descreve Sísifo da seguinte maneira: “O desprezo pelos deuses, o ódio à Morte e a paixão pela vida lhe valeram esse suplício indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar nada. É o preço a pagar pelas paixões deste mundo.”
Sua tragédia é sua salvação. Ele se une à sua punição e faz dessa união a consciência de seu destino. Seu tormento não terá fim. A princípio ele só terá a pedra como evidência de sua condição. Mas quando Sísifo assume a pedra e seu trabalho como sua situação absurda da qual não pode, nem deve abdicar, tudo se transforma. Consciente de sua condição, a esperança não lhe alcança, a não ser o levar diário da pedra na esperança de vê-la chegar ao topo. Esperança lançada ao nada toda vez que a vê cair novamente.
Maior que sua pedra, Sísifo tem a justa medida de sua inutilidade e faz dela sua missão. Uma missão estéril e sem resultados nem consequências, a não ser a certeza de que não precisa de nada fora dele mesmo, nem mesmo do tempo para encontrar sua felicidade. Não apela aos deuses, mas pelo contrário, os despreza. Não é vítima de suas ofertas de salvação e se vê acima deles em sua impotência. Não depende deles para o significado de seu mundo pois sabe que isso não existe. Entretanto, Sísifo não vive em um vácuo mas cria para ele um mundo que lhe oferece experiências.
Sua lucidez traz a ele seu tormento mas também traz a possibilidade da felicidade. Para Camus, a tristeza tem dois motivos, a saber a ignorância e a espera. Eis porque Camus opta em ver Sísifo (e também Don Juan) felizes. Eles sabem de seu estado e não esperam nada nem ninguém.
Cabe ressaltar que há também uma crítica a Camus por forçar a situação de um Sísifo feliz. José Orlandiz fala que isso é produto da imaginação de Camus. A felicidade seria vê-lo salvo e vencedor com sua tarefa terminada. O contrário disso seria a tragédia, incompatível com a felicidade.
Entretanto, Camus subjuga a coerência e fratura o que comumente se vê e se espera de um conceito como felicidade. Para ele, Sísifo subjugou sua condição mesmo que a ela esteja ligado para sempre. Ele não se entrega tão facilmente. Colocar a pedra em cima do monte é sua felicidade e prazer fugazes.
Sísifo se revolta contra seu rochedo para fazer de sua punição lugar e sinal de sua felicidade. Pois a felicidade está exatamente na consciência e lucidez de sua condição e de ter seu próprio destino em mãos. Sísifo tem essa alegria que os deuses não conhecem. E despreza o destino que lhe foi imposto. E como diz Camus, “não existe destino que não se vença pelo desprezo”
Considerações Finais sobre o Tema
A noção de absurdo em Camus não será para ele mais do que ponto de partida. Mais tarde ele lamentaria estar associado tão fortemente a esse tema. O absurdo era uma idéia que ele tirou das ruas de seu tempo, e que ele usou como propulsor e pano de fundo de um pensamento que iria se desenvolver e mostrar caminhos bem diferentes daqueles explicitados até aqui.
Camus não se renderia à ausência de sentido no mundo. O que sua obra inicial faz é mergulhar nele e expressá-lo com lirismo e realidade impressionantes. Sua percepção e descrição do absurdo tornará essa noção ainda mais densa e compreensível, sem a necessidade de conceitos definidos.
Talvez pela falta de um conceito totalmente claro do que ele queira dizer com absurdo, Camus caminha entre contradições e incoerências que acabam por expressar ainda melhor seu significado. Como diz Manuel da Costa P. Neto em sua dissertação de mestrado sobre Camus: “O absurdo não é a projeção entre o mundo de um mal estar interior como quer o lugar comum que assimila Camus ao existencialismo”. Ao contrário, “o absurdo é uma decorrência dessa impossibilidade de ajuizamento e compreensão do mundo”.
O absurdo é pois esse abismo sem fim que se afigura diante do ser humano, entre seu grito e o silêncio despropositado, desarrazoado do mundo. Desse mesmo abismo ele tira sua perplexidade, frustração e desprezo. É só pelo mergulho profundo nesse abismo absurdo que ele se vê em condições se melhor apostar nas razões da vida. Eis o paradoxo: O absurdo será o vazio de onde ele tirará o sentido para preencher a vida. Ao tratar do tema do absurdo, Camus vai tê-lo sempre como ponto de partida, mas não fará dele regra contínua, pelo contrário, não deixará de lutar contra ele, mesmo que seja uma luta inglória e perdida.
Há algo novo que daí pode e deve surgir. Surge o ser humano absurdo (L’homme Absurde), expressão que não designa o ser humano privado de razão, pelo contrário, o ser humano lúcido, que reconheceu que tudo é absurdo e sem sentido. Em O Mito de Sísifo, Camus quer fazer uso da razão não para fazer outra crítica a ela, nem para definir o absurdo mas sim, para tratar das consequências que o absurdo traz. É do absurdo que ele extrai esse algo novo, mais especificamente três consequências nominadas por ele e que são: a revolta, a liberdade e a paixão.
Diante da injustiça da morte, Camus percebe ameaça à vida constantemente. Sua tentativa é nem se resignar nem se desesperar diante de sua força inegociável e assumir, pela revolta, uma postura de lutar contra suas expressões mais diversas. Por isso, não se entrega ao suicídio ou esperança ou fé. Sua liberdade é saber-se dono de suas próprias experiências e de seu próprio destino. Assim, e antes que a morte venha, é preciso saber que há muita paixão para se viver.
Para viver esta vida “com a dupla consciência de um desejo de permanência e seu destino de morte”, entre a angústia e o terror dos limites escancarados de nossa existência e o desejo de eternidade que carregamos em nós, é preciso algo mais que o absurdo. Anders Osterling, secretário permanente da Academia Suéca, que fez o discurso de recepção na entrega do prêmio Nobel a Camus, relata a mudança entre os dois momentos temáticos do pensamento deste autor: “O essencial para Camus não é mais saber se a vida vale a pena ser vivida, mas como é preciso vivê-la, com o quinhão de sofrimentos que ela comporta”.
Passamos assim do absurdo (onde Camus pergunta se a vida tem sentido), para a revolta (onde ele analisa como é preciso vivê-la). A revolta será resposta e transformação de todo o seu pensamento iniciado pela noção do absurdo.
Sísifo está feliz…mas precisará da ajuda de Prometeu.
[1] Ibid., p. 85
[2] SAGI AVI. Op. Cit. p. 278
[3] CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 58
[4] Ibid., p.86
[5] Ibid., p. 94
[6] Ibid., p. 100
[7] BARRETO, Vicente. Op. Cit., p. 61
[8] CAMUS, Albert. Op. Cit., p. 110
[9] QUILLIOT, Roger. Op. Cit p. 90
[10] CAMUS, Albert. Op. Cit., p. 135
[11] Ibid., p. 121
[12] Ibid., pp. 116-117
[13] Ibid., p. 134 e 135
[14] Ibid., p. 116
[1]5 Ibid., p. 119
[16] Ibid., p. 133
[17] Ibid., p. 142
[18] LEBESQUE, Morvan. Op. Cit. p. 62
[19] CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 143
[20] NETO, Manuel da C. P. Op. Cit. p. 12
[21] Ibid., p. 80
[22] CAMUS, Albert. Noces. p. 43
[23] OSTERLING, Anders. Nobel Lectures Literature. p. 521